História, dor e aprendizado na crônica de

 

Quando fiz minha primeira viagem à Alemanha, na década passada, fui ao sul, à Baviera. Para mim, uma viagem tem de ser um pouco histórica, pelo menos. Essas viagens que vou lhes contar hoje foram muito históricas. No sul da Alemanha, perto de Munique, estava às voltas com marcos da Segunda Guerra Mundial: O Campo de Concentração de Dachau e o Adlerhorst, O Ninho da Águia, fortaleza dada de presente a Hitler como presente de cinquenta anos. Para as pessoas a quem eu perguntava como ir até essa fortaleza, respondiam-me “Para que ir até lá? Esqueça isso de guerra, vá para Berlim”. Não foi nem uma ou duas vezes. O nazismo ainda é um assunto muito difícil, os alemães preferem pensar no futuro, e o futuro é Berlim. 

Auschwitz, o lugar que nos ensina a não esquecer do que já fomos capazesNão consegui ir à Fortaleza, mas ao Campo de Concentração de Dachau sim. É considerado um campo mais ameno, pois para lá foram enviados, além dos judeus, os presos políticos e muitos padres que no começo do governo de Hitler, se opuseram a ele. Nos pavilhões onde ficavam os presos, hoje é um museu, com muitas fotos, com recortes de jornais e charges que retratavam bem o que foi a campanha política que elegeu Hitler. Foi uma aula de história e pude entender que Hitler não foi um candidato do povo, e sim o preferido dos grandes empresários da Alemanha da época. Os jornais faziam uma campanha em que era preciso elegê-lo para livrar a Alemanha do perigo do comunismo, da esquerda. Inúmeras charges de monstros vermelhos comendo criancinhas saíam nos jornais. O horror que a revolução bolchevista fez com a família real russa estava representado nas charges com frases como ‘se aconteceu com eles, pode acontecer com vocês, fora comunistas'. Andei pelo Campo de Concentração, inclusive pela construção onde foi projetada a Solução Final. Os judeus eram levados como se fossem para banheiros, com chuveiros no teto, entravam e as portas eram trancadas e dos “chuveiros” saía o gás. Saí desse museu de horror dizendo a mim mesma chega, visitar uma coisa como essa nunca mais. Foram dias para me recuperar do impacto. Sonhava que estava novamente naquele banheiro/crematório em que os judeus entravam achando que iriam tomar banho.

 

Oswiecim, onde o campo de concentração foi construído (Arquivo pessoal)

 

Na páscoa de 2011 estava na Cracóvia, perto da cidade de Oswiecim, onde foi construída Auschwitz. Na sexta-feira da paixão, estive em Auschwitz com minhas amigas Alba Abreu Lima e Carla Storino. No trem que pegamos na Cracóvia, em direcão a Oswiecim, já escutávamos as várias línguas do mundo. Nos folhetos que guiam o passeio – se é que se pode chamar isso de passeio – os poloneses contam que os moradores de todas as seis aldeias, Oswiecim e seus arredores, foram transformados de construtores do campo em prisioneiros dele: 60% eram judeus e os outros 40% não-judeus – ciganos, presos políticos, e os que divergiram do regime.

Auschwitz, o lugar que nos ensina a não esquecer do que já fomos capazesComeçamos a visita de forma errada, mas isso acabou nos dando uma logica diferente, ao final. A visita começaria com Auschwitz I, onde tem o museu e os campos de trabalho, com várias construções que foram oficinas. Em Auschwitz II- Birkenau ficavam os fornos; em Auschwitz III-Monowitz também. Enfim, na estação de trem, tomamos um caminho errado e perdemos de pegar o ônibus que percorria três quilômetros até Auschwitz I. Assim, chegamos direto ao lugar dos fornos crematórios. Em Birkenau, os fornos crematórios foram destruídos pelos nazistas no momento final, quando os aliados estavam chegando, tentando esconder os rastros. Mas é simplesmente horrível chegar lá. Na entrada, os trilhos do trem bifurcam-se em três e as três direções vão dar na mesma: a morte. No lugar onde foram os crematórios estão as construções derrubadas, ruínas, pó e destroços da barbárie. A memória do acontecido está por tudo: nas fotos das pessoas, nas cifras dos números de mortos, nas placas de homenagens.

Mas o pior veio depois, em Auschwitz I, o museu. Entrando lá, de início, os judeus não deviam achar que morreriam. Acho que essa era uma constatação a posteriori, no dia a dia das atrocidades. Digo isso porque na entrada tem a placa tão conhecida, pois estava em todos os campos, “o trabalho liberta”. Nada de questionar, trabalhe; nada de pensar em crise, trabalhe. E o campo tinha muitas árvores, ainda tem hoje, e muitos blocos, bem construídos, e calçadas e flores – pelo menos agora, na primavera, não é feio. O horror é quando você entra e vê as fotos, a história contada, os objetos pessoais, as malas com objetos pessoais dos que nunca voltaram, os cabelos das mulheres. E artigos de toalete. É uma guerra, as mulheres vão para um campo de trabalho, mas levam mala com roupas, escovas, batons. Nunca imaginavam o que estava por vir.

