Todos os caminhos do Leste Europeu levam à Cracóvia, na Polônia
Cracóvia foi a cidade que encheu a viajante de expectativas – que se cumpriram
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Cracóvia foi a cidade que encheu a viajante de expectativas – que se cumpriram
Fui à Polônia em 2011 e comecei minha viagem pela capital, Varsóvia. Tinha grandes expectativas com essa viagem, mas de tudo o que vi, gostaria de falar sobre o encantamento por um lugar. Quando relembro essa viagem, quase todas as lembranças se resumem a essa cidade, Cracóvia.
Varsóvia, a capital, é uma cidade reconstruída, toda nova, cheia de grandes prédios, carros e transportes públicos modernos, hotéis das grandes redes. Nada que se pareça com a cidade retratada em O pianista. Se vocês assistiram a esse filme, devem lembrar-se da cena em que o ator Adrien Brody andava sobre escombros. Varsóvia foi bombardeada, tudo veio abaixo. O centro antigo foi reconstruído, tomando o modelo de como era antes. Como tudo é novo, talvez por isso não tenha achado muita graça na cidade e cheguei à Cracóvia com tantas expectativas. E elas se cumpriram.
Estudei muito sobre o país antes de ir, sobre a Segunda Guerra Mundial, sobre a cultura e a literatura polonesas. Disso, só relembro a vocês que a Polônia foi palco de muitas das batalhas da Segunda Guerra, de um lado os russos e, de outro, os alemães. E foram guerrear lá, sobretudo à beira do Rio Vístula. Nas torturas que Jan Karski, membro da resistência polaca, sofreu pela Gestapo, um dos torturadores, oficial de alta patente, enquanto ia torturando Karski, contou-lhe que eles, poloneses, e os demais povos eslavos e também os demais europeus, não seriam exterminados, eram inferiores, fracos, mas seriam escravos dos alemães. Viveriam para testemunhar a superioridade da raça alemã. Mas os judeus não, o fürer queria toda a raça judia exterminada. E já estava preparando uma solução para isso acontecer. Ian Karski conta isso em seu livro “Meu testemunho perante o mundo”. Relembro isso para contar como os poloneses eram vistos pelos alemães e também pelos russos: povo menor, inferior, uns pobres-coitados. Roubados e lesados em seu território por tantos povos através dos séculos.
Antes de ir, por quatro meses estudei polonês para poder dizer frases simples e me comunicar. Tenho um inglês limitadíssimo que só consigo entender bem e falar um pouco quando estou sozinha e nenhuma das línguas que falo, fazem-me ser compreendida. Por exemplo, estive no norte da Noruega, sozinha, em Berger, e lá, por milagre, lembrava tudo para dizer em inglês. Mas na viagem à Polônia, que foi antes dessa ida à Noruega, eu tinha decidido que falaria polonês, quis estudar, e estudei bastante a língua. Estava com uma boa disposição com o país, com o povo. Talvez por isso, quando cheguei lá, achava todo mundo bonito, os homens, as mulheres, as crianças, os idosos. Um povo extremamente loiro, olhos claros, feições lindas. Muito mais brancos que os alemães. Ser loiro e de olhos claros não é garantia para ser bonito. Vejam os húngaros, por exemplo, em que a beleza passou longe. Porém não quero fazer generalizações e nem ser tão passional.
Quando cheguei à Budapeste já cheguei com os pés atrás. Pela história, sempre pela história. E as experiências não foram boas, para confirmar. Na Polônia não, fui de coração aberto, apaixonada pela história, por vários escritores – os dois Adam, por exemplo: Mickiewicz, poeta romântico, do Século XIX, herói nacional; Adam Zagajewski, nascido em Lvov e viveu quase vinte anos lá – pela posição atroz que eles suportaram durante a guerra e depois dela, no fechado regime comunista forçado. Enfim, quando se está apaixonado, o mundo é cor-de-rosa. Cheguei lá assim, falando bom dia, boa tarde, como vai, quanto custa, onde fica a estação, tudo em polonês. Quando o taxista ou os atendentes não entendiam o que eu dizia, mas achavam lindo eu tentar falar a língua deles, eu mostrava as frases em meu diário de viagem ou na cartilha de alfabetização em polonês que tinha comigo, e repetiam para mim a frase com o acento certo.
Os poloneses são alegres, risonhos, te olham nos olhos com boa acolhida. E são muito católicos. Era semana santa e as comemorações proliferavam pela cidade, missas, ovos da páscoa para vender (que não eram como os nossos, mas ovos mesmo, de galinha ou outros pássaros, com a casquinha decorada, com doces dentro; ou então feitos de outros materiais e quase sempre com doces, às vezes chocolates) e quermesses.
Cracóvia é a cidade de Karol Wojtyla, o Papa João Paulo II, e na cidade sua imagem está por todos os lugares. Você vira uma rua e tem uma estátua dele em uma praça, dentro do castelo de Wawel, outra. Em uma casa em que ele viveu, há um painel com a foto dele; na igreja de Santa Maria, onde rezava suas missas, ainda bispo, também.
