Em 26 de julho o mundo celebra o Dia das Avós. E a realidade editorial mais que pede que as páginas de qualquer jornal tragam uma história afim. Não faltariam, claro, relatos que trouxessem desde a jovem mulher que já tem netos, à avó high-tech que usa WhatsApp e Facebook, assim como publicações com receitas de pratos mantidos há gerações na família, e nem reportagens de senhoras fantasticamente elegantes rodeadas de netos, bisnetos e tataranetos.

Mas, hoje, não. Hoje o repórter decidiu correr os riscos da quebra de protocolo e presentear o leitor com sua própria história de ‘avó’. Ou melhor, o relato da saudade que existe da mulher com cabelos loiros curtinhos, sempre com unhas pintadas de vermelho, ornadas com bolinhas brancas. Da senhora meio mística, com lenço de seda no pescoço, que não saia de casa sem seu tarô cigano. Hoje a história é de Maria Augusta, ou melhor, de ‘Gugu Marie’, como gostava de ser chamada.

Mãe de 9 filhos, sei lá quantos netos – algumas dezenas, de certo – Gugu estava longe de ser uma avó tradicional, não era muito paciente com crianças. Mas, à medida que crescíamos, as coisas mudavam, assim como ela, também, mudava. Ótima no tarô cigano, numerologia, leitura das mãos e com intuição fantástica, Gugu também costurava e pintava quadros. Escrevia poesias e compunha músicas – que gravava num radinho que ficava na cozinha. Na minha infância, lembro dos bolos decorados, cheio de flores de confeito. Lembro do doce de leite em pó, sublime, cuja receita aprendi e prometi não passar para ninguém (a boca cheia d’água só pelo relato).

Eu não sabia, até começar a pesquisar fotos e a escrever este texto, quanta falta eu sentia dela. Não só dela, na verdade, mas de seus hábitos. Das histórias que contava, das delícias que cozinhava. Do cheiro do seu perfume – um vidro ainda está comigo, cheinho, presente dela, mas nunca tive coragem de usá-lo. Comigo, estão a coruja de madeira que ficava próxima ao telefone e a imagem de São Sebastião, que eu trouxe de Fortaleza para cá na mão, com tanto zelo, com todo cuidado, numa viagem de avião que durou 6h.

Quando bate a saudade, assim como hoje, recorrer às fotos, às imagens, fragâncias, às conversas e lições aprendidas – tudo isso me ajuda a segurar a onda e ainda sustentar um sorriso bobo na boca. Uma ligação para a minha mãe, uma corrida nos álbuns de fotos, são atos aniquiladores de saudade.

Mas, existe uma que não tem jeito: a da receita que se perdeu no tempo. Frango ao molho, com creme de leite, ervilhas e um ‘je ne sais quoi‘ – o ingrediente secreto – que frustrou todas as minha aventuras na cozinha para alcançar o mesmo sabor inigualável. A saudade que mais maltrata é a do prato cuja receita ninguém sabe, ninguém aprendeu, que jamais constou em qualquer de seus cadernos repletos de poesias e composições musicais. Não foi falta de procurar. Simplesmente não existe a receita e ninguém jamais poderá chegar até o prato em questão.

Gugu não está mais por aqui. ‘Viajou’ em 2009, cerca de seis meses após eu vir morar em Campo Grande. Tive sorte, porque não tenho memória alguma de seu dia a dia sofrido no hospital. Tenho apenas uma foto, numa conversa cheia de esperança entre mim e minha mãe, registrada e guardada até hoje num arquivo do computador.

“Dio Gracia! Mamãe está melhor. Cada dia uma nova esperança”, disse-me minha mãe, um dia antes da Gugu partir. Na foto, recebi um beijo, cuja beleza nem de longe se aproxima a das que tirei ao longo dos anos e que ilustram esse texto.

Gugu levou consigo para a eternidade a receita maravilhosa de frango ao molho e nunca mais terei o prazer de provar tamanha iguaria. Por outro lado, cá eu pensando com os botões, não seriam a fome e a gula prerrogativa apenas dos vivos? Talvez a única receita que realmente importe para minha avó, neste momento, seja a do amor.

Esta, creio eu, conseguimos anotar.