Vinte anos lidando com pessoas e uma história de vida que muitos sequer imaginam, o que inclui a perda de um dos três filhos e um casamento de 27 anos findado porque, em um dia comum, o marido acordou e, na frente das crianças durante o café da manhã, disse que iria embora porque queria “ser feliz”. Pegou o rumo e sumiu. O histórico, por si só, poderia ser o motivo de não ver graça na vida, mas, é justamente o motivo que tornou Marisa Barreto dos Santos, de 78 anos, um alguém tão especial.
No decorrer dos anos, após um convite inesperado, se tornou catequista e criou até o termo “amassanhados”, após escutar uma liderança religiosa falar de pessoas massacradas pelo mundo, as mais machucadas, segundo Marisa. Assim, nas últimas duas décadas, dedicou horas para ensinar crianças e depois adultos e perdeu as contas do tanto de gente que se tornou madrinha, algo que leva muito a sério.
“Quando chega no momento de falar sobre a escolha do padrinho ou da madrinha, eles ficam muito preocupados. Eu sempre explico que não é aquele padrinho do churrasco, da cerveja, é a pessoa que vai adentrar a sua casa, sua vida particular, e ressalto que é para pensarem muito bem para não ter arrependimento. E nisso cai a ficha de muitos, digo que é alguém que precisa ter o sacramento da igreja também, até para ajudar esta pessoa em algum momento, algum problema no casamento, por exemplo. Não é igual o padrinho que dá uma geladeira e um fogão. E nisso muitos ficam atordoados”, explicou Marisa.
Catequizandos entendem que compromisso da madrinha ou padrinho é muito importante

Segundo a catequista, muitos, que antes se achavam cheio de amigos, entendem que este compromisso é diferente e logo falam com ela. “E é assim que me pedem para assumir este compromisso, seja na catequese, crisma, casamentos e batizados, então, me pedem. Muitos ficam sem saída e eu falo que vou, que está resolvido o problema. E nisso tenho afilhados aqui, em Santa Catarina, no Japão, em vários lugares. São centenas, milhares, não sei, já perdi a conta”, contou.
Durante muitos anos, Marisa falou que atuou na Igreja Perpétuo Socorro, localizada na Avenida Afonso Pena, em Campo Grande. “Uma das minhas afilhadas era a Vanessa [vítima de feminicídio]. Ela me procurou na igreja e me tornei madrinha dela também. Só que, recentemente, me convidaram para atuar como ministra de eucaristia na Igreja Matriz Paróquia Santo Agostinho de Hipona, que fica na Rua Franklin Espíndola, e lá estou trabalhando com o padre. A catequese funciona aos domingos, para os adultos agora”, argumentou.
Antes desta caminhada, porém, Marisa diz que jamais imaginou atuar na igreja como catequista. “Eu ia na igreja como musicista, fazia leituras, só que um dia um bispo de Dourados, o Dom Henrique, que era padre na época, me chamou e me deu esta missão. Eu respondi: ‘Credo padre, sou uma mulher separada, não posso dar catequese. E ele respondeu: ‘A senhora tem um testemunho de vida’. E eu fiquei com aquilo na cabeça, mas, ao mesmo tempo achando que ele tinha ido longe demais, só que não era ninguém leigo falando”, relembrou.
‘O que me interessa é se guardaram as coisas que falei’, diz catequista

Desta forma, Marisa aceitou o pedido e passou a conviver com as crianças. “Passei por todas as etapas, crianças, adolescentes e adultos. Muitos não guardei o nome, mas, hoje com celular e internet vou reconhecendo muitos. Teve um dia que eu peguei um papel e comecei a escrever o nome deles, mas, quebrei a cabeça e perdi a conta. O que me interessa é se guardaram as coisas que eu falei. E fiquei tão feliz esta semana, recebi uma ligação de Santa Catarina, de um rapaz, que casou e mudou para lá. Ele perguntou se poderia me visitar quando viesse para cá”, afirmou.
Em um mundo tão difícil, Marisa fala que as pessoas precisam de atenção e carinho. “A gente vive rodeado de falsidade, então, as pessoas estão sofrendo, muitas delas vazias, precisando de carinho, de um bom dia com sinceridade, um abraço de verdade, e eu falo sobre tudo isto na catequese. Os adultos chegam amassanhados pelo mundo, à procura do sacramento, e isso inclui pessoas com dinheiro sem dinheiro, todas chegam do mesmo jeito”, ressaltou.
Conforme Marisa, muitos procuram a igreja com 60 anos ou até mais, entendendo que precisam do sacramento para terem uma vida mais tranquila. “Quem quiser se aproximar de Deus entende que, em primeiro lugar, temos os 10 mandamentos. É algo lá de trás que não mudou nada. É como se fosse uma constituição. Aliás, temos a nossa constituição, mas, não é respeitada, tanto que o Brasil está do jeito que está”, falou.
‘Tem pessoas que não morrem, ficam agonizando, porque carregam culpas’, explica Marisa

Quando se fala em ser humano, Marisa ressalta que todos dependemos uns dos outros e, ao mesmo tempo, de Deus. “Já tivemos casos de pessoas agonizando, que não conseguiam morrer, porque carregam culpas. Tivemos um caso no antigo Hospital das Clínicas, hoje Hospital do Coração, de um paciente que estava há algumas semanas em coma e, antes de entrar neste quadro, pediu a presença de um padre. A equipe, as enfermeiras no caso, tentaram várias pessoas, até conseguirem falar comigo, e aí eu fui atrás de um padre”, contou.
Neste sentido, Marisa fala que só do padre tocar na mão do paciente já fez uma diferença enorme. “Eles sentem mais segurança. E não é uma história contada não, eu vi com meus próprios olhos, essa questão de fazer a pessoa entender que alguém o ama. E esse alguém é Deus, que não deixa de nos atender. Ao contrário do homem, que cobra até a água porque descobriu a fórmula de encanar, só que a água é um presente que Deus deixou pra gente, então, a gente fala de um olhar diferenciado para vida, uma vida sem sofrimento, na qual Deus te coloca no colo”, afirmou.
Durante a caminhada, a catequista fala ainda que ganha filhos ao olhar seus corações. “Hoje eu entendo que passei tudo o que passei para viver o que vivo hoje. Entendo que, só por sair da minha casa para fazer a obra, doando o meu coração, é algo maravilhoso. Eu poderia ser uma pessoa depressiva, até com ódio do mundo, mas, não é assim. Ouço as pessoas com paciência, muitas vezes com histórias repetitivas, só que ou eu enlouquecia com a perda da minha filha ou amava mais ainda as pessoas”, falou.
No alicerce desta preparação, Marisa fala que estudou em uma escola onde foi catequizada por freiras. “Minha família não frequentava, mas, até esta base que eu tive foi o meu alicerce. E tive também a minha neta, que era uma pirralhinha ali, criada comigo, mas, que fomos uma a segurança da outra. Não parecia que era uma criança em vários momentos, fomos segurando uma a mão da outra e eu até conto sobre isso na catequese. E falo o tanto que a gente precisa um do outro, do bom dia com amor, a gente sente no coração que aquilo é amor e não deboche, do olhar bom e tudo mais”, finalizou.
