‘Novo’ homem conversa mais, não prioriza o futebol e faz até maquiagem para defender o que gosta
Bares lotados e com televisões que se dividiam entre imagens do brasileiro Klidson Abreu perdendo o combate no UFC Moscou e também do Real Madrid assumindo a liderança provisória do Campeonato Espanhol. Atravessando a Avenida Afonso Pena, em pleno sábado, um grupo com mais de vinte homens ignorava os gritos das torcidas para discutir os […]
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Bares lotados e com televisões que se dividiam entre imagens do brasileiro Klidson Abreu perdendo o combate no UFC Moscou e também do Real Madrid assumindo a liderança provisória do Campeonato Espanhol. Atravessando a Avenida Afonso Pena, em pleno sábado, um grupo com mais de vinte homens ignorava os gritos das torcidas para discutir os novos papéis da masculinidade diante de uma sociedade com mais mulheres no mercado de trabalho, independentes e mais exigentes.
“É uma busca pelo entendimento do homem neste novo cenário, em como ele deve interagir e reagir a essas mudanças. Há cinco anos, seria inimaginável falar que a gente ia conseguir unir tantos homens para discutir este tipo de assunto em uma sala. Em um sábado”, conta o psicólogo Amin Taher Asrieh, um dos fundadores do Coletivo M.A.S.S.A (Masculinidade Autêntica, Sensível, Saudável e Acolhedora).
Mas a imagem de botecos cheios de homens enquanto a maior parte das mulheres fica em casa cuidando das roupas e dos filhos, mesmo no final de semana, tem explicação histórica e na própria Constituição Brasileira. Há menos de 60 anos, era direito exclusivo do homem no país e garantido por lei a administração dos bens comuns e particulares da mulher, o direito de fixar e mudar o domicílio da família, o de autorizar ou não a profissão da esposa e a sua residência fora do teto conjugal.
Em termos simples, a mulher era civilmente incapaz. Repelida do mercado e trabalho e incentiva ao ambiente escolar unicamente para aprender sobre as atividades a serem desenvolvidas em família, onde devia junto com os filhos inteira submissão ao pai, muitas vezes as crianças eram educadas por mulheres com ideias pré-concebidas sobre ‘seu papel na sociedade’.
“O homem tem dois caminhos: se adaptar e tentar entender como contribuir para uma sociedade mais justa, até mesmo para nós, com menos pressão por ter que ser quem sustenta a família, ou espernear e reagir a isso com ironia, piada, sarcasmo”, explica Amin.
Após passar por um processo de falência em uma empresa onde investiu tempo, dedicação, conhecimento e dinheiro, o psicólogo se viu sem chão. “Na minha cabeça, era a minha falência como homem. E se eu tivesse o M.A.S.S.A. naquela época teria sido mais fácil passar por este processo”.
O grupo reflexivo funciona como um espaço de discussão e de compartilhamento de experiências entre homens, de forma que leve à compreensão de temas. Uma roda de conversa saudável. “Entre grupos de homens, é muito comum o uso da piada como fuga do que realmente a gente está sentindo. Mas a gente descobre a cada dia que é preciso se abrir e entender o que a gente está sentindo, como uma forma de manter a saúde mesmo”, destaca o Amin.
A OMS (Organização Mundial de Saúde) divulgou um estudo sobre os transtornos de depressão e de ansiedade pelo mundo em 2017 e apontou que em 10 anos, o número de casos de depressão aumentou 18%. No Brasil, a depressão atinge 5,8% da população, sendo mais prevalente em mulheres. Porém, segundo artigo da Revista Psiquiatria Clínica, apesar de a depressão acometer mais mulheres, são os homens os que mais cometem suicídio: quatro vezes mais que as mulheres.
Amin relata que cresceu em um lar árabe, onde o estereótipo de homem mais sério e ‘forte’, aquele que não demonstra tanto os sentimentos, acabou prevalecendo. “Eu nunca tinha dito que eu amava o meu pai, por exemplo. E em um almoço de família eu acabei dizendo, E ele reagiu contando isso nas redes sociais”, emociona-se o psicólogo.
