Estranhas prioridades e os freios necessários
Valter Pereira

A impessoalidade e a eficiência não são meras opções do administrador público; são princípios constitucionais aos quais governantes de todas esferas do poder estão subordinados. Para observá-los e conter a ação de autoridades que confundem o bem público com o domínio privado, a Constituição e a legislação infraconstitucional adotaram diversos mecanismos.

É um sistema de freios e contrapesos que protege a sociedade contra arroubos personalistas e aventuras autoritárias. Daí a incansável rotina de incursões de órgãos de fiscalização e controle sobre atividades das três esferas do poder. O Presidente Jair Bolsonaro tem sido alvo constante de tais mecanismos de controle por conta de decisões polêmicas, com danosas repercussões.

Detentor de perceptível déficit intelectual o “Capitão”, é avesso ao conhecimento técnico e científico e prefere a companhia e o aconselhamento de assessores escolhidos pelo nível de subserviência. Isso ficou fortemente demonstrado na pandemia do Covid-19, quando enveredou-se de peito aberto na contramão da ciência, a ponto de transformar simplórias opiniões pessoais em ações de governo.

Sem medir os efeitos danosos de tais desatinos, desprezou o aconselhamento dos melhores sanitaristas e infectologistas, livrando-se de dois médicos – Ex-Ministros Mandeta e Teich –, para entregar o Ministério da Saúde ao general Eduardo Pazuello, cujo vínculo com o chefe é sustentado na relação auto-confessada de que “um manda, o outro obedece”.

Com a subserviência do oficial intendente, o Presidente realizou o sonho de aprendiz de “curandeiro” ao prescrever o “kit Covid” para “tratamento precoce”. Ancorado em um antimalárico (Cloroquina) e um antiparasitário (Ivermectina), o tal “kit” consumiu cerca de R$ 250 milhões para não gerar resultado algum no combate ao vírus, exceto efeitos colaterais que agravaram a saúde de muitas vítimas.  Ao mesmo tempo que definia essa prioridade temerária, o “curandeiro-mor” postergava a compra de vacinas suscitando dúvidas sobre a eficácia delas. Seu corpo mole está diretamente ligado à lentidão da vacinação e da explosão de contágios e mortes.

Em dezembro passado, quando o mundo corria atrás da imunização, o Presidente declarava que “A pressa pela vacina não se justifica, porque você mexe com a vida das pessoas”. Era o mesmo diapasão do seu “Sancho Pança”, Pazuello: “Porque tanta ansiedade?” Afinal, a pandemia “está chegando ao fim” arrematava o Presidente em meados de dezembro, quando o Brasil já registrava cerca de 7.200.000 casos e 186.000 mortes.  Cerca de três meses de tais declarações, o número de infectados ultrapassa os 10,5 milhões; e a perda de vidas, mais de 255.000.

Enquanto a ansiedade de mandatários estrangeiros acelera a vacinação de suas populações, o governo brasileiro claudica na imunização, em consequência da falta de imunizantes que não foram comprados na quantidade e no tempo devidos. Se governadores e outras forças políticas adotassem a mesma lerdeza do governo federal, a situação poderia estar pior!. Basta lembrar da previsão do “logístico” Ministro Eduardo Pazuello, no início de dezembro: Se tudo estiver redondo, teremos o registro efetivo da AstraZeneca no final de fevereiro, dando início à vacinação”.

 

O atrevimento do governador João Doria, que fixou cronograma próprio e colocou o Instituto Butantan na importação e produção do imunizante,  acabou turbinando a reação de seus colegas e sacudindo o corpo mole do governo federal. Graças a essa atitude, quase 7 milhões de doses já foram aplicadas. E esse número não é muito maior, porque o governo desdenhou de ofertas como fez com a Pfizer. Dono de uma das mais eficazes vacinas, o conceituado laboratório tentou vender para o Brasil 70 milhões de doses, mas se deparou com a indiferença e incompetência do governo. A declaração do próprio Bolsonaro, em dezembro, diz tudo: “O Brasil tem 210 milhões de habitantes, um mercado consumidor de qualquer coisa enorme. Os laboratórios não tinham que estar interessados em vender para gente? – ignorância que desborda a velha lei da oferta e da procura.

