O ser humano é uma máquina que deu errado, diz Alexandre Nero, na varanda de uma casa no Rio de Janeiro, de onde é possível avistar o Cristo Redentor. A voz é calma, mas ele dá intensos socos na mesa (coisa que faz bastante) antes de concluir que “a imbecilidade é uma epidemia que não tem volta”.

Usando camiseta, calça jeans e chinelos, o ator Alexandre Nero Vieira, de 44 anos, parece um parente simpático de José Alfredo de Medeiros, o Comendador de Império, novela das 21h da Rede Globo. É o primeiro protagonista dele na TV. Longe das roupas pretas e do ar pesado que seu personagem carrega, Nero lembra mais o músico curitibano que já gravou oito CDs, um DVD e que tem uma intensa carreira em espetáculos teatrais e nos bares da capital paranaense. Formado como técnico em agropecuária, também já trabalhou como vendedor de telemarketing e caixa de banco. Perdeu os pais quando nem tinha completado 18 anos. Era mais fácil acompanhar seu lado exagerado, poético e escrachado nas canções que escreve (alguns títulos: “Paixonite”, “Hilário” e “Golden Shower”) do que na televisão, em que estreou em 2008 no papel do verdureiro Vanderlei, na novela A Favorita.

“Sem dúvida estou sendo hiperbólico. É erro meu me manifestar assim, aliás. Mas do jeito que a humanidade está caminhando, do jeito que nós estamos levando a coisa, eu não vejo esperança nenhuma em nada”, Nero prossegue enquanto a tarde cai, os pássaros cantam e a região exala mais Tom Jobim e menos Paulo Leminski – um dos autores que inspiram a poesia do ator. Grandalhão e afável, ele fala sobre tudo e não se preocupa em bancar o bom-moço empetecado. Nero pode ser comparado a uma granada – algo aparentemente inofensivo, mas que pode causar um enorme estrago. Esse despudor estourou quando ele era um dos convidados fixos do programa Amor & Sexo e brigava para falar sem censura.

Mas a linha de pensamento continua. “Hoje se vive mais, a habilidade de adaptação é brilhante”, ele divaga. “Apesar de ter feito essas coisas maravilhosas, o ser humano é um bicho imbecil.” Depois de seis novelas e alguns personagens de sucesso – Gilmar em Escrito nas Estrelas e Baltazar, o Zoiúdo, em Fina Estampa –, o jeito reflexivo e explosivo de Nero virou a aposta da Globo para combater um certo esgotamento de seus protagonistas – chamados de “coxinhas” por causa do excesso de bom-mocismo. Assim como a televisão norte-americana vive a sua terceira era de ouro com anti-heróis difíceis e complexos, como Don Draper da série Mad Men, chegou a hora de a TV aberta brasileira encarar um personagem cinzento, um cabra capaz de fazer coisas ruins para conquistar o bem. Alexandre Nero carrega essa dualidade. No DVD musical que dirigiu e lançou no ano passado, um tratado sobre o amor, misturou fanfarra para falar de paixão e sexo e declamar “Merda e Ouro”, de Leminski (“Não há merda que se compare/ à bosta da pessoa amada”). Ele se vê como um infiltrado na TV; prefere dizer “boceta” em vez de “pepeca”; e se diz “completamente a favor das drogas”. O que significa um tipo desses representando o programa de maior audiência no Brasil?

Você acha que a escolha de um protagonista complexo, anti-herói, neste momento da teledramaturgia brasileira, é uma quebra de paradigma, assim como aconteceu com Breaking Bad, Mad Men e outras séries norte-americanas?

O Aguinaldo [Silva, autor de Império] veio com uma história: “Vai ser um novelão”. Ou seja, uma novela tradicional. Ele resgatou uma coisa que a dramaturgia tinha perdido. Por algum motivo que eu não sei, entramos num caminho em que os protagonistas eram sempre bonitos, lindos, perfeitos, maravilhosos e bonzinhos. Aquela ética do mito grego, de que o homem não erra, não tem problemas. Mas antes não era assim. O próprio Roque Santeiro, clássico do Aguinaldo, tinha o Roque, que era um pilantra, um calhorda. Macunaíma era um preguiçoso, anti-herói. Eu acho que estamos resgatando uma coisa que eu espero que floresça com as outras que vêm por aí. O passado é o futuro.

Em relação ao Comendador, parece que há um trabalho de construção de um personagem nada maniqueísta, sem bem contra o mal.

Eu não gosto da palavra bonzinho. A palavra bom é bem diferente de bonzinho [bate na mesa]. Eu não sou bonzinho, eu sou bom! O bonzinho parece bobo. Para você combater o mal, você não pode ser bonzinho. Você tem que ser bom. E bom é forte, é porrada, entendeu? Porque para passar a perna no mal, você precisa ser bom. E pá! Não é “calma, desculpa”. Não. É pá! Desculpa é o caralho. E pá! O Zé Alfredo é bom, mas não é bonzinho. Ele tem seus problemas, seus defeitos. Ele não toma tapa na cara e vai chorar com a mãe. Ele toma tapa na cara e dá outro.

Você sente uma política de censura, da onda politicamente correta, no seu trabalho?

Nada, de maneira nenhuma. Tem alguns cuidados, o bom senso.

Houve esse caso da rede social. Você tuitou “Vocês ainda não entendem por que nas novelas não tem sexo, drogas, beijo gay e violência gratuita? Porque isso só existe na vida real!” e causou polêmica.

Sim, eu falei da caretice das pessoas, não da Globo! [bate na mesa] Se tivessem o mínimo trabalho para ler o que estava escrito embaixo, iam ver o que eu estava falando. Pela Globo, bicho, ela quer fazer o que o público quer ver. O público é pé atrás. A gente convive num universo completamente diferente da grande e avassaladora maioria do povo brasileiro. Eu ouço isso diariamente dos motoristas de táxi: “Porra, a Globo só faz novela com viado agora, hein, pô!” Ontem eu parei para comer um cachorro-quente e a mulher falou: “Ei, a Globo tá com muita pornografia, hein”. Onde? Eu não consigo ver um peitinho na Globo! Pra mim, a programação da Globo é altamente familiar.

Você se censura na rede social?

Censuro 90% das coisas que quero falar. É péssimo.

E isso vai pra onde?

Vai para a minha música, para a peça de teatro, para o livro. Vai para algum lugar, mas não vai para a rede social. Eu já tive blogs fakes. Fazia minhas coisas de humor pavoroso [risos].

A autocensura não é ruim, não te incomoda?

Eu sofro, sim. Às vezes é mais forte do que eu e escrevo [gargalhadas]. As pessoas não conseguem entender o cinza, é tudo preto ou branco. O artista faz um personagem mau, então ele é mau. O artista faz um personagem bom, ele é bom [bate na mesa]. É tudo preto e branco, é tudo bipolaridade, não existe colorido no meio. Então, se escrevo qualquer coisa sobre assassinato, sexo, drogas, significa que eu faço isso. As pessoas não conseguem entender que aquilo é apenas uma divagação sobre um assunto, uma reflexão.

Você continua lendo esta matéria na edição 97 da Rolling Stone Brasil, nas bancas a partir de 15 de setembro.