Quem vê Valter Barbosa, de 60 anos, andando pelas ruas de Campo Grande não imagina, de cara, que ele é cabeleireiro e maquiador há 45. Meio carrancudo e de semblante mais fechado, Valter conta sobre a trajetória no mundo da beleza e ri apenas quando lembra que uma das clientes que está no salão no momento da entrevista foi maquiada e arrumada por ele no dia do seu casamento, há 19 anos.
“Piada sempre teve, né? Sempre vai ter. Mas a gente tem que sustentar a família. E defender também o que gosta de fazer. Eu não vejo problema nenhum nisso”, diz. Foi no salão que Valter conheceu a mãe de Valéria, com quem foi casado por 25 anos.
“Ela era manicure e eu já fazia cabelo na época. Nós nos conhecemos e não teve jeito, nos apaixonamos e casamos”, conta o cabeleireiro que tem um amigo cliente desde quando começou a trabalhar.
A profissão foi acompanhada e admirada pela filha, com quem hoje divide um salão de beleza na Avenida Júlio de Castilho. No local, clientes de todas as idades o procuram para pacote completo: cabelo e maquiagem.
“Sou muito sério, mas quem me conhece sabe que esse é o meu jeito. Tenho muitos clientes, homens e mulheres, que me acompanham há muitos anos. Para vocês terem uma ideia, já preparei uma noiva duas vezes, para os dois casamentos dela”, diz, longe de achar que foi o seu trabalho que ‘deu azar’ para a cliente.
“Não, foi o marido que não soube cultivar o casamento. Eu fiz tão bem a minha parte que ela me procurou no segundo casamento para eu preparar para a cerimônia de novo”, se diverte.
Questões de gênero estão fora da vida de Valter. Apesar de ele ter se espantado sobre o grupo de homens que se reunia em pleno dia de jogo. “Teve isso, é? Mas que jogo era?”, se espantou.
Servidor público, Werner Bezerra, de 32 anos, levava uma vida tranquila assistindo jogos de futebol aos finais de semana, quando dava um tempo no videogame. O trabalho e a paternidade fizeram a perspectiva dele mudar em relação à casa e à família.
“Éramos só eu e a minha esposa e a gente tinha uma vida muito tranquila. Quando a gente descobriu que ia ter um bebê, fez todos os cursos que você pode imaginar. Mas quando nasce, a gente nunca está preparado”, lembra.
Buscar entendimento sobre as mulheres e sobre o papel do homem em família e na sociedade nasceu, principalmente, em um plantão tumultuado no seu trabalho, como técnico do Ministério Público Estadual de Mato Grosso do Sul.
“Na verdade, eu pedi para mudar de lugar de trabalho porque ia ficar mais perto de casa. Mas foi uma das melhores decisões da minha vida. Eu até pedi para ficar lá no fundo, longe do atendimento”, recorda. Werner trabalha na Casa da Mulher Brasileira, a primeira do país com estrutura completa para atender casos de violência contra a mulher.
No entanto, em um dia, precisou fazer o atendimento que não queria fazer. Na ocasião, falou com quatro mulheres e voltou para casa tocado com as histórias. “Uma coisa é você pegar aquele relato e dar seguimento no trabalho. Outra é você ouvir uma mulher que acabou de sair da situação de violência e está ali na sua frente, contando coisas que ela as vezes até tem vergonha, mesmo sem motivo para ter, porque ela não é culpada”, conta.
Naquele dia, o servidor diz que chegou a conversar com as vítimas, mesmo sem muito preparo. “Isso me fez querer ler mais, estudar mais sobre a violência. Foi o que mudou para mim essa perspectiva do papel do homem”.
Já pai, Werner passou por outro momento de transformação. Seu núcleo familiar não se resumia a apenas ele e a esposa. “Tinha um bebê, que eu amo muito, mas que não é tudo. Para mim, meu tudo é a família, ele e a minha esposa. E foi um processo eu entender que não éramos só nós dois e que também tinha meu filho”, explica.
