Série foi atacada por deputados durante sessão ordinária

Uma criança é representada acuada entre a silhoueta de dois homens com pênis eretos. A frase “machismo mata, violenta e humilha” está escrita ao contrário, convidado os espectadores a interagirem com a cena retratada e, daí, compreenderem a crítica e tirarem conclusões.

Esta é a descrição possível da tela ‘Pedofilia', assinada pela artista plástica mineira Alessandra Cunha, também conhecida como Ropre. Ela é autora desta e de outras 31 telas que seguem até domingo (17) expostas no Marco (Museu de Arte Contemporânea) de Mato Grosso do Sul, na série intitulada ‘Cadafalso'.

'É a primeira vez que as pessoas não entendem', diz artista sobre quadro polêmico

supracitada foi alvo de ataques por parte de deputados estaduais durante sessão ordinária na Assembleia Legislativadeslocou-se a DEPCA (Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente), a fim de denunciar

Durante a sessão, o deputado Coronel Davi (PSC-MS) chegou a pedir a prisão da artista ainda hoje e manifestou desejo de que Cunha seja incluída no ‘Cadastro Estadual de pedófilos', um banco de dados de acesso pública que terá o registro de todas as pessoas condenadas por crimes envolvendo exploração sexual, abuso e estupro de menores.

Violência exposta

Em 'Cadafalso', a artista expõe as violências a que mulheres são submetidas, inclusive pedofilia (Arquivo pessoal)Por telefone, a reportagem conversou com Alessandra, que não revelou espanto diante da celeuma criada em torno de sua obra. “Assusta um pouco saber que as pessoas não conseguem entender uma crítica óbvia, mas é uma reação natural do machismo, que é justamente o que eu denuncio na minha série. Essa reação na contramão é o próprio machismo tentando reprimir as questões que a gente coloca contra ele”, revela a artista.

‘Cadafalso' é uma série de 32 telas que já circularam diversas cidades brasileiras. Segundo Alessandra, a inspiração para elaborar a série surgiu após uma visita a uma exposição em Maceió, em Alagoas, na qual mulheres eram retratadas com a boca costurada ou fechada.

“A obra que eu vi retratava o silêncio diante da violência que as mulheres sofrem. Aquilo me tocou muito e quando voltei para Uberlândia, decidi fazer justamente o contrário, que é expor essa violência machista, misógina e falocêntrica”, explica.

Ao todo, foram cerca de dois meses até concluir a série, cujo nome refere-se ao pedestal onde mulheres acusadas de bruxaria eram mortas queimadas durante a Santa Inquisição. “O nome faz uma alusão a esse palco, uma metáfora, porque tantos anos após a inquisição as mulheres continuam sofrendo violências decorrentes do machismo”, aponta.

Reação equivocada

De acordo com a artista, a reação de indignação diante da tela ‘Pedofilia' é esperada. “Sim, porque eu representei uma criança acuada, diante da violência. É isso mesmo. É para causar reflexão. Mas esta foi a primeira vez que isso aconteceu na contramão, que as pessoas não entenderam. Normalmente, as pessoas compreendem que se trata de uma crítica”, aponta.

O caso envolvendo a exposição da mineira em Campo Grande ocorre menos de uma semana de um imbróglio envolvendo a exposição ‘Queermuseu', no Santander Cultural em Porto Alegre (RS), ganhar repercussão após ser suspensa pela entidade, após pressão de grupos religiosos e de organizações políticas como o MBL (Movimento Brasil Livre). Segundo as denúncias, as obras traziam blasfêmia com ícones religiosos, além de serem supostas apologias à pedofilia e à zoofilia.

Para Alessandra Cunha, a mensagem da obra 'Pedofilia' é uma óbvia crítica social (Reprodução)

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Para Alessandra, há desonestidade intelectual e ignorância quando as obras são retiradas de contexto. “Existe uma crítica social muito óbvia ali. Então, não sei se é correto dizer que eles simplesmente não entenderam a mensagem. No caso da minha tela, é uma criança assustada em meio a dois homens de pênis ereto, só o título já se relaciona com a reação que eu proponho. Então, é claro que houve uma análise bem errônea da obra, provavelmente porque a pessoa não frequenta galeria, não tem contato com a cultura”, aponta a artista.

Cunha relata que sua crítica social também passou por uma metodologia, um processo criativo que deixa a proposta estruturada. “E no museu tem material de apoio, há um texto explicando minhas obras. A tela não foi exposta de forma avulsa. Para chegar à telas houve toda uma elaboração teórica e técnica, então eu não entendo. Lamento a falta de conhecimento das pessoas que criticam”, considera.

Formada em pela Universidade Federal de Uberlândia, Alessandra Cunha tem mais de 20 anos de carreira como artista visual e teve obras expostas em dezenas de cidades brasileiras e também em cidades do interior. ‘Cadafalso' integra a 2ª Temporada de Exposições do Marco e permanece em exibição até domingo (17) – até segunda ordem.

Reincidência

Não é a primeira vez que exposição do Marco é alvo de tentativa de . Em 2006, durante a gestão do ex-governador Zeca do PT, a exposição do artista campo-grandense Evandro Prado, atualmente radicado em São Paulo, foi alvo de ataques não só dos vereadores, mas também da comunidade católica de Campo Grande, que chegaram a processar o museu.

Em 2006, exposição do campo-grandense Evandro Padro no Marco também foi alvo de ataques (Reprodução)

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‘Habemus Cocam', exposição de Prado, recorria a imagens sacras de figuras históricas como Jesus Cristo e Nossa Senhora Aparecida, e por isso foi interpretada como profanação e blasfêmia por representantes da Igreja Católica (dentre eles, o Grupo de Defesa Católica) e por um grupo de vereadores.

Liderados, na época, por Paulo Siufi (ex-PRTB, atual PMDB), os vereadores moveram tentativa de ‘moção de repúdio' contra a exposição, a fim de impedir sua continuidade. Na ocasião, Siufi foi seguido por pelos então vereadores Professor Rinaldo, Edil Albuquerque, Cabo Almi, Pastor Sérgio e Carlos Marun, dentre outros. A exposição, no entanto, seguiu aberta à visitação até a data prevista inicialmente.