Independente da geração que você faça parte, provavelmente cresceu ouvindo os mais velhos contarem algumas lendas urbanas. Essas, apesar do caráter fabuloso, servem para alertar as crianças de possíveis riscos, e mantê-las em segurança. Outras, carregam até mesmo detalhes da história de uma cidade, preservando a cultura e tradições locais.

Esta é a segunda reportagem da série especial #CG125, que celebra os 125 anos da Cidade Morena, no próximo dia 26 de agosto. Nesta, vamos explicar que a circulação de lendas urbanas também está presente em Campo Grande, algumas, até com fundo de verdade. Para contá-las, o Jornal Midiamax conversou com ex-ferroviários, já que muitas dessas lendas foram criadas nesse período da história de Campo Grande.

Chegando à Afapedi (Associação dos Ferroviários, Aposentados, Pensionistas, Demitidos e Idosos), a reportagem foi logo recebida peles amigos Nelson Pereira de Araújo, conhecido como Goiabera; José Melquiades Velasques, chamado pelos colegas de Zé Bala; e João Luiz Gonçalves dos Santos, que leva o apelido de Popó.

Alegres e cheios de história para contar, o trio de amigos já foi logo abrindo o baú de memórias e narrando todas elas, puxando desde a infância, até o momento em que trabalharam na ferrovia. A primeira história citada foi a do Poeira e da Gertrudes. Esses, apesar de não fazerem mal a ninguém, acabavam despertando medo entre os que moravam na região da vila ferroviária.

Nas bandas do Cascudo, passava um homem chamado Poeira

“Poeira era um camarada que trabalhava em fazenda como peão, uns três meses, e quando vinha para a cidade ficava aí pelas ruas, não fazia mal para ninguém. Era um homem negro, forte, andava cantando, e nos primeiros dias estava bem-vestido. Depois, com os dias dormindo na rua, bebendo, ele ia ficando com aparência mais suja. Quando acabava o dinheiro ele ia para o mato de novo. Tinha até uma música”, contou Nelson.

José Melquiades (Zé Bala) conta histórias do ‘Poeira’. (Ana Laura Menegat)

Fazendo um esforço mental, Nelson conseguiu se lembrar de um verso da canção, mas ainda lhe restaram dúvidas se a sequência estava correta. “A música falava assim: Lá nas bandas do Cascudo, na divisa com Vai ou Racha, um senhor chamado Poeira, por ali passava”, cantou.

José Melquiades também chegou a conhecer o Poeira, em 1968, e lembra bem da sua figura. Não só dele, mas da sua namorada, Gertrudes, que costumava andar pela região do Cascudo, onde atualmente é o bairro São Francisco, na companhia de 12 cachorros.

“O nome dele era José Rodrigues de Paula, a namorada dele se chamava Gertrudes. Era uma mulher que andava com mais de 12 cachorros na Rua 14 de Julho. Ele andava todo de branco, mas depois de uma semana se entregava. Era uma pessoa que não tinha maldade com ninguém”, conta o Zé Bala.

Conversando mais sobre o assunto, José nos contou que Poeira era muito querido pela comunidade japonesa que morava ali pela região. “Depois de muito tempo, fiquei sabendo que os japoneses falaram para ele, que se ele parasse de beber, eles davam umas terras para ele. Na época, ele parou de beber, ganhou as terras e casou com uma viúva de um ferroviário”, contou.

Bruxa da Sapolândia

Assim como a figura do Poeira, a ‘bruxa da Sapolândia’ virou um argumento para as mães manterem seus filhos em segurança. Contudo, diferente do Poeira, a Bruxa da Sapolândia representou risco real às crianças da época. Pelo menos é assim que a história é contada.

Foto emblemática da ‘bruxa da Sapolândia’. (Foto: Arquivo)

Célia de Souza ficou eternizada como a ‘bruxa da Sapolândia’ após cometer uma série de crimes contra crianças, nos anos 70. Aos 49 anos, Célia foi presa, acusada de matar seis crianças, na região do Taquarussu, chamada na época de Sapolândia. Os crimes teriam sido motivados por crenças em rituais de magia.

Na época, Nelson era criança, mas já ouvia de sua mãe que não devia andar sozinho, ou poderia ser pego pela Bruxa da Sapolândia. “Na época a gente era criança e ouvia os relatos. Eles falam Sapolândia porque era bem ali na beira do brejo, mas do lado ali tem o Taquarussu. Então, a gente ia jogar bola lá, e os guris não andavam sozinho, sempre com medo dela”, contou.

Apesar de se tratar de um crime já solucionado e muito divulgado na época, a história virou uma lenda de terror, pois após sair da prisão, Célia nunca mais foi vista. Sem deixar rastros, muitos acreditam até que a bruxa ainda aparece na região.

“Fiquei sabendo que há uns cinco anos, uma equipe foi fazer um trabalho lá e no momento em que estavam fazendo a matéria, se manifestou [a bruxa], da mesma maneira que se manifestava antes. Diziam que era uma velha, e na época morava uma senhora idosa lá, sim, a foto dela até saiu no jornal na época, também. Falavam que ela pegava as crianças, todas que sumiram na época ficaram na conta dela”, compartilhou Nelson.