 

Auschwitz, o museu que existe para ninguém esquecer (Arquivo pessoal)

 

Havia dois blocos “especiais”, um deles dedicado aos poloneses. Uma fila de fotos dos poloneses, fotos de médicos, engenheiros, operários, torneiros, enfim, das profissões mais simples até as supostamente mais elitizadas, fotos tiradas já nos campos, e o que era comum a todos: a agonia, o horror de saber que iriam morrer e que ali tinham perdido sua humanidade. E o outro bloco era dedicado aos experimentos que Mengele fez com as crianças, o horror feito com as crianças. Nesse não entrei.

Em Birkenau, ao lado das ruínas dos fornos destruídos, tinha varias placas, cada uma em um idioma para que nunca esqueçamos. Tinha uma em português. Mas foi na placa em francês que fiz meus questionamentos. Nela tinha uma coroa de flores colocada pelo grupo de teatro de Aumônerie e pela Escola de Musica de Chateaudun. E, na placa, eles escreveram assim em frances: tant qu il y aura des etoiles. É a letra de uma música, que teria mais ou menos o sentido em português: mas haverá estrelas. Por que essa letra exatamente aqui? Por que achar que diante desse real, dessa barbárie inominável, a contemplação da natureza ameniza a dor? Por que as estrelas? Transcrevo um trecho da letra da música a seguir: “Vivemos com a barriga vazia e em uma rua sem fim… morremos de frio e de fome. Mas apesar de tudo temos as nossas riquezas, esse vento doce, essa noite de primavera. Tudo isso é nosso. Aqui com as estrelas. Seremos sempre felizes. Enquanto há estrelas sob as abóbadas do céu”. Letra e música de Tino Rossi.

 

Ruínas dos fornos destruídos (Arquivo pessoal)

 

Andando sob o sol ardente, nessa sexta-feira da paixão, lembrava de Elie Wiesel, Primo Levi, Jorge Semprun, Simone Weil, Viktor Frankl, Anne Frank, e sobretudo Imre Kertész, meu escritor preferido. Alguns destes sobreviveram a Auschwitz, para se suicidar depois. Anne Frank pereceu lá. Aliás, Kertész faz uma lista de todos que se suicidaram depois de sobreviverem a Auschwitz.

Saí de Auschwitz I com uma grande curiosidade e uma pergunta, que deixo em aberto. No portão de entrada estava pregada uma fitinha com um numero: 36377. Entendi como o número de alguém que sobreviveu ou pereceu no campo. Era uma homenagem. Em um dos pavilhões, havia livros e livros com os números dos prisioneiros e seus nomes. Fiquei procurando o 36377 e não encontrei. Aliás, desisti depois do primeiro livro. Quem é o 36377? Por que não se nomear? Por que manter esse número que foi dado pelo outro, o opressor? Vou responder com o título de crônica de Clarice Lispector: “você não é um numero”. O ser humano é maior, é inexprimível até mesmo em palavras, quanto mais em números.

 

A fitinha com o número 36377 (Arquivo pessoal)

 

Essa é a minha crônica da semana por alguns motivos que creio são maiores do que dizer a vocês que precisam ir à Polônia e conhecer Auschwitz. Auschwitz está em nós, como humanidade. Tudo isso me veio à lembrança semana passada, pois escrevi sobre a Cracóvia e são acontecimentos da mesma viagem. Porém entre a crônica da semana passada e essa aconteceram três coisas que me tocaram profundamente. Uma fronteira de nosso Estado que de seca passou a vermelha: facções criminosas guerreando e se matando na rua, com armamento pesado e arriscando a vida da população de dois países. Mais um conflito indígena no Estado, desta vez em Caarapó: resultou na morte de Clodiode Rodrigues de Souza, um índio jovem, de 26 anos, agente de saúde, e em ferimentos em mais seis índios, um deles ainda criança. E ainda há todas as mortes da Boate Pulse, em Orlando. Quase cinquenta mortos, mais de cinquenta feridos em um ataque cruel, violento.

Continuamos muito despreparados para conviver com nosso próximo, quando o vemos como estrangeiro, seja judeu, cigano, homossexual, negro, índio, mulher, criança. Volto à música de Tino Rossi que li no Campo de Concentração de Auschwitz, deixada por alguém que foi fazer uma homenagem: “vivemos com a barriga vazia, em uma rua sem fim.” Essa minha crônica é para que não seja esquecido o que não pode ser esquecido.  

*Andréa Brunetto é formada em psicologia e atua como psicanalista. É membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, funda­dora do Ágora Instituto Lacaniano de e autora de “Sobre amores e exílios” (Editora Escuta, 2013). Colabora com o MidiaMAIS às quartas-feiras.