Nosso Código de Processo Penal de 1941, ainda hoje em vigor, prevê expressamente o procedimento judicial a ser seguido para julgamento dos chamados crimes dolosos contra a vida (dentre eles o homicídio e o feminicídio). Trata-se do procedimento do tribunal do Júri que tem a particularidade de exigir que o juiz togado, antes de levar o réu a julgamento pelo Conselho de Sentença (formado por sete jurados), analise a admissibilidade da acusação.
Isto significa que o réu somente será levado a julgamento pelo Tribunal do Júri se o juiz entender que estão presentes dois requisitos: os indícios de autoria e a prova da existência de um crime doloso contra a vida.
Ocorre que, em tal procedimento, se ao final da colheita de provas (instrução criminal), o juiz entender que inexiste um desses dois requisitos, caberá proferir uma decisão que é denominada de Impronúncia. Não se trata de absolvição e, muito menos, de condenação. No fundo, é uma decisão que põe fim ao processo, sem reconhecer a inocência do acusado.
Ainda que se torne irrecorrível, não sendo mais passível de recurso, a decisão de Impronúncia não impede que possa haver um novo processo, pelo mesmo crime, contra o mesmo acusado. Isso acontece porque, se no curso do prazo de prescrição do delito, forem amealhados os indícios de autoria faltantes ou a prova da existência do crime até então inexistente, será possível uma nova ação penal contra o réu.
Logo, ainda que o processo tenha sido concluído, o acusado será lançado num estado de incerteza – o que não ocorreria se estivéssemos perante outro tipo de delito. Num crime de roubo ou de tráfico de drogas, por exemplo, a falta de indícios de autoria ou da comprovação da existência do crime ensejaria uma absolvição que, passado o prazo recursal, estaria acobertada por aquilo que se chama de “coisa julgada”.
Por tais motivos, a decisão de Impronúncia causa-nos uma inegável perplexidade, pois acaba por infringir princípios importantes advindos do devido processo legal, como o da segurança jurídica, da presunção de inocência e da isonomia.
De fato, com a Impronúncia, o acusado não tem definida a sua situação (de culpa ou inocência), ainda que já exista um processo findo. Ademais, em face desta indefinição, sua presunção de inocência acaba por ser arranhada, podendo, a qualquer tempo, ser novamente denunciado pela prática delituosa. Por fim, este acusado é colocado em situação de total desigualdade em relação aquele que, após o devido processo legal, foi absolvido.
Analisando-se os antecedentes históricos da Impronúncia, constata-se que tal espécie de decisão judicial possui sua origem calcada em mecanismos amplamente adotados pelos tribunais de Inquisição da Idade Média que, para evitar, a todo custo, a absolvição, embasava suas decisões em elementos de informação provisórios e sujeitos a alterações futuras.
A crítica em relação a tal tipo de decisão ganha força quando se recorda o quanto um provimento dessa natureza põe em xeque a lisura do acusado, podendo ocasionar-lhe restrições de natureza social, profissional e psicológica. Restrições que não podem ser olvidadas, principalmente num país como o Brasil, em que o fato de responder a um inquérito ou a um processo já implica numa condenação sumária por parte da sociedade.
Essa particularidade extremamente injusta que caracteriza a Impronúncia acaba, portanto, por relegar o réu a um “limbo processual”, deixando pendente, sobre sua cabeça, a afiada espada da justiça, até que ocorra a prescrição do crime.