A cidade onde as pessoas brigam por lixeira, mas param o trânsito para capivara atravessar
Em 124 anos de Campo Grande, quais os comportamentos adquiridos ao longo das últimas décadas que caracterizam o atual jeitinho campo-grandense de ser?
João Ramos –
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Toda sociedade tem lá suas contradições e a campo-grandense não seria diferente. Dependendo do olhar, quem vive em Campo Grande pode se considerar habitante de um paraíso peculiar, cheio de comportamentos tão próprios que caracterizam um “jeitinho campo-grandense” de ser.
Mas, que jeitinho seria esse? Observando a maneira como os moradores agem em sociedade, as condutas se dividem entre as louváveis, dignas de aplausos e admiração, as engraçadas, que provocam risadas e divertem o dia atribulado do povo, e as reprováveis, das quais os campo-grandenses assumem as falhas e não se orgulham nem um pouco.
Em suma, segundo quem vive na Capital de MS, Campo Grande é a cidade onde as pessoas brigam por espaço na lixeira, mas param o trânsito para as capivaras atravessarem. Ou ainda, que respeitam, de certo modo, a passagem dos roedores pelas ruas, mas não têm a mesma preocupação com os pedestres e com outros condutores, conforme apontam os próprios moradores.
Neste sábado (26), a Capital de Mato Grosso do Sul completa 124 anos. E, em mais de um século, quais são os comportamentos adquiridos ao longo das últimas décadas que hoje representam a sociedade campo-grandense? Para celebrar a data, listamos algumas das situações que, segundo os moradores, “só acontecem em Campo Grande” e espelham um panorama desse jeitinho campo-grandense de ser, com contradições, boas e nem tão boas atitudes assim.
O “paraíso local”
Conviver com araras, que pousam com familiaridade em qualquer canto e até em pessoas, com jiboias andando pela cidade e com as queridinhas capivaras dá a alguns a sensação de morar em um paraíso. As capivaras, inclusive, são mais respeitadas que muita gente em Campo Grande.
Questionamos aos moradores quais atitudes mais admiram nos campo-grandenses e, entre as respostas, uma bem peculiar: “Tem uma coisa que só o campo-grandense faz que é parar o carro, moto, o que for, pra capivara atravessar”. E não é que é mesmo? Mas, para a retórica, há uma ressalva: “Nem sempre, porque também tem muita capivara que morre atropelada por aí”. Mesmo assim, a maioria costuma parar para elas atravessarem.
Além desses argumentos, “São solidários” e “Reunião de almoço no domingo na casa dos amigos e família”, foram algumas outras respostas ouvidas pela reportagem. Outra, envolvendo o reino animal, também chamou atenção. “Marco a hora que os pássaros ou araras passam. Eles são pontuais, nem preciso de relógio”, disse uma moradora, sobre o que admira no jeitinho da cidade.
No entanto, a maioria respondeu que não consegue enxergar atitudes positivas na sociedade da Capital. “Infelizmente, no momento não consigo pensar em nada admirável. Precisamos evoluir como pessoas”, resumiu um campo-grandense.
A parte ruim
Já em relação às atitudes menos louváveis, a reportagem reuniu relatos já bem conhecidos por todos, envolvendo a “má fama” campo-grandense no trânsito e outras ações muito características de quem vive na cidade.
Entre as reclamações, figuram na lista: “Não dão seta”, “Não dão bom dia”, “Ninguém respeita no trânsito, Campo Grande tem o pior trânsito”, “Ubers não aceitam corrida, ficam escolhendo. Ou não aceitam pra deixar ficar dinâmico. Os motoristas cancelam à toa e a gente se lasca” e “Campo Grande é o único lugar onde as pessoas brigam por lixeira”.
Como assim briga por lixeira?
Pois é. Na Capital de Mato Grosso do Sul, têm sido recorrentes os casos de brigas de vizinhos por conta das lixeiras. É que muita gente não tem um recipiente para depositar o próprio lixo na frente de casa e acaba colocando a sujeira acumulada na lixeira do vizinho.
A situação, considerada abusiva, gera muito incômodo e indisposição, a ponto dos moradores frequentemente instalarem placas com avisos à vizinhança. Os recados, além de exporem a problemática das lixeiras, também evidenciam que, em Campo Grande, os vizinhos não costumam se comunicar e, na maioria das vezes, nem se conhecem.
Recentemente, uma placa em lixeira de residência no Jardim Noroeste deu o que falar na Capital. “Vizinho folgado, não deposite seu lixo aqui. Na porta da sua casa, também passa lixeiro! Não sou obrigada a juntar seu lixo e sorria, você está sendo filmado, só olhar pra cima”, avisava o cartaz. Veja:
Usurpar lixeira é moda em Campo Grande, afirma quem vive na Capital
Uma moradora que se identifica com a situação sai em defesa do vizinho chamado de folgado. “Eita que essa foi pra mim… meu vizinho não gosta, parei de colocar na lixeira. Mas os cachorros espalham tudo na rua, eu recolho, só que a frente da minha casa é pequena e tem um poste. Mas, beleza, fazer o quê? Não é minha mesmo”, diz ela.
“Parece que é moda em Campo Grande os vizinhos fazerem isso”, “Preciso colocar uma placa dessa na minha lixeira”, “Aqui no meu bairro tem uma nesse estilo, porém a plaquinha é menos ameaçadora” e “Vou mandar fazer uma dessa”, foram comentários dando respaldo à ação do dono da lixeira usurpada.
