Para que haja uma condenação por uma infração penal, seja um crime ou uma contravenção, há necessidade do chamado devido processo legal. Por meio deste, o juiz terá a importante tarefa de definir o destino do réu, mediante a reconstrução de fatos e circunstâncias que ele mesmo não presenciou. Daí porque a narrativa criminosa se formará a partir da prova testemunhal, documental, pericial ou qualquer outro meio que se considere lícito.
Em grande parte das ações penais, policiais são indicados como testemunhas, sendo chamados a dar o seu depoimento acerca do que viram ou ouviram dizer. Em face desta realidade, no ano de 2022, o Superior Tribunal de Justiça veio a discutir, no bojo do julgamento do Recurso Especial de nº 1.936.393/RJ, o valor probatório do testemunho policial, propondo uma necessária revisão dos standards probatórios, à luz dos princípios constitucionais e dos dados empíricos sobre violência e abusos policiais no Brasil.
Na ocasião, o Ministro Ribeiro Dantas, relator do recurso, propôs a fixação de critérios objetivos para a valoração do testemunho policial. Como condição mínima para demonstrar a sua credibilidade e validade, sugeriu a apresentação do registro audiovisual da atuação do agente de polícia. Ressalta-se que tal exigência não significa desacreditar as forças policiais, mas, ao contrário, importa em advertir que que nenhum relato seja presumido verdadeiro ou falso. Esta proposta surge porque, na prática forense, a presunção de veracidade conferida aos depoimentos policiais constitui verdadeira distorção do sistema probatório penal.
É claro que a oitiva do policial é extremamente relevante para a formação do convencimento judicial, mas atribuir-lhe uma presunção absoluta de confiabilidade, desprezando, muitas vezes, outras evidências, representa um incentivo a condenações injustas. Em respeito ao standard probatório da condenação criminal, o Estado acusador deve produzir provas independentes e capazes de corroborar as alegações de seus agentes.
Partir do pressuposto de que o testemunho policial tem fé-pública implica em dois equívocos: primeiro transpõe para o processo penal um atributo específico dos atos administrativos; segundo, eleva a prova testemunhal acima de outros meios de prova, apenas por ter-se originado de um agente da segurança pública.
A prova testemunhal é passível de grandes falhas, justamente por estar pautada na memória humana que não é essencialmente objetiva e fidedigna. Neste contexto, basta lembrarmos de fenômenos como as “falsas memórias”, que comprometem a confiabilidade do testemunho.
No processo penal brasileiro, o juiz formará seu convencimento pela livre apreciação da prova, mas deverá motivar qualquer decisão que venha a tomar. Inexistindo hierarquia entre os meios de prova, caberá ao julgador apresentar os fundamentos que o levaram a decidir desta ou daquela maneira. Não pode, assim, partir de regras de julgamento que sequer foram previstas pela legislação.
Além disso, a cega atribuição de veracidade ao testemunho policial implica na inversão do ônus da prova e, consequentemente, numa grave violação ao princípio da presunção de Inocência. Isso cria um cenário de “prova diabólica”, pela qual o acusado precisa provar um fato negativo.
Ao propor especial cautela para com o testemunho policial, o Ministro Ribeiro Dantas tomou por base um robusto material empírico. Foram analisados pelo menos 23 relatórios, nacionais e internacionais, estando dentre eles: (I) Pesquisa do Núcleo de Estudos da Violência da USP, que revela que 74% das prisões em flagrante por tráfico de drogas em São Paulo fundamentam-se exclusivamente no testemunho de policiais; (II) Dados de 2021 que mostram que, das 47.503 mortes violentas registradas no Brasil, 6.145 foram causadas por policiais – uma média de 17 mortes por dia; (III) Pesquisa da Anistia Internacional de 2014, que indica 80% dos brasileiros temem tortura policial em caso de eventual prisão, índice significativamente superior ao de países com IDH similar ou inferior; (IV) Levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública com 9.067 policiais, que revela que 18,4% foram vítimas de tortura pela própria instituição, 54,8% sofreram humilhações por superiores hierárquicos e 91,6% estão insatisfeitos com os níveis de corrupção em suas corporações; (V) Apuração da Folha de São Paulo que aponta redução de 85% na letalidade policial nos batalhões da Polícia Militar de São Paulo durante 2021, após a implementação de câmeras corporais.
A observação de tais dados revela um panorama desolador da segurança pública no Brasil e evidencia como a cultura jurídica de sobrevalorização do testemunho policial acaba por contribuir para a perpetuação de injustiças no sistema criminal.
A decisão oriunda da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça mostra a necessidade de revisão de práticas que, mesmo consolidadas, mostram-se incompatíveis com os princípios constitucionais e com a realidade empírica. O processo penal deve servir como instrumento de contenção do poder punitivo estatal, nunca como mera chancela de práticas policiais.