Desabrigada durante as chuvas que assolaram a Venezuela em 2010, Margarita Fórnica, de 38 anos, se apertava com o marido e os cinco filhos num refúgio compartilhado com outras centenas de famílias em Caracas, que assim como ela, perderam tudo em um deslizamento de terra.

“Tinha comprado geladeira e fogão, estavam novinhos, mas tivemos que deixar tudo para atrás. Só deu tempo de pegar os documentos. Chegamos ao abrigo só com a roupa do corpo”, relata.

Margarita, que vinha de uma situação precária de moradia, viu suas condições de vida piorarem ainda mais no refúgio improvisado. Durante meses, dormiu com as notícias que o esposo trazia do trabalho.

“Ele me contava que estava levando material de construção para uns condomínios lindíssimos e me dizia: isso deve ser para gente rica”.

Essa venezuelana permaneceu nove meses no refúgio, até que foi escolhida, entre outras 1.700 famílias, a morar na recém criada Cidade Caribia – conjunto habitacional idealizado por Hugo Chávez.

“Mal sabíamos que um daqueles apartamentos de luxo que meu esposo tanto falava seria nosso”, relata Margarita, com os olhos marejados. Sem investir um centavo, essa venezuelana recebeu um apartamento com três dormitórios, dois banheiros, sala, cozinha e todos os móveis e eletrodomésticos básicos. A janela de seu quarto tem vista ao mar.

‘Menina dos olhos’ de Chávez

Uma tarde, ao sobrevoar de helicóptero as montanhas que dividem o vale de Caracas e o mar do Caribe, Chávez observou um terreno e idealizou a construção de uma cidade que deveria servir de espelho de seu projeto socialista.

“Não perco a esperança de ver, se não todos, a maioria dos morros de Caracas assim. Para isso meteremos toda a alma, toda a força para conseguir esse objetivo (…) mas é preciso cuidar a estabilidade do país”, afirmou Chávez, em dezembro de 2011, ao entregar os primeiros apartamentos da “cidade socialista”.

À época, o presidente ainda estava calvo, se recuperava de um dos ciclos de quimioterapia para combater o câncer que dois anos mais tarde o levaria à morte.

Para viabilizar o projeto – visto por críticos como uma extravagância do presidente – foi necessário criar acessos ao local. Uma ponte e um tortuoso caminho de mais de dois quilômetros foram construídos para abrir passagem ao terreno montanhoso. O mesmo esforço teve de ser feito para levar serviços básicos de gás, água e eletricidade para a montanha até então desabitada. A etapa final do projeto, ainda em desenvolvimento, prevê a construção de 20 mil apartamentos.

Chávez tinha orgulho da Cidade Caribia. Em 2012, quando foi ao aeroporto receber o presidente cubano, Raúl Castro, para participar da Cúpula da Alba (Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América), o então presidente decidiu desviar o caminho e levar seu colega cubano à cidade recém construída. Ao volante, Chávez surpreendeu os moradores com a visita.

Cercada por verdes montanhas, a cidade conta com escolas, centros de saúde, uma sucursal do Ministério Público, três projetos de cooperativas e a representação de todos os programas sociais do governo. “Nosso comandante queria que esse fosse um espaço para viver e trabalhar, para evitar que isso se converta numa cidade dormitório”, afirma Margarita.

Acompanhando a tendência do governo de manter viva a imagem onipresente de Chávez, os edifícios que foram construídos depois de sua morte estão marcados com sua assinatura. O culto à imagem do “comandante”, como é chamado por seus simpatizantes, permanece vivo. Em Ciudade Caribia, raros são os apartamentos que não têm pendurados nas janelas a imagem do líder bolivariano.

A cidade, convertida na “menina dos olhos” de Chávez, fez parte de uma ofensiva empreendida pelo governo, a partir de 2010, para atender às críticas relacionadas com a ineficiência da gestão governamental e a estagnação do setor de construção para moradias populares. Desde então, quase 400 mil casas foram construídas e entregues gratuitamente a famílias de baixa renda.

