‘Desiste’, disse treinador ao pai de medalhista paralímpico de Campo Grande
Pai de Yeltsin relata ao Jornal Midiamax que filho foi desacreditado desde o primeiro treino: ‘não vai dar resultado’
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Prestes a completar 30 anos de idade, o paratleta campo-grandense Yeltsin Francisco Ortega Jacques conquistou a medalha de ouro nos 5 mil metros do atletismo masculino T11 (de pessoas com deficiência visual), na noite desta quinta-feira (26), nos Jogos Paralímpicos de Tóquio. Mas, quem acabou levando o presente foi Campo Grande, já que a vitória aconteceu justamente na data do aniversário da cidade morena.
Nascido na Capital de Mato Grosso do Sul em 21 de setembro de 1991, Yeltsin cresceu no Jardim Leblon, onde morou boa parte de sua vida, e estudou nas escolas Nazaré e Brasilina Ferraz Mantero. Filho do agente penitenciário José Roberto Jacques e de Juliane Ortega, ele ganhou esse nome em homenagem a Boris Nicoláievitch Iéltsin, o primeiro presidente da Rússia após o colapso econômico da União Soviética. Iéltsin foi também o primeiro líder de uma Rússia independente desde o czar Nicolau II.
O pai, José, escolheu esse nome porque a situação toda aconteceu pouco antes do menino nascer. Admirando a figura política e sua postura, o militar decidiu homenageá-lo em seu filho, que veio ao mundo com retinose pigmentar — uma doença que impede a entrada de luz na visão. A família é a principal incentivadora e o gosto pelo esporte está no sangue, já que o pai de Yelstin foi praticante de pentatlo militar e a mãe gostava de basquete.
“Infelizmente, quando eu fui levar o Yeltsin a primeira vez no treino, o professor chegou e me falou ‘desiste, porque ele não vai apresentar resultados’, mas ele era muito dedicado, ele queria aquilo, sabe. Só que eu não falei pra ele isso. Eu pedi para que outros atletas que estavam treinando lá ajudassem ele, tivessem ali incentivando”, contou o pai ao Jornal Midiamax.
“No começo, a pessoa não sentiu que ele seria um atleta, mas ele queria. Uma forma de incentivar era eu não chegar e falar ‘tô te dando isso’. Eu ia, passava um tênis, um short, uma camiseta, para outra pessoa entregar para ele, para ele não falar ‘meu pai que tá fazendo isso’ e ‘meu pai quer que eu faça isso’, que aí ele ia se sentir integrado por outras pessoas, para não ficar só na família”, revelou José à reportagem.
Na infância e na adolescência, Yeltsin enfrentou bullying nas escolas. “Tive que ir várias vezes conversar com diretora, coordenadora, para pedir que os alunos não tratassem ele daquele jeito”, diz o pai. Apesar de ter se destacado no atletismo, Yeltsin começou sua vida esportiva praticando judô e o ingresso no atletismo aconteceu por uma casualidade da vida. Obra do destino.
“Foi com 10 anos, praticamente, que tudo começou. Ele entrou no esporte através do judô, pelo Ismac (Instituto Sul-mato-grossense para Cegos), e aí teve uma pessoa no Ismac, o Damião, que se inscreveu numa prova, ele é cego total. O Damião pediu que o Yeltsin fosse guiar ele na competição. No dia dessa prova, choveu e o Damião não foi. O organizador então transferiu a inscrição do Damião para o Yeltsin. Foi aí que ele começou a correr, e ele gostou. Me ligou, falou ‘vou começar a correr corrida de rua’, e eu tinha muito medo por causa da visão dele, dele sofrer um acidente”, relembrou José.
“Quase levei multa”
Em um relacionamento há três anos com a estudante de biomedicina Janayna Yankha, Yeltsin recebe o maior apoio da esposa e presença nos treinos. Eles são casados há mais de um ano. Ao MidiaMAIS, Janayna relatou a emoção ao acompanhar o marido competindo na televisão.
“Saí gritando. Quase levei uma multa no condomínio”, disse ela. A família toda revela que estava confiante e acreditava na vitória do paratleta. “A gente treinou pra isso. Já tinha uma preparação aqui e eu confiava muito que ele ia chegar lá e dar o melhor dele na pista. Ali só vai colher o resultado”, afirmou Janayna.
