Mosca-morta, segundo o dicionário brasileiro, é uma pessoa sem ação, apática, que não é capaz de agir ou fazer mal a alguém. Outra definição é a de indivíduo dissimulado, que aparenta Inocência, mansidão, mas que é capaz de prejudicar outrem; mosquinha-morta. Quem acompanhou “A Vida da Gente”, novela das seis que termina nesta sexta-feira (6), há de concordar que esta é definição perfeita para a protagonista Ana Fonseca.
Impedida de ser vivida do começo ao fim, a história de amor de Ana (Fernanda Vasconcellos) e Rodrigo (Rafael Cardoso) enfrentou muitos obstáculos durante os 137 capítulos do folhetim de Lícia Manzo. Depois de Manuela (Marjorie Estiano), os principais empecilhos para a relação dos dois foram eles mesmos. Sem coragem, Ana se mostrou incapaz de bancar seu sentimento e abriu mão da própria felicidade ao lado do homem que amava para ficar bem com Manu.
A preocupação da ex-tenista era a de agradar a irmã. A mesma irmã que casou com seu namorado enquanto ela estava em coma. Ao acordar do estado vegetativo, Ana foi “obrigada” a agradecer Manuela por ter “roubado” sua vida, afinal, Júlia, sua filha, chamava a tia de mãe. Entretanto, o sentimento por Rodrigo não tinha se esgotado, e o arquiteto descobriu que também continuava nutrindo algo pela paixão de adolescência, interrompida em seu auge, por um acidente que resultou em um coma de anos.

Covardes, Ana e Rodrigo passaram a ter um caso e negaram para Manuela que ainda se amavam, até que, por uma armação de Eva, a confeiteira flagrou a irmã e o marido juntos, causando uma mágoa que só foi reparada no antepenúltimo capítulo.
O último capítulo, que vai ao ar na tarde de hoje, mostrará os dois colocando um ponto final na relação à distância, através de e-mails e não cara a cara, de tão covardes que são. Nos minutos finais da novela, Ana milagrosamente se dará conta de que “ama” Lúcio (Thiago Lacerda), o médico responsável por seus cuidados durante os longos anos em estado vegetativo.
Já Rodrigo perceberá que “ama mesmo” Manuela e se despedirá da paixão adolescente, sendo que há poucos capítulos ainda estava se rasgando e implorando para ter Ana ao seu lado. Num passe de mágica e ao mesmo tempo, os dois entenderão que o que viveram era um sentimento estúpido da flor da idade e terminarão tudo de vez com cartas enviadas por correio eletrônico.

Em seguida, Ana baterá na porta de Lúcio e beijará o médico. Rodrigo fará o mesmo com Manuela. E assim a novela se encerrará, causando frustração no telespectador do sofá que nunca engoliu a irmã usurpadora que ainda saiu de vítima. Basicamente, aos olhos do público, Ana abre mão da própria vida, do homem que ama e da exclusividade da filha, para se manter bem com uma irmã que a apunhalou pelas costas e boicotou qualquer chance de reaproximação entre ela e Rodrigo, além de minar a construção de seu relacionamento com a filha Júlia.
Em nome de um amor cego de irmãs, a autora passa por cima de básicos princípios humanos, que para o povão da vida real, seriam imperdoáveis. Construindo uma história imperfeita, defeituosa, com buracos, trágica e sem dar trela aos romantismos folhetinescos, Lícia Manzo frustra o telespectador que espera fantasia.
De forma geral, soa subversiva a narrativa que mostra uma irmã se apossando da vida da outra enquanto ela está em coma. A irmã acorda do coma, tenta pegar a vida de volta, mas a usurpadora acha ruim e boicota a retomada. No final, a usurpada abre mão do que a faria feliz apenas para ficar bem com a usurpadora, que segue intacta com a vida que usurpou. Meio estranho, não?

Parece uma visão deturpada ou uma interpretação equivocada da mensagem do folhetim, mas a julgar pelo o que se ouve e se lê do povão na internet, nas ruas e nos grupos, o telespectador do sofá pensa exatamente dessa maneira. A obra de Lícia Manzo termina com um saldo mediano e deixando as mesmas impressões de quando foi ao ar pela primeira vez, em 2011 e 2012.
“A Vida da Gente” faz jus a seu título, por contar uma história cheia de buracos, de vivências que estacionaram, morreram, e não levaram os personagens a lugar algum. Até porque, a vida da gente é mesmo dessa forma: cheia de histórias que não sabemos porque aconteceram, elas só aconteceram e tomaram um bom tempo da nossa vida.
Com protagonistas acovardados, a autora também endossou a incapacidade humana, desmistificando os tipos heróicos que predominam em papéis de destaque em telenovelas. Ana e Rodrigo foram “bisonhos” na condução dos relacionamentos, assim como as pessoas são na vida real, de forma a encerrar a relação principal por trás da tela de um computador. Confira na íntegra as cartas do casal que acabam com “A Vida da Gente”.
Rodrigo
Ana, minha querida,
Dizem que o amor acaba, que o amor termina. Mas não é verdade. Nada acaba, tudo dura, continua e se transforma.
Enquanto eu aguardava aquela cirurgia, mil anos se passaram. As duas estavam lá dentro e eu pensava: “se acontecer alguma coisa com elas, eu morro!” Dizem que passa um filme da nossa vida na nossa cabeça. E por isso eu vi: vi vocês duas, meninas, chegando na nossa casa. Vi nós três juntos, ainda pequenos e tantos e tantos momentos. Vi você erguendo taças, troféus. Tua imagem na revista, inacessível, distante da criança que eu era. E que você era também.
Depois a nossa fuga de casa, veio o nosso medo, veio a nossa coragem, veio o salto sem rede que tantas vezes se chama amor. Vi você indo embora, sendo levada de diferentes formas, tantas e tantas vezes. E depois vi você voltando e no fundo de seus olhos, como num rio, tudo que a gente não tinha vivido. A partir daí eu me vi dividido entre dois amores, entre duas vidas: uma que eu estava vivendo e outra que eu jamais tinha podido viver.
Durante os meus piores momentos enquanto eu aguardava naquela sala, foi como se a doença da nossa filha tivesse me curado. Eu entendi que não tinha mais divisão nenhuma. O que tinha sido vivido, o que tinha ficado pra trás, tudo, era parte de uma mesma história, de uma mesma vida e de um mesmo sentimento: amor. E foi então que eu vi nós dois juntos cruzando a fronteira.
Ana
Como se eu tivesse alcançado a outra margem de um rio. O rio onde a gente se amou pela primeira vez, o rio do meu acidente, mas sempre um rio. E porque naquele momento eu precisava ser forte, finalmente, sem escapes, eu consegui atravessar aquele rio eterno. Como se num instante, eu tivesse vivido todos os anos que ainda estavam parados em mim, me esperando.
Do outro lado da fronteira, que sem perceber nós já tínhamos cruzado, uma infância compartilhada, uma adolescência truncada, uma juventude não vivida. Do lado de cá, dois adultos maduros finalmente libertos daquele fardo pesado feito de lembranças, de sonhos antigos. Porque há novos sonhos do lado de cá da fronteira. E agora podemos viver!