Amizade fraterna ou embaraços comuns

Poucas áreas da administração despertaram tanto interesse de Bolsonaro quanto a Policia Federal.  Ao longo de sua história, a instituição tem granjeado significativo conceito por seu profissionalismo, mas colecionado a idiossincrasia de alvos poderosos eventualmente atingidos por suas ações.  Corporação de Estado, polícia judiciária da União, seus agentes são protegidos por estabilidade funcional o que […]

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Valter Pereira

Poucas áreas da administração despertaram tanto interesse de Bolsonaro quanto a Policia Federal.  Ao longo de sua história, a instituição tem granjeado significativo conceito por seu profissionalismo, mas colecionado a idiossincrasia de alvos poderosos eventualmente atingidos por suas ações. 

Corporação de Estado, polícia judiciária da União, seus agentes são protegidos por estabilidade funcional o que lhe tem garantido razoável nível de autonomia.  

No entanto, esse traço típico da organização vem sofrendo duros ataques do atual governo, dado o perfil autocrata do presidente da República. 

Para o “capitão”, o princípio da hierarquia é superior aos deveres funcionais dos servidores; e a fidelidade ao serviço público deve subordinar-se aos interesses do Chefe.

O próprio Presidente confessou o intento de submeter a Policia Federal aos seus interesses pessoais. Foi na rumorosa reunião ministerial de 22 de abril de 2020. 

Naquele evento, ele foi taxativo: “Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio de Janeiro, oficialmente, e não consegui! E isso acabou. Eu não vou esperar foder a minha família toda, de sacanagem, ou amigos meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence a estrutura nossa. Vai trocar! Se não puder trocar, troca o chefe dele! Não pode trocar o chefe dele? Troca o ministro!”

E assim foi trocado o Ministro. Era Sérgio Moro, ungido ao Ministério da Justiça para carimbar a marca de idoneidade em Bolsonaro já no início de sua administração. Afinal, o ex-Juiz da Lava-Jato despontava como herói da anti-corrupção e, por isso, navegava em mar tanta popularidade que até instigava o “capitão” a carrega-lo debaixo do braço em estádios de futebol para amplificar aplausos recebidos. 

No entanto, as rachadinhas e outras mazelas de seus rebentos estavam na alça de mira da instituição que Bolsonaro definia como “… estrutura nossa” e as investigações contra família o incomodavam.

A queda de Moro foi o início do processo de desnaturação de uma corporação criada para ações de Estado, que acabava sendo empurrada para a política de governo ou à guarda pretoriana do establishment dominante. Não é por acaso que o atual governo é recordista na remoção de experientes delegados federais, cujo profissionalismo o incomodava. Já são contabilizadas duas dezenas dessas transferências, algumas das quais em prejuízo de atividades relevantes para o país, como a do delegado Alexandre Saraiva. O ex-Superintendente da PF do Amazonas foi pra geladeira depois de denunciar o então ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles em escandalosa facilitação de contrabando de madeiras.

Coerente com a intenção de proteger amigos e parentes, conforme anúncio na rumorosa reunião ministerial de abril, agora o “capitão” deixa escapar o “pressentimento” de que operação policial estaria prestes a tirar o sossego de seu ex-Ministro da Educação. Graças a essa premonição, Milton Ribeiro foi blindado, os pastores Gilmar Santos e Arilton Moura resgataram a liberdade. 

Ao cotejar este o episódio com as pilantragens da Covaxim, cujo prejuízo foi abortado por um servidor do Ministério da Saúde que recusara efetuar o pagamento antecipado da vacina indiana, expõe a desfaçatez do Presidente da República de insistir que seu governo está imune à corrupção.

Com o vazamento, que agora ganha o significado de “pressentimento”, o Presidente e seus pastores poderão escapar ilesos das investigações. A pergunta que cala é se o alerta foi para proteger amizade fraterna de ambos ou livra-los de embaraços comuns. De qualquer forma, a frustração investigativa por parte do mais alto mandatário, além de subverter a regularidade da atividade judiciária, é mais um péssimo exemplo de comportamento transmitido à sociedade. 

Valter Pereira, advogado.

Ex-Vereador, Deputado Estadual, Federal, Constituinte.

Ex-Senador da República