Muito além das perdas e tristes lembranças dos pertences destruídos, os moradores do bairro Cohab, região de periferia de Porto Murtinho, a 443 km de Campo Grande, temem novas enchentes. De 2017 para cá, segundo famílias ouvidas pelo Jornal Midiamax, foram três fortes chuvas que as fizeram sair de casa somente com os filhos no colo e as “roupas do corpo”.

“Nós passamos por três enchentes. A de 2017 eu considero a maior delas, porque estava dormindo e acordei com água acima do joelho e depois lembro das pessoas passando de lancha na frente da minha casa. Acabou tudo o que eu tinha e precisei de doações para me reconstruir. Em 2020, teve outra e o veio aqui, vistoriou e condenou a estrutura da minha casa”, afirmou a dona de casa Ramona Amarília, de 50 anos. 

Dona Ramona e o marido viram momento em que chuva rachou parede e levou janela embora
Dona Ramona e o marido viram o momento em que chuva rachou parede e levou janela embora. Crédito: Marcos Ermínio/Jornal Midiamax

 

Segundo ela, uma das imagens que a marcou foi ver a água invadindo a casa e, em seguida, levando a janela embora. “Eu lembro que rachou a parede tudo e depois saiu a janela. Outra coisa que vi e não esqueço foi a hora de retirar as coisas da casa e jogar tudo no mato, como o fogão, geladeira e outros móveis. As pessoas falam que a gente precisa sair daqui, mas, eu sempre me pergunto: Para onde vamos? Aqui é o meu lar há 15 anos, não tenho outro lugar para morar”, comentou Amarília.

Dona de casa mostra fogão que ganhou após enchente.
Crédito: Marcos Ermínio/Jornal Midiamax

A empregada doméstica Marta da Silva, de 57 anos, fala que teme “a chuvarada” logo no início do próximo ano. “Este ano de 2021 conseguimos escapar da enchente, ainda estamos nos recuperando da que teve no ano anterior, mas, a gente convive com o medo aqui. Sei que tem muita chuva prevista para vir em 2022. Estou sempre acompanhando na internet e falam que será água acima da média no próximo ano”, argumentou. 

De acordo com Silva, nesta enchente considerada histórica pelos moradores da região, há 4 anos, ela não estava em casa, porém retornou às pressas para o lugar. “Eu estava em Jardim, na minha sogra. Minha filha é quem estava em casa e me ligou. Ela disse que estava tudo alagado e, quando eu cheguei, já não tinha como recuperar mais nada. Não tinha para onde ir. Não tinha o que fazer”, relembrou. 

Durante a madrugada ainda, ela disse que chegaram militares do Exército, funcionários da prefeitura do município e a Defesa Civil e o Corpo de Bombeiros. “Eles nos abrigaram no Centro de Atividades Múltiplas [CAM] aqui da cidade e nos ajudaram com o básico, dando colchão e alimentos. Depois, começamos tudo de novo com doações e comprando outras coisas”, disse. 

Doméstica diz que precisou começar do zero após enchentes. Crédito: Marcos Ermínio/Jornal Midiamax

Na rua Carandá, a Márcia Beatriz Rolon, de 45 anos, também possui uma casa há cerca de duas décadas. No entanto, o imóvel difere dos outros devido a quatro reformas para tentar impedir a entrada de água. 

“No meu caso, foram 4 enchentes e 4 reformas. A marca da água ficou por muitos anos na parede. Eu vejo que aqui não tem um projeto, é um local muito baixo para a construção de casas. E nós estamos pagando prestação, não é de graça. Acho que deveriam ter feito um planejamento maior neste sentido”, lamentou. 

Conforme Márcia, houve a necessidade de colocar piso até a altura da cintura na parte externa da casa, além de cobrir com piso toda a cozinha e os quartos.

“É uma coisa de louco quando vem uma chuva forte. A água vai subindo pelo ralo, pelo fundo da casa e aí a gente sai erguendo tudo o que pode. E quando chegam doações na rua, é engraçado que pulam a minha casa sempre. Acham que aqui é diferente por conta das reformas que eu fiz, só que ninguém vê que eu sou assalariada. E meu medo é constante, sempre acho que vou perder tudo de novo”, explicou. 

