A casa que todo mundo vê e o que nem todo mundo sabe: a ‘história real’ por trás de imóvel no Centro
“Com muita dor, eu relembro de tudo isso”, diz bisneto do primeiro dono da casa
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Você está a caminho do Centro de Campo Grande pela rua Treze de Maio. Atravessa a Avenida Mato Grosso e o próximo semáforo fecha. Na esquina com a rua Antônio Maria Coelho, o jeito é esperar e olhar ao redor até o sinal ficar verde. No entorno, um prédio sempre chama atenção.
Seja de ônibus, carro ou moto, é impossível passar pelo cruzamento das duas ruas sem reparar no imóvel antigo, tombado pela Prefeitura e carregado de histórias. Ali, todo mundo passa, todo mundo vê, mas nem todo mundo sabe quem viveu ali e o que aquela propriedade um dia representou e ainda representa. Alguns se perguntam sobre o histórico do lugar, outros só observam sem “curiar” sobre seu passado.
Beto Magalhães, bisneto do primeiro morador, decidiu revelar a “história real” por trás da emblemática casa. O relato surgiu depois que um interessado em saber do passado do prédio publicou nas redes sociais sua indagação: “Alguém sabe o que foi esse lugar?”, questionou. Não demorou nada para que Beto se pronunciasse e abrisse o jogo sobre o histórico do local, que se encontra abandonado há anos, tomado pelo mato, já quase em ruínas.
“Me dá dó ver essa casa neste estado. Passei minha infância brincando ali dentro, principalmente assustando as pessoas pela ventilação do porão que dá para a rua. Essa casa foi construída em 1922, por Ignacio Gomes, meu bisavô, avô da minha mãe, um imigrante espanhol que veio para o Brasil em busca de trabalho”, diz Beto Magalhães.
Além de marcar a família, quem estudou no Colégio Dom Bosco também tem lembranças importantes do local. Isso porque ali era a única casa onde havia um pé de pêra. “Quando saía do Colégio Dom Bosco, subíamos no muro para pegar pêras. Na década de 60 isso… Infelizmente, já faz uns 4 anos que a árvore foi cortada”, comenta o morador de Campo Grande Pedro Vargas.
“Quando era criança, passava de ônibus ali na frente e, bem debaixo da janela, rente ao chão, onde tem mato, há uma grade. Sempre imaginei que seria um porão”, relata Marcelo Matos, também campo-grandense. “E é mesmo, a gurizada ficava assustando as pessoas pela grade. Era muito divertido”, confirma Beto.
São tantas histórias… da pêra popular, às lembranças da vizinhança e da população de Campo Grande que passou por ali quando a família dava vida ao local. Preservá-lo é uma forma de manter erguida não só a estrutura, mas também a memória enraizada naquele lugar.
“Infelizmente, minha tia-avó, filha dele, apesar de contrariar a família, vendeu o imóvel. O proprietário, desde então, vem deixando o prédio se deteriorar para que possa derrubá-lo, uma vez que está tombado pela Prefeitura”, afirma Beto.
O primeiro dono
A casa, conhecida como Vivenda Ignacio Gomes no passado, foi construída na década de 1920, tombada pelo Patrimônio Histórico de Campo Grande e salva de ser demolida. Ignácio Gomes, assim como a residência, também carrega uma rica história contada em detalhes por Beto. Seu bisavô foi o primeiro maquinista de Campo Grande e até mesmo do Estado. Era ele quem estava à frente da primeira locomotiva que cruzou os trilhos da Noroeste de São Paulo para cá.
O herdeiro conta que quando Ignacio chegou ao Brasil, foi trabalhar como escravo branco em fazendas de café na região de Monte Santo de Minas, e, por muita coincidência da vida, trabalhou em uma fazenda que pertenceu a seu outro bisavô, avô de seu pai. Depois, o construtor da casa na Antônio Maria Coelho foi para São Paulo trabalhar na estrada de ferro e acompanhou a construção da linha Noroeste do Brasil Bauru-Campo Grande.
“Vinha em lombo de burro com os alforges, carregado de dinheiro, trazendo o pagamento dos trabalhadores da construção da Estrada de Ferro. Virou maquinista de Maria-fumaça e foi o maquinista a fazer a primeira viagem na linha Bauru/Campo Grande. Se estabeleceu aqui. E, como empreendedor, enriqueceu. Foi o primeiro industrial do Estado de Mato Grosso”, conta.
Ignacio também trouxe a primeira companhia telefônica de Mato Grosso. “Eu tenho o primeiro telefone aqui em casa”, diz Beto. “Meu avô foi fundador da Santa Casa, teve uma olaria em Ribas do Rio Pardo e de lá vierem os tijolos doados para a construção do hospital. O terreno onde está o prédio dos Correios foi doado por ele. A estrutura onde funcionou um colegio ali na Treze também foi doada para ser o Centro Espanhol e pertence a esta entidade até hoje”, relembra o bisneto.
Estado deplorável
Atualmente, a casa que foi de Ignacio Gomes em Campo Grande é cenário de uma briga entre quem quer derrubá-la e quem quer preservá-la. O imóvel permanece de pé, 100 anos depois de sua construção, mas poderia estar ainda mais intacto. Rachaduras, mato, descaso e descuido. Do lado de fora, o vandalismo tomou conta. Do lado de dentro, ninguém sabe ao certo, já que é uma propriedade privada.
“Fico muito admirada quando vejo o estado em que está. Achei que era briga de inventário. Uma pena ouvir essa história tão forte de um homem lutador e não cuidarem. Por favor, olhem por esta relíquia histórica”, pede a campo-grandense Iolanda Barros.
Para Beto, ver a casa da maneira como se encontra é motivo de sofrimento. As lembranças vêm à mente e a impossibilidade de fazer algo o consome. “Esse é um resumo da história real deste imóvel, com muita dor eu relembro tudo isso. Fez parte da minha vida”, lamenta ele, que tem o sonho de reaver a propriedade que foi de sua família.
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