Na terra do agronegócio, versão de ex-escrava fundadora não é bem-vinda

Sem provas documentais, a história resiste apenas na memória dos descendentes

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Sem provas documentais, a história resiste apenas na memória dos descendentes

Em agosto de 1875, vindo de Minas Gerais, José Antônio Pereira apareceu por essas bandas. Conduzindo sua expedição composta de 11 carros mineiros, sementes e mudas diversas, o desbravador se fixou na confluência dos córregos Prosa e Segredo, área que em 1889 se tornou Campo Grande. Esta é a história oficial, aquela que aprendemos e decoramos nos primeiros anos do colégio. Mas o que pouca gente sabe, é que havia uma comunidade negra no caminho, mais que isso, havia uma mulher, negra, ex-escrava e solteira neste caminho.

Desde muito pequenos, os descendentes de Eva Maria de Jesus, a Tia Eva, escutam outra versão para esta história. “Sempre nos falaram que quando José Antônio Pereira chegou por aqui, ‘não havia nada’, só uma comunidade negra nos altos do São Francisco. Esta comunidade só pode ser a nossa. Foi a Tia Eva que fixou o povoado na região do ‘Alto São Francisco’”, nos explica Lúcia da Silva Araújo, 52 anos, tataraneta de Eva e presidente da Associação dos Descendentes de Tia Eva.

Para ela, se hoje ainda há muito preconceito contra o negro, esperar que se reconheça um povoado de ex-escravos como fundadores da cidade em 1875 é impossível. “Na terra do agronegócio, esperar que reconheçam a Tia Eva como fundadora é demais. Vai ser muito difícil de isso acontecer”, diz.

Quando a informamos sobre o motivo da visita à comunidade, Lúcia se mostrou surpresa e tratou de convidar os “mais antigos” para participar da conversa que marcamos na igrejinnha fundada por Eva. Como quem observa de fora uma discussão calorosa de família, percebi que até para eles a versão deixa dúvidas. “Vovó me contava isso quando era bem pequeno. Também contei para os meus filhos, mas não tá nos registros, não é? Fica difícil para provar. Mas que éramos a única comunidade negra por aqui, isso é verdade”, diz o neto da primeira filha de Eva, Sebastiana, Sérgio Antônio da Silva, o Michel, 80 anos, como é conhecido por aqui.

Na terra do agronegócio, versão de ex-escrava fundadora não é bem-vindaEles nos contam que poucas vezes foram convidados a falar sobre o assunto e com o tempo, a história se tornou quase uma lenda que corre pelas ruas da comunidade. “Li uma vez em  uma revista o relato de que existia essa comunidade. Mas só”, diz Michel ao citar o texto da Revista Arcan. 5 de 1995, de autoria da historiadora Alisolete Antônia dos Santos Weingärtner.

“A história oral admite que José Antônio Pereira não é o primeiro desbravador a instalar moradia na confluência dos córregos Prosa e Segredo, ela aponta, também, a existência de uma comunidade negra, no Cascudo, hoje Bairro São Francisco, contemporânea a chegada dos primeiros desbravadores descendentes dos portugueses. Entretanto, esta mesma história oral reconhece que José Antônio Pereira, falecido em 1900, influenciou nos primeiros tempos a sistematização da ocupação do povoado.”

Para os descendentes a história não é bem assim. Por aqui, Tia Eva trabalhou como lavadeira, parteira, cozinheira, curandeira e benzedeira. Sabia ler e escrever e, por isso, era a referência da comunidade. “Quase a prefeita”, compara dona Neuza Geronima Rosa dos Santos, 63 anos.

As datas

De acordo com Hildebrando Campestrini, escritor e presidente do Instituto Histórico e Geografico de Mato Grosso do Sul não é possível afirmar com certeza a data correta da chegada de Eva por aqui. “A história da Tia Eva permanece, em parte, obscura. Ela deve ter chegado à vila de Campo Grande nos primeiros anos do século 20, agregando familiares”, explica. O que abre margem para outras interpretações sobre a história. 

Os relatos passados de pais para filhos na comunidade dizem que Eva chegou por aqui em 1905 com uma pequena imagem de São Benedito nas mãos. No peito, a ex-escrava trazia o sonho de curar a ferida na perna que a acompanhava havia anos e de fundar uma vila ‘para gente da sua cor onde ninguém seria escravo’. No mesmo ano ela teria feito a promessa de que se se curasse, iria fundar uma igreja em homenagem ao santo e sua comunidade realizaria uma grandiosa festa todos os anos enquanto restasse um único descendente. Na terra do agronegócio, versão de ex-escrava fundadora não é bem-vinda

A igreja de pau a pique foi fundada em 1910 e depois reconstruída em alvenaria. A festa é realizada até hoje e rende muito trabalho e diversão aos descendentes nestes 90 anos de tradição. “Nós temos muito orgulho da festa que realizamos todos os anos. A comunidade toda participa e é a opotunidade que temos para passar essas histórias para a frente”, conta dona Neuza.

“Nós não podemos afirmar a data que ela chegou. Já não temos sequer um descendente que a tenha visto. Nenhum de nós conheceu a Tia Eva. Só a Sebastiana, avó do seu Michel, mesmo assim, ela não deixou nada registrado”, diz Lúcia ao explicar que o busto de Tia Eva foi feito com base na descendente que mais se pareceu com ela. “Nós não temos nem uma foto. Para o busto procuramos com os mais antigos a indicação de quem mais se pareceu com ela e foi assim que fizemos”.

Hoje em dia, as centenas de família ainda se expremem nos 8 hectares adquiridos por Eva. Em 26 de abril de 2008, a Fundação Cultural Palmares concedeu a Certidão de Autodefinição como Comunidade Remanescente de Quilombos aos descendentes de Tia Eva e depois disso, os moradores entraram com o pedido de reconhecimento no Incra.

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Conforme o artigo 2º do Decreto 4887/2003, “consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”.

A partir deste decreto, foi transferida do Ministério da Cultura para o Incra a competência para a delimitação das terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos, bem como a determinação de suas demarcações e titulações. A comunidade reivindica 25 hectares que seriam, originalmente, pertencentes aos descendentes.

Atualmente 115 famílias formam a comunidade. No dia 5 de maio de 1998, a Igrejinha de São Benedito recebeu o definitivo tombamento como parte do Patrimônio Histórico de Mato Grosso do Sul, pelo governo do Estado. E é conhecida como a segunda mais antiga da cidade. 

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Por lá, a única certeza é de que se história realmente for como a contada para eles, a alegria será imensa. “Nós vamos ficar muito felizes se um dia for comprovado que a Tia Eva fundou a cidade. Uma mulher, forte e guerreira como ela foi, ter dado origem a uma cidade é muito bonito”, constata seu Michel.Sem grandes provas documentais, nos resta torcer para que a versão resista pelo menos na memória dos descendentes de Eva.

 

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