 

Ao invés de seguir o exemplo de seus ídolos, e Boris Johnson , que perceberam o erro inicial de subestimar a magnitude da pandemia e apostaram cedo na vacinação, Bolsonaro segue à procura de outras alternativas após o fracasso de seu “kit covid”. Agora, está mirando a mais recente novidade: um spray nasal. Trata-se de produto para tratamento de câncer no ovário, desenvolvido em Israel. Testado em 30 pacientes do Covid-19, no “Tel-Aviv Sourasky Medical Center”, o fármaco teria dado boa resposta no tratamento da infecção. Mas isso não mudou o foco do governo israelense, que prefere a certeza da vacina, ao invés da esperança na descoberta recente.

Já o nosso valente “curandeiro-mor” quer avançar mais.  Movido pelo entusiasmo da suposta descoberta, anunciou que já pediu à Anvisa o “uso emergencial do spray nasal EXO-CD24”, sobre o qual já falou com primeiro-ministro de Israel. Para Bolsonaro, não importa o pequeno universo da pesquisa e a inobservância de protocolos de validação do fármaco israelense no combate ao Covid-19, cautela tomada por seu ídolo judeu. Se tivesse adotado a mesma celeridade na corrida pelas vacinas, nossa rede de saúde não estaria tão desfalcada dos imunizantes.

A hesitação do governo na condução da pandemia não resulta apenas da falta de planejamento ou da incapacidade gerencial do Presidente, como pode parecer.  Ofuscado pela pobreza de discernimento e sensibilidade, Bolsonaro é incapaz de incorporar o espírito de solidariedade humana. Sua frieza transborda em suas declarações:  1“Tem a questão do coronavírus também que, no meu entender, está superdimensionado o poder destruidor desse vírus”; 2 “Vamos todos morrer um dia”; 3E daí? Lamento. São apenas algumas das incontáveis idiossincrasias do “capitão-curandeiro”.

Na verdade, saúde e vida nunca foram prioridades no atual governo!  Por incrível que pareça, sua prioridade é a morte! Não só a pandemia evidencia isso.  Quem não se lembra da polêmica proposta das cadeirinhas? Ao propor o fim daquela exigência protetiva de crianças no transporte automotivo, o Presidente já revelava seu apreço pela morte, vez que este é o destino da maioria de vítimas tão vulneráveis. A medida constava do projeto de reforma do Código de Brasileiro, proposto em 2019 e nele constava outro encontro com a morte: a extinção de testes toxicológicos para condutores das categorias C, D e E. Seria a entrega de passageiros e de cargas à irresponsabilidade de condutores prisioneiros de drogas e livres de fiscalização. Felizmente, as prioridades do “Capitão” não são as mesmas do Congresso, cuja maioria, guiada pela razão, conteve mais esse desatino tentado contra a vida de inocentes.

No entanto, a porta mais escancarada para à morte, a liberação de armas e munições, acaba de sofrer mais um empurrão. Diferentemente da mais dolorosa crise sanitária do País, onde a lerdeza do governo retarda o socorro das vítimas e a vacinação em massa, o “Capitão” transborda esperteza na prioridade armamentista.

No auge da pandemia, quando o medo e a dor confiscam as atenções da grande maioria da população, o Presidente Bolsonaro aproveita para “passar a boiada” do armamentismo, assinando novos Decretos com objetivo de incrementar os embates fratricidas e enfraquecer as investigações criminais.

Para tanto, as medidas previstas admitem armas sem registro, suprime controles históricos do Exército sobre muitas delas, permitem estocagem de grande quantidade de munições, dispensam laudo de capacidade técnica para quem quer se armar e numerosas outras medidas que fazem toda alegria das organizações criminosas.

A prevalecer a vontade do Presidente, a criminalidade que hoje intimida, abrirá caminho para a guerrilha urbana que instaura o terror. A declaração do chefe do Governo de que “Povo armado jamais será escravizado”, feita na famosa reunião ministerial de abril do ano passado, e agora ratificada como prioridade em sua pauta, não deixa dúvida de que estamos sob o risco de transformar a violência urbana de hoje, em pandemia do crime, amanhã. Receitar gasolina para apagar incêndio é mais uma receita para matar, embora o “mito” ressalva que o “… povo brasileiro é forte e não tem medo do perigo”.

Mais uma vez, caberá ao e/ou Supremo Tribunal Federal manejar o sistema de freios e contrapesos necessários à prevalência da razão, ameaçada por estranhas prioridades que atendem grupos em prejuízo da maioria do povo brasileiro.

 

Valter Pereira, advogado.

Ex-Vereador, Deputado Estadual, Federal, Constituinte de 1986.

Ex-Senador da República