‘Quem está com fome pede e não furta’: avanço da pobreza coincide com mais crimes em Campo Grande

Furtos de alimentos são cada vez mais comuns em meio à crise econômica

Ouvir Notícia Pausar Notícia
Compartilhar
Comerciantes relataram que as pessoas que furtam fazem isso por ‘malandragem’, pegando itens que não são de primeira necessidade (Foto: Natalia Alcântara / Jornal Midiamax)

O aumento da pobreza em Mato Grosso do Sul tem relação com furtos de alimentos em supermercados de Campo Grande? De acordo com funcionários e gerentes de estabelecimento nos bairros Campo Nobre, Jardim das Meninas e Ramez Tebet, não. Apesar da constatação dos comerciantes, o avanço da pobreza coincide com mais ocorrências de crimes chamados de ‘famélicos’ em Campo Grande.

Para quem lida diariamente com situações deste tipo, quem furta normalmente comete o crime por ‘malandragem’, já que aqueles que realmente precisam recorrem a outros meios, como pedir doações.

O furto famélico, conforme o que define o Direito, é o crime cometido por uma pessoa que está em situação de penúria ou extrema necessidade, como é o caso da fome.

As estatísticas da Segurança Pública não detalham o furto famélico como uma tipificação de crime e, por isso, não há como quantificar se houve aumento deste tipo de crime nos últimos meses. No entanto, relatos de quem trabalha no setor indicam que cada vez mais casos desse tipo ocorrem em estabelecimentos na Capital.

Por questões de segurança, os nomes dos entrevistados não serão divulgados nesta reportagem. No bairro Campo Nobre, a responsável por um supermercado externou a situação dos furtos que acontecem no local.

“Com pessoas em condições precárias é muito difícil de acontecer [furtos], eles vêm pedir muito aqui. Eles pedem. Agora quando acontece furto é de malandragem, a gente vê que as pessoas têm condições de pagar”, disse a responsável.

Em uma mercearia no bairro Ramez tebet, uma atendente de caixa, de 37 anos, traçou um paralelo com o antes e depois da pandemia. No seu relato, ela explicou que o número de furtos ou perfil de quem comete se manteve igual.

Nem as câmeras inibem

“Uma mulher já roubou bebida [alcoólica] por exemplo. Já roubaram chinelo, bolacha, esses furtos sempre aconteceram. Esses furtos que acontecem aqui eu não vejo como necessidade, foi mais molecada. Você vê pela cara que não é coisa boa”, disse ela.

mercado
Nem câmeras inibem os furtos (Foto: Natalia Alcântara / Jornal Midiamax)

“Quem realmente está com fome acaba pedindo, e não furtando. Aqui tem o caso das crianças que pedem sempre: Tia tem sobra de pão? Já cansei de dar quando sobra. Mas aí tem os que são malandros mesmo, que roubam bobeira, não um alimento que está precisando dentro de casa”, explicou ela.

Das vezes que aconteceu, a atendente de caixa afirma que a maioria dos autores sai correndo, ou age como se nada tivesse acontecido. “Às vezes, a gente só vai perceber depois, na câmera. Eles ficam dando uma volta no fundo do mercado, disfarçam e pegam, a maioria dos casos acontece assim. Eles colocam dentro da roupa ou mochila”, disse ela.

Furtam para trocar por drogas

Em um supermercado no bairro Jardim das Meninas, a gerente de 37 anos relata o mesmo padrão de comportamento para pessoas que furtam. “Eles pegam o que fica na beira do caixa, bolacha e coisas pequenas. Eu trabalho em mercado há cerca de 10 anos, nunca vi ninguém roubar farinha ou feijão. Nunca vi mãe furtar fralda. Acho que é malandragem mesmo. A maioria que realmente precisa, pede ajuda”, disse ela.

No comércio em que ela trabalha também existem pessoas que pedem alimentos, mas com outros objetivos. “Alguns pedem para as pessoas comprar leite, mas não é para ele tomar. É para trocar por droga. Nunca vi mãe vir pedir leite para um filho, mas malandro vem e fala que é pra filho”, disse ela.

“A maioria das pessoas que realmente precisam tem o Auxílio Brasil e Mais Social. E muitos passam em cachaça, acontece muito. Falam tanto de pobreza, mas para cerveja tem dinheiro”, concluiu.

Prejuízo de mais de R$ 3 mil em furtos

Em outro supermercado no bairro Vespasiano Martins, o gerente de 40 anos também sente a questão do furto de alimentos para trocar por drogas ser visível. “Todo dia tem esses pequenos furtos, mais bolacha e leite condensado. Mas geralmente eu tenho visto muito mais pessoas que usam droga. Eles pegam para vender. Pra comer mesmo é difícil. A maioria é a molecada que pega para trocar por droga. A maioria”, disse ele.

mercado
Interior de um mercado no bairro, ilustrativa (Foto: Natalia Alcântara / Jornal Midiamax)

De tanto prejuízo, o gerente está estudando contratar um funcionário e instalar câmeras de segurança só para lidar com esse tipo de situação. “Ontem eu estava fazendo o levantamento de estoque por causa disso, é inacreditável o valor. O que a gente não vê é muito alto, vou por câmeras para ver se inibi um pouco”.

“A gente está pensando em contratar uma pessoa pra cuidar dessa parte. Compensa pagar uma pessoa pelo valor de perda que a gente tem com furtos. Esse mês fechou em R$ 3 mil e poucos, para pagar alguém a gente geralmente gasta 2 mil. Sai mais barato”, finalizou.

Pobreza em MS

Mato Grosso do Sul tem mais de 1.240 milhões de pessoas em situação de pobreza. Atualmente, quase metade da população do Estado é considerada de baixa renda e necessita do auxílio de programas sociais para sobreviver. A situação fica ainda mais crítica quando olhamos para os municípios do interior, que chegam a ter 70% de seus moradores nesta situação.

Dados de inscritos no Cadastro Único do Governo Federal, fornecidos pelo Ministério da Cidadania, mostram a escalada da pobreza em Mato Grosso do Sul. Em setembro de 2017, eram 1.039 milhões inscritos no cadastro. Menos de cinco anos depois, o número cresceu 19,3%.

Conteúdos relacionados