Merenderia diz que já reformou a casa quatro vezes após enchentes; neto dela mostra marca da água que ficou na parede.
Crédito: Marcos Ermínio/Jornal Midiamax

 

Moradora na mesma rua há 15 anos, a também dona de casa Eva Gomes Gil, de 43 anos, relembra o momento em que perdeu um guarda-roupa, ainda na caixa, durante uma das enchentes. “Ele não tinha nem montado e tive que jogar fora. Agora, aqui tudo é de madeira. Eu sou natural de Bela Vista e lembro que na primeira enchente estava sozinha. Acordei com minha filha chorando, só deu tempo de subir na bicicleta e ir com ela para a casa da minha sogra. Na época, não sei como, ainda levei meu cachorro junto”, comentou. 

Quando o marido chegou de viagem, ele disse a Eva para retornar, mas ela não queria. “Eu fiquei um mês fora de casa, dizendo que iria para Bela Vista. Depois, me acalmei e voltei para cá. Limpei tudo o que dava e recomecei. Teve mais enchentes depois e agora a gente acha que está preparado, só que a verdade é que nunca está”, falou.

Município de Porto Murtinho fica às margens do . Crédito: Marcos Ermínio

 

Obras de recuperação

Em julho de 2020, o Governo do Estado anunciou grandes investimentos no município para contenção de enchentes, com um projeto de recuperação da estrutura do dique. Neste caso, a obra orçada em R$ 1,6 milhão contemplaria a restauração e reforço da cortina de contenção do dique construído às margens do Rio Paraguai na década de 1980. 

No entanto, na região da periferia, os moradores falam que a água não vem da cheia do Rio Paraguai, mas sim de um valetão que existe nas proximidades, na parte mais alta. Desta forma, quando enche, a água se dispersa para cidade e atinge, principalmente, os moradores do bairro Cohab.

Situação de emergência

Em 2020, um decreto estadual manteve a cidade em situação de emergência durante todo o ano. Na ocasião, houve recomendação da Defesa Civil Estadual e o documento ainda falava sobre o início das cheias no Pantanal, o que poderia causar o agravamento da situação. 

Já em 2017 e início de 2018, as enchentes deixaram centenas de pessoas desabrigadas. O coordenador estadual da Defesa Civil, Fábio Catarineli, ressaltou em entrevistas que o bairro Cohab estava “com água acima dos joelhos” em ao menos três quadras, sendo também o mais atingido pelas fortes chuvas. 

Bombeiros, Defesa Civil e Exército ajudaram vítimas da enchente em Porto Murtinho (MS). Crédito: Redes Sociais/Reprodução

 

Enchente histórica na década de 80

Porto Murtinho é uma cidade situada às margens do Rio Paraguai, desta forma, associada à natureza, a população é influenciada também pelo ritmo das águas e costumes fronteiriços. De 1979 a 1982, a cidade foi atingida por sucessivas enchentes, o que causou alteração no espaço urbano e fez o setor público planejar a construção do dique para contenção das águas. 

No arquivo histórico da cidade, consta que, além do quebracho que trouxe muito desenvolvimento para a região, as enchentes sempre trouxeram transtornos e por isso houve a construção do dique. A obra, inaugurada em 1985, inclusive, foi palco de denúncias de desvios de dinheiro na ocasião e evitou outra grande enchente, com a cheia do Rio Paraguai em 1988.

O que diz a prefeitura

O Jornal Midiamax questionou o prefeito do município, Nelson Cintra, sobre a situação dos moradores do bairro Cohab, principalmente na rua Carandá. Ele ressaltou que a chegada da rota bioceânica já trouxe novos recursos para o município, incluindo o projeto de limpeza dos canais de drenagem, o que vai ajudar no escoamento da água.

Prefeitura diz que vai fazer limpeza dos canais de drenagem em Porto Murtinho. Crédito: Redes Sociais/Reprodução

“Estamos em um momento diferenciado em Porto Murtinho, já que o município precisa de muita estrutura para a questão da rota bioceânica. Houve demora para licitar a ponte, mas, estamos com R$ 10 milhões em recursos destinados para drenagem e também limpeza destes canais. Isso vai dar um alívio para a população. Também temos a reconstrução do dique e estamos muito empenhados neste projeto”, alegou. 

Sobre o bairro Cohab, Cintra fala que se trata de um local insalubre e, mesmo assim, os moradores não querem sair de lá. “Quando chove de 50 a 80 milímetros já inunda tudo por lá. Nós temos trabalho especial neste sentido, já tentamos tirar o pessoal e levar para um lugar mais alto, principalmente na rua Carandá, só que eles não querem sair de lá e a luta envolve toda uma questão de sensibilidade”, finalizou.