Na minha cabeça, já estava fazendo muito em ajudar. Seu Severino, daqueles que faz de tudo, plantava mandioca no terreno da frente e passaria despercebido, não fosse me chamar para conversar.
“Ô fia, não quer limpar o seu quintal, baixar o mato um pouquinho?” Eu já tinha uma pessoa que faz este serviço, mas, algo me tocou para levar o bate-papo adiante e foi dos mais prazerosos que tive…
“Quanto o senhor cobra?”, eu disse. E ele: “Oitenta. Não, eu vou dar o saco, limpar um pedacinho lá fora. Cem reais, minha fia, pode ser?” Demorei um tempinho, porém, respondi que poderia fazer o serviço, achando que logo após a mexer na plantação da mandioca, já iria começar.
Logo entrei, precisava adiantar a faxina de sábado. Passou um tempo, a campainha toca, e lá vem ele com duas mandiocas na mão. “Pra você. Tá boa essa. Minha mulher cozinhou esses dias, tá bem boa”. Eu agradeci e seu Severino então foi explicar que viria somente no outro dia para fazer o serviço.
Analfabeto, mas trabalhador e com muita sabedoria de vida
“Tudo bem seu Severino, sem problemas. Venha tal hora, porque antes não vou estar em casa. O senhor aceita Pix?” “Não, eu sou analfabeto minha fia. Preciso do dinheiro em papel”. Ao que eu emendo: “Ah tudo bem, sem problemas, vou lá no banco e tiro para o senhor”.
Para minha surpresa, no outro dia, lá estava ele cedo, capinando. Sol começando a dar as caras, dei bom dia ao Severino e perguntei se não queria uma água gelada ou um suco. Ele então levanta a enxada e aponta para a bicicleta. “Obrigada fia, eu carrego”, mostrando o galãozinho azul amarrado. Na hora, ainda comenta que tinha um pouco de mato misturado às pedras, e estava “enjoadinho” de tirar.
Mais uma vez entrei. Ainda na faxina, fui para a cozinha. Rapidão coloquei um bolo de chocolate para assar. Faria a calda depois, quando tudo estivesse limpo. Seu Severino me chama, pede um saco grande e eu decido catar o mato enquanto ele capina.
‘Cheguei no Mato Grosso e casei com a filha do patrão’, relembra
Eu não lembro a pergunta que fiz, só sei que foi a deixa que Severino precisava para prosear sem parar. “Eu cheguei aqui com dois par de roupas. Meu sonho era vir pro Mato Grosso. Eu vim do nordeste. Aqui eu fui trabalhando, trabalhando, já trabalhei muito nesta vida e ainda trabalho com a ajuda de Deus. Quando eu cheguei, ninguém me dava bola, mas eu casei com a filha de um patrão”, comentou.
E continua. “Estou casado há 53 anos. E depois de um tempo, minha mulher quis pegar um menino para criar. Eu fui descobrir, depois de muitos anos, que minha sogra dava remédio para minha mulher não engravidar. Ela não gostava de mim porque eu era pobre. Mas, já passou. Ela faleceu, eu perdoei ela. E o guri que criamos nunca me respondeu. Ele tem duas filhas, está com 42 anos”, disse.
Nesta hora, já impressionada com tamanha experiência e sabedoria, pergunto se não aceita um bolo, quentinho, acabado de sair do forno. Ele diz que não, que prefere acabar o serviço e ir pra casa descansar. “Eu agradeço muito as pessoas que aparecem no meu caminho, principalmente as mulheres. São pessoas boas, me dão serviço e tem umas que sempre me ajudam. Ganho arroz e feijão, vixi maria. Eu considero como filhas. Igual você, já é a minha filha agora”, argumentou.
Severino venceu um câncer e saiu aplaudido do hospital
Severino vai finalizando, eu o achando tão franzino, e pergunto se está muito cansado. “O sol castiga um pouco, mas, é só isso. Tenho saúde, quer ver uma coisa? Nisso levanta um pouco da camisa e mostra a cicatriz. Eu venci um câncer, minha fia. Lá no hospital os médicos ficaram tudo admirado, eu fico emocionado só de lembrar. E brincava com as enfermeira, dizia que ia visitar uma por dia se eu fosse embora. Elas davam risada. Na hora de embora foi lindo, todo mundo batendo palma e me abraçando”, contou.
Chegou a hora do pagamento, entreguei os cem reais. Ele firmou o olho, conferiu: uma nota de cinquenta, duas de vinte e uma de dez. “Tá certo. Obrigada minha fia, precisando, só chamar. Está faltando R$ 200 para o meu aluguel. Tô com essa divída atrasada. Vou juntar com esse e, amanhã cedo, tenho outro serviço e aí já consigo pagar. O resto lá fora eu venho catar na terça, pode confiar. Se todo mundo fosse igual eu, o mundo seria um lugar melhor para viver”, finalizou.
Estarrecida com o presente que foi conhecer seu Severino, fiquei com ele em pensamento e até tive coragem de pedir uma foto. “Será que conseguiu pagar o aluguel?”, me pergunto sempre. Ao mesmo tempo, questiono: “Quantos Severinos existem por aí e passam despercebidos? Há quanto tempo a gente não para e conversa com um Severino da vida?”.
Eu garanto que será um presente!
