Túmulos com comidas e cemitério para receber crianças: a tradição que marca o Dia de Finados em cidade de MS
Crianças se preparam e aguardam ansiosas o Dia de Finados para irem ao cemitério propagar tradição
João Ramos –
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Caixas e mais caixas com guloseimas, lanches, salgados, refrigerantes, bolos, chipas e todo tipo de quitute. No Cemitério Municipal de Porto Murtinho (MS), fronteira com o Paraguai, o Dia dos Finados é assim, repleto de comidas levadas aos túmulos como símbolo da partilha e conforto para a dor. A data, na cidade localizada a 360 quilômetros de Campo Grande, é uma verdadeira confraternização solidária em memória das pessoas amadas que já se foram.
É em nome do amor que dezenas de famílias lotam o cemitério do município para propagar uma tradição que atravessa gerações. Como Porto Murtinho fica na fronteira com o Paraguai e a maior parte da população da cidade é descendente do país vizinho, a cultura católica do famoso “Dia de los muertos” criou raízes por ali.
Reunidos pela dor, moradores vão ao cemitério e passam o dia inteiro sobre os túmulos de seus entes. Para tanto, eles levam caixas com alimentos e dividem entre si, sem qualquer cobrança. Há ainda quem leve apenas para distribuir às crianças – estas que têm como tradição recolher doces no local no Dia de Finados.
Além disso, há famílias que carregam os preparos preferidos dos familiares falecidos, para honrá-los e também confraternizar sua memória com os demais visitantes.
Comidas em túmulos variam dependendo da família
O comportamento nasceu da tradição paraguaia de celebrar os que já partiram e tentar, de alguma forma, fazer o dia dedicado a eles um pouco mais leve. Principalmente por ser voltado a atender as vontades da criançada, que enche o cemitério em busca de balas, pirulitos, além de participar das homenagens póstumas.
A cultura é levada a sério e seguida à risca, e a maior razão que motiva as famílias a realizarem a ação no cemitério é não deixar o legado de seus antepassados se perderem com o tempo.
Há de tudo nos túmulos, onde alimentos ficam sobrepostos para quem quiser pegar. Bolos gelados, cachorro quente, café, chipa, pão doce, refrigerantes… Algumas famílias, inclusive, se preparam com muita antecedência para entregar kits de biscoitos na data.
Como é o caso de Liliana Elizabeth, de 37 anos. Ela perdeu o filho Gean, de 16 anos, em 2019. Desde então, oferta salgados, refrigerante e sacos de doces no Dia de Finados. “A gente faz para compartilhar com os amigos dele que vêm visitar. Desde que ele faleceu, nós trazemos tudo que ele gostava de comer e dividimos com as pessoas”, diz ela à reportagem.
A murtinhense também relata que se organiza bem antes para poder oferecer o melhor no cemitério. Encomenda os salgadinhos, compra doces de um caminhão para montar os pacotes e dedica alguns dias preparando tudo o que será servido. Afinal, apesar de ser um dia doloroso, o momento também é de doação.
Promessa de filho para mãe não deixa tradição morrer
No caso de Marcial Romero Nunes, de 74 anos, as visitas ao túmulo de sua mãe e sua esposa são um compromisso sagrado. A cultura nasceu com a matriarca paraguaia, falecida há 30 anos. Antes de partir, ela combinou com o filho que ele continuaria sua tradição.
“Para mim, é sagrado. Tenho esse compromisso com minha mãe e minha esposa. Prometi para minha mãe. Ela me disse antes de partir: ‘se você vai me visitar [no cemitério], eu quero morrer na sua casa’. E ela faleceu em minha casa, então eu cumpro essa promessa”, recorda.
Além do Dia de Finados, Marcial comparece fielmente ao cemitério todas as segundas-feiras para visitar as pessoas que mais amou na vida. “Nunca abandonei minha família, porque isso aqui é o que ficou pra gente. Por isso que faço essa visita. Era uma companheira e tanto”, afirma sobre a esposa.
“É como tomar um cafezinho com os vizinhos”, explica moradora sobre tradição
Michella Aparecida Meza, de 49 anos, honra a memória do filho, Caiky, e pensa nas crianças que vão ao lugar, já que um dia ela foi uma das pequenas que frequentou o cemitério para recolher quitutes. “É um momento de partilha com nossos entes queridos, a gente vem ficar e passar o dia com eles, e ao mesmo tempo dividir com os outros”, comenta.
Sobre a maneira como eles vivenciam o Dia de Finados, ela explica: “É como se fosse tomar um cafezinho com os vizinhos, compartilhar com outras famílias um pedacinho da nossa dor. Eles vêm, acendem vela aqui, a gente vai e acende lá, é como se estivéssemos retribuindo esse gesto de carinho”.
Michella detalha que leva alimentos aos túmulos desde que seu filho faleceu, mas sua mãe sempre levou para outros familiares. “Eu vinha quando criança pegar balas, pirulitos. Cada família vai tomando essa tradição de acordo com suas perdas. É uma tradição que não se apaga, não morre. Eu vim como criança e hoje eu estou aqui como uma mãe que perdeu um filho”, relata.
“No decorrer do tempo, parentes começaram a trazer mais coisas para dar para as crianças. E aí se tornou uma tradição, as crianças vêm para o cemitério com suas famílias já no intuito de levar os doces. Então a gente traz paçoquinha, pirulito, minha mãe traz bolo, chipa”, detalha.
Assim como muitos, Michella é uma das murtinhenses que também vai ao cemitério todas as segundas-feiras para trocar o paninho da cruz do falecido herdeiro. “Mas hoje a gente passa o dia inteiro aqui, dividindo esse momento”.
Continuar legado é o que move parentes
Mirlene Martinez esteve no local acompanhada da mãe, dona Maria Ilda, neste sábado (2) de Finados. À reportagem, ela diz que, curiosamente, perguntou ao pai no dia anterior como a tradição de levar alimentos ao cemitério começou em sua família.
Na conversa, a murtinhense relata que foi a avó paterna, paraguaia falecida há 32 anos, quem deu início à cultura entre os descendentes. “Lá no Paraguai eles fazem isso, levam sopa, chipa. Aqui nós trazemos doces, faço chipa, biscoitinho. É para continuar o que ela começou, continuar a tradição dela”.
Por fim, a reportagem ouviu alguns adolescentes que foram ao ambiente de paz para participar da celebração. De Jardim (MS), a jovem Kessilyn diz ter ficado impressionada quando se mudou para Porto Murtinho e descobriu que ali o Dia de Finados ocorria dessa maneira.
“Quando cheguei em Murtinho eu não sabia de nada, porque é diferente a cultura deles. Daí fiz amizade e me falavam que pegavam doces no cemitério, então eu passei a vir junto”, recorda.
Já Alessandro, morador de Porto Murtinho, começou a recolher doces no local a partir do momento que seu irmão mais velho faleceu. “É como se meu irmão estivesse ali. É um dia especial, de lembranças e visitas, de rezar para os entes”, reflete, saudoso.
Questionados se as comidas oferecidas nos túmulos são gostosas, eles respondem com entusiasmo e sem pestanejar: “É maravilhoso”, “eu como tudo quando chego em casa”.
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