Uma criança cega desenvolve melhor a audição do que as que enxergam. Partindo desta constatação, pesquisadores das universidades de Maryland e Johns Hopkins, nos Estados Unidos, decidiram checar se, em adultos, o efeito de uma perda temporária de visão poderia ser o mesmo. Utilizando camundongos, eles constataram que o cérebro dos animais adultos também é capaz de religar alguns circuitos que processam as informações sensoriais, aumentando sua capacidade de audição.

Os pesquisadores chamaram a mudança de efeito Ray Charles, em referência ao músico americano que perdeu a visão aos sete anos de idade. O resultado, publicado na revista “Neuron”, pode ajudar a desenvolver novos tratamentos para a perda da audição ou do zumbido.

“Há um certo nível de interligação dos sentidos no cérebro que estamos revelando aqui”, escreveu Patrick Kanold, professor de biologia na Universidade de Maryland e que, em conjunto com Hye-Kyoung Lee, professora de neurociência da Universidade Johns Hopkins, liderou o estudo.

“Nós talvez possamos usar isso para recuperar um sentido perdido’, afirmou Hye-Kyoung. “Ao impedir temporariamente a visão, somos capazes de incentivar o cérebro adulto a mudar seu circuito para melhorar o processamento do som”.

No artigo, os pesquisadores explicou que há um “período crítico” para a audição nas crianças, assim como para a visão. O sistema auditivo no cérebro de uma criança muito jovem aprende rapidamente o seu caminho em torno do som ambiente, tornando-se mais sensível aos sons que encontra na maioria das vezes. Mas uma vez passado este período crítico, os cientistas dizem  acreditar que o sistema auditivo não respondia mais às mudanças.

“É por isso que não podemos ouvir certos tons em chinês se não aprendermos chinês quando crianças”, exemplificou Kanold. “Por isso a importância de selecionar crianças com deficit auditivo e visual desde cedo. Você não pode corrigi-los após o período crítico”.

No entanto, Kanold, especializado no processamento do som no cérebro, e Hye-Kyoung, especialista nos processos da visão, se perguntaram se o cérebro adulto também poderia ser flexível se forçado a trabalhar em todos os sentidos,em vez de se focar apenas na visão.

Modelo de estudo

Os pesquisadores simularam a cegueira dos camundongos ao colocá-los na escuridão total por cerca de seis a oito dias. Após o período, os animais retornaram para a luz com a visão inalterada, mas com a audição mais aguçada do que antes.

Para chegar ao resultado, os cientistas fizeram testes de som com notas musicais e observaram as respostas dos neurônios individuais no córtex auditivo dos animais, a parte do cérebro dedicada exclusivamente à audição. A pesquisa observou especificamente os neurônios da camada do meio do córtex auditivo, que recebe sinais a partir do tálamo – região de substância cinza do encéfalo, considerada uma central de informação e integração de sinais do cérebro.

Acreditava-se que os neurônios nesta camada do córtex auditivo não fossem flexíveis em adultos. No entanto, os ratos que foram privados de luz por uns dias apresentaram mudanças na região. Os neurônios testados foram ativados mais rapidamente e com mais força quando as notas eram tocadas, foram mais sensíveis aos sons quase imperceptíveis e conseguiram distinguir melhor os sons. Eles também desenvolveram mais sinapses, ou conexões neurais, entre o tálamo e o córtex auditivo.

Como as mudanças ocorreram no córtex, que tem a mesma estrutura na maioria dos mamíferos, os cientistas dizem acreditar que a flexibilidade nos sentidos pode ser uma característica do cérebro dos mamíferos.

“Isto me faz ter esperança de que podemos encontrar a mesma flexibilidade em animais de maior porte, incluindo os seres humanos”, afirmou Kanold. “Nós não sabemos quantos dias um ser humano teria que ficar no escuro para obter este efeito, e se ele estaria disposto a fazer isso. Mas pode haver uma maneira de usar o treinamento multissensorial para corrigir algum problema de processamento sensorial em seres humanos”.

A audição dos camundongos retornou ao normal após algumas semanas. Na próxima fase do estudo, que terá duração de cinco anos, Kanold e Hye-Kyoung planejam procurar maneiras de fazer as melhorias sensoriais permanentes, e de olhar para além dos neurônios individuais para estudar mudanças mais amplas na forma como o cérebro processa os sons.