Enquanto meu irmão, Rubens Aquino, nasceu com um gosto insaciável pelos livros, comigo a história foi diferente. Eu era da bola, da bolita, da pandorga, de fazer pião zunir na calçada e das correrias pelas matas e morros de Corumbá, nos anos 60. Vivia com a alma entregue às aventuras do mundo real e imaginário. Mas foi ali, entre nossas brincadeiras e descobertas, que nosso pai, Manoel Dantas de Oliveira — um baiano marinheiro, destemido e visionário — decidiu nos apresentar a maior aventura de todas: a leitura.
Rubens, um ano mais velho que eu, já era íntimo das letras desde cedo. Sua sensibilidade e criatividade o levaram, certa vez, a escrever uma redação em homenagem ao Dia das Mães que foi parar na Prefeitura de Corumbá, onde foi lida e aplaudida por muitos. Para completar, ainda fez um desenho tocante de uma mãe — habilidade que sempre o acompanhou. Era o primeiro sinal de que aquele menino se tornaria poeta, professor, jornalista e escritor. E eu, que observava tudo, ainda seria duramente moldado por dentro para tentar seguir o mesmo caminho.
Percebendo que meu entusiasmo com os livros não era natural como o de Rubens, nosso pai decidiu agir. Estabeleceu uma rotina exigente, quase militar — como cabia a um marinheiro. Todos os dias, antes do sol nascer, às 4 da manhã, o despertador nos chamava ao dever. Íamos ao quintal, onde socávamos sacos, cheios de areia e serragem, aprendendo a bater com firmeza e sem nos machucar, para nos fortalecer e despertar. Depois, banho gelado e, finalmente, a mesa de estudos, onde nosso pai já nos esperava lendo seu jornal ou um de seus livros prediletos. Aquilo virou ritual.
Com o tempo, os livros deixaram de ser um peso e passaram a ser companheiros. E foi aí que o gosto pela leitura realmente floresceu em mim. Nossas descobertas iam se ampliando graças ao “Reembolso postal”, sistema que nos permitia comprar livros pelos Correios. Com Rubens, aprendi a buscar sabedoria até nas promoções: certa vez, sugeri escolher de graça o livro mais caro nas ofertas “compre 2, leve 3”. Saía mais em conta, e assim multiplicávamos nossos tesouros. Pode parecer uma conta óbvia, mas não para um menino de 7 ou 8 anos.
Uma dessas aventuras nos levou ao improvável: adquirimos um livro sobre técnica de hipnotismo. Curiosos como sempre, Rubens e eu testamos a técnica em nosso irmão mais novo, Edson. O resultado? Edson dormiu tão profundamente que caiu da cadeira, e levamos um bom tempo tentando acordá-lo. Encerramos por ali essa linha de aprendizado!
Mas a paixão mesmo estava nos livros de aventura, nos mundos imaginários, nas histórias que nos levavam para onde os pés não alcançavam. Numa cidade ainda sem televisão, o cinema era um espetáculo. Me lembro da primeira vez que fomos ao Cine Santa Cruz: era um faroeste. Ao primeiro tiro disparado na tela, os três irmãos — verdadeiros “patetas” — se jogaram atrás das poltronas, apavorados, achando que as balas sairiam da tela. Depois do susto, nos tornamos frequentadores assíduos e contadores das histórias que assistíamos.
À noite, quando o calor corumbaense dava trégua e as estrelas apareciam no céu limpo, nossos pais arrastavam suas cadeiras até a calçada para conversar com os vizinhos. Ali, sob o olhar atento e afetuoso dos adultos, nós, as crianças, nos reuníamos na outra ponta da calçada, como se fosse um palco improvisado. Era o nosso momento de brilhar. Rubens e eu contávamos, com riqueza de detalhes e muita imaginação, as histórias dos filmes que assistíamos e dos livros que líamos. E, quando acabavam os filmes, a inspiração vinha. Inventávamos enredos, misturando cowboys, piratas, monstros e heróis. A criançada ficava fascinada. Riam, se assustavam, se emocionavam. Era como se o cinema e a literatura tivessem se materializado ali, naquele pedaço de chão em frente à nossa casa, na Rua 21 de Setembro, 350.
Esse hábito noturno nos ajudou a desenvolver não só a criatividade, mas também a oratória, a empatia e o senso de responsabilidade com aquilo que dizíamos. Aprendemos desde cedo que contar uma história é uma arte — e que as palavras têm poder. O olhar de orgulho dos nossos pais, entre uma prosa e outra com os vizinhos, era um combustível silencioso para continuarmos aprimorando essa habilidade.
Com o tempo, começamos a escrever também nossas próprias histórias. Os cadernos passaram a ser nossos cofres de ideias, onde guardávamos contos, rascunhos de livros, projetos de mundos imaginários que, anos depois, tomariam forma mais concreta.
Essas experiências moldaram nosso caráter e nossas escolhas profissionais. A leitura abriu portas para o entendimento do mundo, da fé, das pessoas e de nós mesmos. Ela nos deu repertório, sensibilidade e visão. Não é exagero dizer que foi um alicerce sobre o qual construímos nossas vidas no jornalismo e como professores e escritores — e tudo isso começou com o exemplo de um pai que, lá atrás, decidiu acordar dois meninos de madrugada para ler, sonhar e transformar.
Hoje, Rubens é autor publicado, inclusive de literatura infantil, jornalista e professor aposentado (não de sua escrivaninha onde junta as palavras nas suas mais belas formas). É autor também de belas letras musicais, feitas com seu inestimável amigo, José Boaventura Sá Rosa, um músico extraordinário que faleceu precocemente há alguns anos. E eu, embora ainda com livros a finalizar, carrego o mesmo amor pelas palavras e pela missão de inspirar. Tudo isso devemos, antes de tudo, a Deus — por nos conceder dons tão sublimes — e ao nosso pai, que nos mostrou que a leitura não é apenas um hábito: é uma janela para o mundo e para a alma.
Num tempo em que tantas famílias se perguntam como despertar o gosto pela leitura nos filhos, deixo aqui, com orgulho, o exemplo de meu pai: presença firme, rotina disciplinada e, acima de tudo, amor e visão. Porque ler é muito mais do que decifrar letras. É descobrir-se.
*Jornalista e Professor