Déficit habitacional

A oposição critica, no entanto, que o déficit de 2 milhões de casas poderia ser resolvido se houvesse transparência no uso dos recursos públicos destinados à habitação.

Há críticas também entre os aliados do governo sobre o modo como o Estado enfrenta o déficit habitacional. Rigel Sergent, do movimento de moradia Pobladores, considera positivo o caso de Ciudad Caribia, porque mostra que o Estado não pode deixar “nas mãos do mercado” o planejamento urbano, principalmente, o voltado para os mais pobres.

Apesar do sobrenome “socialista”, para Sergent, no entanto, a Cidade Caribia ainda está longe de tornar-se um modelo de gestão habitacional socialista.

“Para resolver o problema de moradia, o pobre não pode esperar sentado ou num refúgio que o Estado lhe entregue as chaves de sua casa”, afirma Sergent. “Deve haver um processo organizativo que permita desmercantilizar o uso do solo, que é o principal fator de especulação”, defende.

O outro caminho que a seu ver deveria ser estimulado pelo governo é a autogestão. Os Pobladores também criticam o sistema paternalista característico da sociedade venezuelana em sua relação com o Estado. “O paternalismo não permite que as pessoas se organizem e desenvolvam processos massivos de recuperação de nossa capacidade de gerar outro tipo de habitat”, afirmou.

Margarita diz lutar contra a lógica paternalista. Ao mudar para Cidade Caribia, ela conseguiu trabalho como assistente na escola de ensino médio. Após a jornada de trabalho, ela se dedica a atividades políticas e de organização entre os vizinhos.

Os filhos participam em atividades esportivas e frequentam o núcleo do Sistema de Orquestras Infantis, um ícone na formação de jovens das periferias em música clássica. “Continuamos preservando o legado que ele nos deixou. Nós temos em nossas mãos a solução de todos os problemas, só depende de nós mesmos”.

Prateleiras cheias

A maioria das famílias da Cidade Caribia apoiam incondicionalmente o governo de Nicolás Maduro. Dizem que, se Chávez o elegeu como sucessor, “foi por alguma razão” e seguem cabalmente as orientações de unidade defendidas pelo antigo presidente.

Os moradores da “cidade socialista” são alheios às reivindicações que estimulam os protestos de jovens opositores contra o governo. Na rede de supermercados Mercal instalada ali, não há escassez. As prateleiras estão cheias com os produtos básicos que, no leste da cidade de Caracas, onde há desabastecimento, são disputados em gigantescas filas de consumidores.

Os recentes protestos liderados pela ala radical da oposição contribuíram para o fortalecimento da unidade chavista em torno de Maduro. De acordo com pesquisa da Consultoria Hinterlaces, desde que a violência nos protestos se recrudesceu, há três semanas, o chavismo radical cresceu 7 pontos percentuais.

Mais de 40% da população, segundo a Hinterlaces, se declara chavista. O restante se divide entre independentes e opositores. “Estamos alertas e mais unidos que nunca com Maduro, ele conta com o apoio da maioria”, afirma Margarita.

Desde sua morte, a conotação religiosa que já vinha ganhando força em torno do mito Chávez e sua batalha contra o câncer se fortaleceu. Margarita diz amargar a sensação de uma “despedida forçada”. Ela fala do presidente com intimidade e diz considerá-lo como um pai.

“Por mais que ele quisesse se cuidar, não conseguia, não dormia bem. Depois veio o problema das chuvas, e ele disse que não descansaria até que desse um teto digno a todos”, relata. Invocando conceitos cristãos, Margarita diz que Chávez “entregou sua vida” para transformar a vida dos venezuelanos. Ela diz sentir-se de alguma maneira responsável pela aparição do câncer que matou o presidente. “Sabemos que essa doença, parte da culpa é nossa, por tantos problemas que ele teve que enfrentar”.