Contudo, também houve quem criticasse a atitude. “Por que tanta apropriação com a lixeira? Se estiver embalado, não acho ruim. De fato, não gosto quando colocam garrafa de cerveja solta, casca de banana solta porque estas coisas o lixeiro não leva e eu que tenho que juntar, mas em saquinho fechado, não vejo problema”, contrapôs uma campo-grandense.
“Sua porca”
Um caso mais antigo, na Vila Planalto, agitou a vizinhança há alguns anos, provando que a problemática não é de hoje. Alguém cansado com a displicência do vizinho na hora de depositar o lixo deixou um recadinho “caloroso” em uma placa instalada na lixeira: “Favor jogar lixo no saco, sua porca”, em mais um caso em que o diálogo não imperou.
“Cadê o dono?”
No início deste mês, a indignação de moradores do bairro Rita Vieira com um terreno baldio resultou em mais uma plaquinha direta. A situação de sujeira e abandono do espaço se prolonga há tantos anos que uma moradora mandou fazer uma faixa para procurar o proprietário.
“Procura-se o dono para limpar e fazer calçada”, diz o cartaz fixado na cerca do terreno. A ideia da campo-grandense, que preferiu não se identificar, é chamar atenção para o problema que tem levado até ratos para as casas mais próximas. Ela desembolsou R$ 100 do próprio bolso para mandar confeccionar a faixa e acredita que fez um bom investimento, já que situação dura anos.
Assim, todos os exemplos acima mostram que, em Campo Grande, as pessoas têm mesmo o hábito de tirar dinheiro do próprio bolso para mandar recados para os vizinhos em forma de placas e cartazes, evitando assim o contato direto com os causadores dos problemas.
Campo-grandenses preferem as capivaras aos próprios campo-grandenses?
Pois bem, essa sociedade que se recusa a dialogar com os vizinhos, briga por lixeira e instala as plaquinhas “da discórdia” é a mesma complacente com capivaras bonitinhas que costumam atravessar nas faixas de pedestres.
Isso evidenciaria, de certa forma, uma preferência do campo-grandense pelas capivaras do que pelas pessoas? Professora aposentada e renomada pesquisadora campo-grandense, Alisolete Weingartner, de 86 anos, acha louvável a preocupação e a adoração com as capivaras, mas entende que a atitude precisa se estender à população, especialmente no trânsito.
“Isso é uma coisa muito bacana, muito bonita, porque a capivara é uma relíquia nossa cultural. Isso sim é um comportamento ideal de Campo Grande, de nenhuma outra cidade, que tem esse prazer de ter a capivara no Centro da cidade”, comenta ela sobre o hábito de parar os veículos para os roedores atravessarem.
Porém, a professora lamenta o fato do mesmo respeito não ser observado para com as próprias pessoas no trânsito, e diz que a mesma, em uma cadeira de rodas, sofre com o comportamento padrão do campo-grandense para com o próprio campo-grandense nas ruas. “A gente vê muitos absurdos no trânsito, ninguém tem respeito. Tenho essa crítica bem severa com isso. Eu não sou capivara, eu sou gente”, contrapõe a historiadora.
Jeitinho campo-grandense é complexo, reflete historiadora
Para ela, Campo Grande é cosmopolita, ou seja, uma Capital onde há uma união entre culturas. Isso, no entanto, expõe uma crítica em relação à efetividade. De acordo com alguns cientistas políticos, o cosmopolitismo generaliza a maneira de viver e as características diferentes de todas as nações.
“Esse jeitinho do campo-grandense é uma coisa muito complexa porque a cidade é cosmopolita. Em poucos anos de Capital, a população triplica cada vez mais. As pessoas chegam, acham que o povo daqui não é muito evoluído e então têm umas atitudes, às vezes, fora do normal”, observa, atribuindo parte dos comportamentos ao englobamento dos povos.
Já sobre as instalações de plaquinhas com recados e o costume de não falar com vizinhos, a historiadora que passou parte da vida pesquisando e estudando a cultura de Campo Grande pontua:
“Isso, de recado em lixeira, é falta de união mesmo, de conversar, um acha que é superior ao outro e acontece porque são pessoas que ficam fechadas. O olhar que elas têm é o absoluto, só elas estão certas”, exclama.
O que admirar no campo-grandense?
Porém, Alisolete chama atenção para o que há de belo a se admirar na população. “Nós temos coisas muito mais bonitas, esses animais, araras, periquitos, os quatis, as capivaras, nós convivemos com eles de uma forma humana. Temos pessoas de todas as idades que primam pela preservação, pela arborização da cidade, que tem muitas belezas, detalhes que mostram realmente um campo grande. Qual outra cidade tem isso, uma coisa tão bonita, que vem a identificar o campo que é grande?”, reflete ela.
Questionada sobre qual atitude mais admira no campo-grandense, a pesquisadora não consegue elencar uma, mas argumenta. “É muito difícil colocar uma tarja. A população é cosmopolita, nós recebemos influência de todas as partes do mundo. Não posso dizer que esse comportamento que hoje nós temos vai durar tantos anos”, diz.
Por fim, ela acredita que a Rota Biocêanica, que possibilitará ligar o oceano Atlântico ao Pacífico, no Chile, tendo Porto Murtinho, em Mato Grosso do Sul, como ponto de partida do Brasil, pode trazer novos ares, novas pessoas e, dessa forma, interferir no comportamento da população não só de Campo Grande, mas de todo Mato Grosso do Sul. “Assim como a ferrovia um dia mudou tudo”, finaliza a historiadora.
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