Cheguei à Cracóvia depois de duas horas e meia de trem de Varsóvia. É uma cidade polonesa localizada no sul do país, à beira do rio Vístula, com cerca de 850.000 habitantes e já foi capital da Polônia em passado longínquo. Na verdade não parece que tem tudo isso de habitantes, deve ser contando seus arredores, pois parece uma cidade pequena. Não é somente uma das cidades mais bonitas da Polônia, é uma das mais bonitas em que já estive. E cheguei nela na metade de um mês de abril, começo de primavera. A temperatura era mais ou menos como essa nossa desses últimos dias, uns dez graus com sensação de zero.
Bela, medieval, preservada dos bombardeios. Linda, linda. De todos os ângulos; dentro do Castelo de Wawel, a vista da cidade é um espetáculo. Foi construída à beira desse rio caudaloso, o Vístula, de águas escuras e correnteza forte.
Dois meses antes de ir, a viagem quase foi abortada, pois destronquei o pé. Fui mesmo assim, andei arrastando o pé em um croc cor-de-rosa, na impossibilidade de colocar tênis, sapatos ou mesmo andar direito, dava os passos arrastando o pé, com um amor cor-de-rosa pelo país. Já sabia que não poderia falar alemão, não seria bem visto. Quando cheguei com minhas amigas, na estação de trem na Cracóvia, pegamos um taxi para o hotel, o taxista perguntou, em um inglês muito limitado, qual nossa nacionalidade, ao respondermos Brasil, disse São Paulo. Mais do que isso, o inglês dele não alcançava. Alba tentou explicar, e daí falei uma frase em alemão. Arrependi-me logo ao dizer, sabia que não podia. Era a língua dos opressores, nazistas que quase destruíram o país. Esse taxista, que era um dos homens mais bonitos que já vi sobre a face da terra, virou para trás e me olhou com um misto de surpresa e desprezo. Disse-me: eu sei, mas não gosto de falar nessa língua, São Paulo. São Paulo ficou sendo nosso nome para ele. Chamava-nos São Paulo, que podia ser traduzido por ‘as brasileiras’.
Como sou matutina, acordava cedo e ficava no espaço do café da manhã estudando polonês, enquanto minhas amigas dormiam ou, em algumas manhãs, resolvia andar pela cidade. Gosto muito de sair bem cedo, com um mapa à mão, quando têm poucas pessoas na rua, só trabalhadores indo para o trabalho e os turistas ainda não acordaram, para conhecer as ruas e novos lugares. Por duas vezes, São Paulo parou seu taxi ao ver-me arrastar a perna nas manhãs frias da cidade e perguntou-me algo. Achei que era se eu queria pegar o taxi. Respondi bom dia, Dobry Dzien, e tak, sim. Subi, mostrei o mapa. Uma das vezes lhe disse stacja, estação: ia à estação de trem confirmar horário para ir a Auschwitz. E assim era minha comunicação com São Paulo, esse lindo homem taxista da Cracóvia. Gostei dele, mesmo que nossa comunicação se fizesse por algumas palavras em polonês e inglês, pois o alemão eu esquecia tudo quando estava em seu taxi.
O hotel em que fiquei hospedada com minha amiga Alba Abreu Lima era na margem esquerda do rio, na rua detrás do Castelo Real de Wawel – Carla Storino ficou em outro, próximo. Os poloneses bebem muita cerveja. Em nosso hotel, todo final de tarde, quando retornávamos dos passeios, davam-nos, de cortesia, uma caneca gigantesca de uma cerveja muito forte. Eu bebericava um golinho ou outro para não parecer descortês. Não sei se por isso, mas Alba queria comprar uma garrafa de cerveja de uma marca típica da cidade. Compramos no mercado e ela ficou tomando na praça, as três sentadas no banco da praça, conversando. Passou um homem e disse em português que era proibido beber cerveja na praça, várias pessoas eram presas por isso. Era um psiquiatra, filho de um diplomata que, na juventude, tinha morado no Brasil. Enfim, contou-nos muitas coisas sobre a cidade, que mesmo linda, tem muitos problemas. Aliás, os judeus continuam não sendo bem aceitos lá, nessa cidade tão católica até hoje. Nem tudo é tão cor-de-rosa como parece.
E para os psicanalistas, há mais um motivo para ir à Cracóvia. Freud conta em sua obra em dois ou três momentos, a seguinte piada judaica: em uma estação ferroviária na Galícia, dois judeus se encontram, um pergunta ao outro “Aonde você vai?” À Cracóvia é a resposta do segundo. E o homem que perguntou diz: “porque me diz que está indo à Cracóvia para que eu pense que vais a Lemberg, quando na verdade vai à Cracóvia mesmo? Por que me mentes?” Há na piada uma verdade contada com um efeito de mentira, pois o primeiro judeu não acredita no seu interlocutor. Com isso Freud quer nos mostrar que até com a verdade se conta uma mentira. Assim, quase encerro minha crônica: depois que conheci a Cracóvia posso entender porque ela estava na piada dos judeus do Leste Europeu, é uma pérola, um espetáculo. Mesmo nos dias de hoje. E também devia ser no século passado. E para finalizar: senti vontade de trazer São Paulo comigo. Se isso é uma verdade ou mentira, deixo para vocês concluírem se sou ou não como o interlocutor do judeu perguntador da Galícia.
*Andréa Brunetto é formada em psicologia e atua como psicanalista. É membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, fundadora do Ágora Instituto Lacaniano de Campo Grande e autora de “Sobre amores e exílios” (Editora Escuta, 2013). Colabora com o MidiaMAIS às quartas-feiras.
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