Como habitual, a esposa passou pelo puerpério – do qual ele só tinha ouvido falar. “São muitas dificuldades, de amamentação, de privação de sono, de uma pessoa frágil que precisa dos cuidados intensivos da mãe. E eu me sentia muito sozinho no meio desse processo todo. Ao mesmo tempo que não sabia como ajudar”.
Foram mais pesquisas e conversas que fizeram Werner desenvolver um novo papel na família. Ao final da licença maternidade, mais uma dúvida surgiu ao casal. A mãe teria uma renda maior se continuasse com seu horário habitual de trabalho. Mas os ganhos da família poderiam ser reduzidos drasticamente se as horas fossem diminuídas para que ela ficasse com Samuel, o bebê.
“Eu não tive dúvidas de que eu quem deveria sair do trabalho e já ir buscar ele na escola, dar banho, dar janta e brincar até ela chegar. Para ela, foi uma decisão mais difícil. Mas a gente chegou nesse consenso e eu lembro que eu tinha exatamente tudo da rotina dele anotado. Eu tinha medo de esquecer. Minha sogra ficou meses me ligando todos os dias para checar se eu tinha feito tudo”, se diverte ao lembrar.
Com a rotina de casa já estabelecida pela chegada de Samuel, ambos se dividem para realizarem seus sonhos. O de Werner é um desafio proposto pelo Ministério Público de criar uma roda de conversa para homens, um grupo reflexivo voluntário.
“Conheço o MA.S.S.A, como participei como observador de grupos do Tribuna de Justiça para homens que enfrentam medidas protetivas. E estou estudando formas junto à Promotoria da Mulher para que a gente crie esse espaço de discussão e reflexão do papel do homem, para que ele não precise chegar ao ponto de ter que cumprir uma medida para poder ouvir falar sobre como uma mulher deve ser tratada”, relata.
Com os amigos, a conversa é a mesma. “Home costuma fazer brincadeira para não falar do que está sentindo. Depois de ver um jogo uma vez, por exemplo, eu falei que ia para casa porque estava com saudade da minha esposa e do meu filho. Aí me chamaram de pau-mandado. Por que pau-mandado? Por que eu quero ficar com a minha família? Criou aquele climão, mas serviu porque mais gente falou: é mesmo, tá chato aqui. Vou voltar para casa e ficar com a minha família também”, ri ao lembrar.
Dialogando Igualdades
Em funcionamento há dois anos em Campo Grande, o ‘Dialogando Igualdades’ é um grupo reflexivo para homens que cumprem medidas judiciais. Responsável pela determinação dessas medidas, a juíza Jacqueline Machado, da responsável pela Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar de MS e pela primeira Vara de Medidas Protetivas do País, explica que são três as possibilidades de encaminhamento do homem para o grupo.
“Podem ser encaminhados até mesmo em caso de ameaça, se o entendimento for o de que ele precisa acompanhar essas reuniões. Ou em casos em que o homem praticou a violência doméstica e também se a mulher veio a pedir uma medida protetiva contra ele”, explica.
São 16 encontros de duas horas cada, obrigatórios. Nas reuniões, são abordados temas como Tipos de Violência (Lei Maria da Penha), Valores e Direitos Humanos, Gênero e Papéis Sociais, Micromachismos, Ciclo de Violência, Parentalidade, Dependência Química, entre outros. Todos acompanhados por psicólogas ou assistentes sociais.
A magistrada defende que o trabalho com o agressor é uma das portas de saída para o combate à violência. E os números mostram que esse é um dos caminhos. Em um ano de funcionamento, dos 40 participantes, apenas três reincidiram no crime de violência contra a mulher.
Ao todo, foram encaminhados ao grupo 173 homens sendo que, destes, 40 homens (23,12%) concluíram a carga horária estabelecida e 39 homens encontravam-se ativos nos grupos (22,54 %). Dos ausentes, 62 homens não iniciaram o grupo (35,83%), 28 abandonaram as reuniões (16,18%) e 4 (2,31%) foram desligados por motivos diversos.
Em casos de não comparecimento, a juíza pode determinar a prisão do homem por descumprimento de ordem judicial.
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