O casal, inclusive, se conheceu através do esporte, quando Yeltsin foi fazer um treino no Poliesportivo da Vila Nasser. Lá, eles começaram a conversar e o interesse resultou em casamento. Os dois moram na Capital, no bairro Tiradentes, e vivem uma rotina feliz, cheia de esporte e companheirismo, já que ela é uma das principais auxiliadoras em seus treinos.
Difícil
Todo o treinamento de Yeltsin para as Paralimpíadas aconteceu em Campo Grande, mas a caminhada até a vitória não foi nada fácil. Ele só recebe o apoio do Governo do Estado, com o bolsa atleta de 900 reais, que não paga nem o tênis que precisa para treinar e competir. Segundo a família, falta incentivo.
“Um par de tênis de 1600 reais é para 260 a 280 km, e isso ele faz semanalmente”, explicou o pai ao Jornal Midiamax. “É muita falta de reconhecimento, sabe? Quantas vezes a gente bateu de porta em porta pedindo patrocínio e as pessoas negaram. E eu acho que é a parte mais difícil. Um atleta paralímpico não tem que ser visto como coitadinho, ele é um atleta normal, de alto rendimento mesmo”, detalhou Janayna.
Yeltsin, segundo a esposa, não tem patrocínio. Ele recebe apenas uma ajuda de uma academia da Capital. “Tanto que, quando ele se lesionou, eu fui atrás de fisioterapeutas aqui, mas ninguém quis ajudar, fecharam as portas mesmo. Então, eu fiz cursos e cursos para estar ajudando ele na fisio, para ele se recuperar e a gente poder chegar longe”, relata a esposa.
“De onde menos a gente espera, as pessoas vêm e ajudam. Um dia, ele foi cortar o cabelo e a pessoa olhou pra ele, um menino lá do José Abrão, e falou ‘eu vou te dar esse patrocínio’. Tão pouco, mas tão espontâneo e um patrocínio de amor mesmo, de admiração”, contou ela, agradecida e emocionada com lágrimas nos olhos.
Família
A família é o principal alicerce do paratleta. O pai afirma ter uma relação muito boa com o filho. “Ele é uma pessoa maravilhosa, um vencedor, desde que nasceu. Não deixou se abater por nada, nunca ficou se vitimando, ele confia nele”, compartilha orgulhoso.
Patrícia Neves, a madrasta, nutre amor de mãe. “Falo para ele que ele é meu filho postiço, sempre quando tem uma folguinha, ele corre e vem aqui, a gente faz um bolo, uma peixada, alguma comida que ele gosta… Eu faço muita comida pra agradar e também fico orando, mais na retaguarda, não apareço muito. Fico torcendo por ele, como um filho mesmo”, diz ela, emocionada, e menciona a mãe biológica de Yeltsin, Juliane, afirmando que ela tem papel fundamental no sucesso do filho: “muito batalhadora, chegou a esquecer dela para ajudar ele”, contou.
“Quantos atletas a gente perde por isso, quantas pessoas eu vi desistirem por não terem apoio? Tudo que uma criança precisa, um atleta paralímpico ou não, é o incentivo de alguém, que alguém fale pra ele ‘eu acredito em você, você vai chegar lá’, eu acho que isso que falta nas pessoas”, reflete Janayna.
Com uma base familiar muito boa, a família acredita que sem essa estrutura, Yeltsin teria desistido. “A gente viu outros que estavam tentando e desistiram porque não tinham essa estrutura familiar também. Eu falo que família é tudo”, pontua Patrícia.
Sobre Yeltsin
Nesta quinta-feira (26), o campo-grandense já começou a prova dos 5 mil metros de atletismo masculino T11 liderando, mas acabou perdendo a ponta para o japonês Karasawa. Na última volta, em arrancada surpreendente, Yeltsin conseguiu retomar a liderança e alcançar o lugar mais alto do pódio.
Com o resultado, o Brasil chega a 9 medalhas nas paralímpiadas, sendo 2 de ouro, 3 de prata e 4 de bronze. Yeltsin nasceu com baixa visão. Ele conheceu o atletismo ajudando um amigo, totalmente cego, a correr. Então, começou a treinar junto com ele para competir e iniciou sua carreira nas Paralímpiadas Escolares em 2007.
Principais conquistas: Ouro nos 1.500m nos Jogos Parapan-Americanos de Lima 2019; ouro nos 1.500m e nos 5.000m dos Jogos Parapan-Americanos de Toronto 2015; prata nos 1.500m e bronze nos 800m no Mundial de 2013 na França.
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