Luz misteriosa

Entrando nas histórias de terror, fomos introduzidos à lenda da luz misteriosa, que aparecia no caminho do trem. Essa era vista em vários pontos da linha férrea, mas tinha sempre duas características em comum: acompanhava os viajantes do trem e sumia rapidamente.

“Já cheguei a ver trabalhando no trem, chegando em Campo Grande ou saindo. É uma luz que você não consegue identificar o que é, de repente ela desaparece. Outros colegas meus também já viram. Principalmente entre Terenos e o Indubrasil, vindo de lá para cá. Sempre do lado esquerdo aparecia essa luz, que ninguém sabia o que era”, conta Nelson.  

Caso parecido era da luz que ficava na região da Base Aérea. Essa, mesmo parecendo ser uma luz fixa, não podia ser alcançada. “Ficava perto do paiol, mas você podia andar, andar, que não chegava nela, ela ia se afastando. Era uma luz forte e grande”, explicou.

Sucuri gigante

Sabe aquelas histórias de pescador, que a gente sempre desconfia de sua veracidade, mas continua amando ouvir? Nelson contou que as histórias de ferroviários, muitas vezes, são assim, não possuem comprovação, mas nos divertem e aguçam nossa imaginação.

Nelson Pereira conta histórias da época da ferrovia. (Ana Laura Menegat)

Um exemplo é a história da Sucuri gigante, que ficava na ponte Eurico Dutra, entre Corumbá e Campo Grande. No local, ficavam as casas dos trabalhadores da via permanente do trem, que conservavam a linha férrea. Diariamente, eles ‘corriam’ o trilho, fazendo a revisão e procurando algum defeito. Se estivesse ao alcance, reparavam, se não estava, botavam restrição na linha.

“Quando enchia o Pantanal, os bichos vinham tudo para cima da linha porque era tudo água, ficava só a linha mesmo. Você via jacaré, capivara, sucuri, cobra. Você ia passando de trem e via os bichos. Às vezes, os bichos eram atropelados porque não tinha tempo de tirar”, contou Nelson.

“E tinha uma lenda que uma sucuri já estava familiarizada com o trem. Então, quando o maquinista ia daqui para lá, já ia buzinando quando via aquele rolo em cima da linha. Mas, ela não saía porque estava tão acostumada com o trem que, quando ia chegando perto, ela levantava, fazia um arco, o trem passava por baixo, e depois ela voltava”, concluiu, aos risos. 

Noiva fantasma do trem

Tentando resgatar mais histórias de terror, Nelson se lembrou das noivas fantasmas. Os relatos de suas aparições foram na estação de Luiz Gama, próximo a Ribas do Rio Pardo, e na estação de Lagoa Rica, perto do aeroporto Santa Maria.

Vagão costumava receber visitantes, mas atualmente aguarda reforma. (Ana Laura Menegat, Midiamax)

Logo, lembraram-se de um fato ainda maior: a noiva do vagão que fica na Esplanada Ferroviária. Para contar essa história, ninguém melhor do que o Zé Bala, pois já teve contato com o espírito da mulher, que ainda habitaria o local – dizem!

“Eu sentia muita dor no peito e nas costas, alguns anos depois que viemos para cá. Esse vagão estava aqui já. Então, um dia, chegou em mim um rapaz alto e grandão, e falou: ‘você que é o José?’ Eu me afastei, porque nunca vi ele na vida. Então, ele continuou: ‘esse peso que você sente nas costas não é seu’. E assim, ele começou a narrar o que aconteceu. O casal de noivos estava andando em uma linha e foi atropelado, e o espírito deles ficaram presos no vagão”, narrou.

“Depois de três anos que ele veio pela primeira vez, ele voltou aqui e falou ‘preciso te contar uma coisa. O trabalho foi bem feito e o noivo foi embora, recolheu’. Então, entendi que os espíritos ficaram um período aqui dentro. Passou isso, um dia uma menininha veio aqui visitar e chegou para mim e falou ‘tio o que aquela mulher de branco está fazendo ali na porta?’”, continuou.

Impedimentos ao escrever história

Com uma sensibilidade maior para o mundo espiritual, Zé Bala não consegue até hoje chegar na porta do vagão. O ex-ferroviário conta que já tentou até mesmo escrever a história, a pedido de uma noiva que se casou no Armazém Cultural. Mas, sentimentos lhe inundaram no momento, e a missão não pôde ser concluída.

lendas urbanas Campo Grande vagão ex-ferroviários
José Melquiades não consegue entrar em vagão. (Ana Laura Menegat, Midiamax)

“Uma noiva que casou aqui no Armazém pediu para eu contar essa história, fazer a narrativa do vagão. Só que eu não consegui terminar, não consigo nem entrar naquela porta ali. Falam que a linha férrea é o lugar que mais tem espiritualidade, porque ali tem a pedra e o ferro, onde os espíritos gostam mais de ficar”, contou.

E você, que lendas urbanas sobre Campo Grande conhece que não foram mencionadas pelos ferroviários?

#CG125 – Campo Grande faz aniversário!

Jornal Midiamax iniciou a partir de 19 de agosto a publicação de uma série de reportagens com perspectivas sobre a Capital sul-mato-grossense, que completa, no dia 26 de agosto de 2024, 125 anos de sua fundação.

📢 Quer conferir as notícias em primeira mão? Participe da nossa comunidade no WhatsApp e acompanhe a cobertura jornalística mais completa e mais rápida de Mato Grosso do Sul.