Descendentes de japoneses passaram cinco anos no país

 

Às vezes, a distância entre o sonho e a realização é longa. Esta, no caso, foi de cerca de 20 mil km, uma longa viagem que narra uma história movida pela expectativa, mas que esbarrou na deportação, no desencontro, e, principalmente, culminou no aprendizado. Foi assim com a arquiteta Daniela Seabra, 40, que movida pelo sonho de ter uma motocicleta Harley Davidson e de viajar o mundo, deixou a família em Campo Grande e foi tentar a vida no Japão, aos 17 anos.

Mãe e filha foram ao Japão atrás dos sonhos, mas voltaram com mala cheia de liçõesDescendente de japoneses da família Ganiko, Daniela inspirou-se na coragem do irmão, Joaquim, que morou quase três anos no país, para fazer as malas e partir. Na bagagem, além de tudo (tudo mesmo, até escova de dente), ela levava a ideia de que retornar ao local de onde seus antepassados vieram seria mais que solução financeira, mas a oportunidade de ampliar os horizontes.

“Naquele tempo, na década de 1990, havia muita inflação, era difícil você construir um patrimônio. E a gente começava a ouvir histórias de brasileiros descendentes de japoneses que estavam conseguindo fazer um bom pé de meia. Meu irmão tinha acabado de voltar de lá, e eu queria muito ter uma moto Harley Davidson. E eu fui, com 17 anos”, conta a arquiteta.

Era o ano de 1993. Com uma prima, tomou um avião até São Paulo e mais um para o Japão, cuja viagem até Kobe durou quase 24h. “Mas não me deixaram ficar. Fui deportada e voltei no mesmo voo. Era muito jovem e não tinha nada certo lá, fui na cara e na coragem”, conta. Voltou. E depois de um ano, já com 18, contou com a ajuda de um agenciador para conseguir visto de moradia no Japão.

“Não ter ficado foi bom, porque em 1995 teve um terremoto em Kobe que matou muitos brasileiros, e da segunda vez acabei indo para outra região, Shigakogen, uma região montanhosa onde há muitos hotéis e as pessoas praticavam esportes na neve. Quando eu decidi ir novamente, já no primeiro dia no Japão eu me arrependi. Eu deixei uma vida de princesa e depois estava lá, como garçonete, atendendo gente num idioma que demorei a aprender. Foi uma grande lição que carrego até hoje, mas, mesmo assim, valeu muito a pena”, narra.

Encontros e desencontros

Depois de três meses separadas, mãe e filha se reencontraram (Arquivo pessoal)

 

Com o tempo, o sonho mudou. A maturidade que adquiriu longe da família acabou lhe apresentando outras oportunidade. Todavia, Daniela não contava que a mãe também fizesse as malas e se juntasse a ela. “Daniela tinha uma gripe que nunca curava e na mesma época um brasileiro voltou pra cá porque estava com pneumonia e o médico disse pra ele voltar. Dai eu fiquei preocupada e fui. Só que demorou três meses até encontrá-la. Sai perguntando pras pessoas se alguém conhecia, até que achei”, conta Lúcia Ganiko, 77, mãe de Daniela.

Karaokê no Japão (Arquivo pessoal)“No lugar que eu estava tinha que percorrer quilômetros para comprar um cartão de telefone. Não tinha celular, não tinha internet, era tudo muito difícil. Mas, a gente acabou se reencontrando, eu sarei da gripe e minha mãe decidiu ficar”, conta a arquiteta.

Assim, enquanto Lúcia trabalhava como camareira, Daniela continuava como garçonete. Foi desta forma por quatro anos, até voltarem ao Brasil, com algumas mudanças aqui e ali. Daniela trabalhou também em fábricas, na linha de montagem. Aprendeu muito sobre a cultura japonesa, solidariedade, família, e guarda até hoje um prêmio que recebeu como melhor funcionária de uma indústria.

“São as lembranças que ficam, que eu trouxe na mala”, disse ela, enquanto soltava sorriso revendo as fotos que mostrou à reportagem. “Essa daqui foi quando recebi meu prêmio, essa aqui foi num karaokê. Japonês adora karaokê”, disse.

Novos planos, novas prioridades

Lúcia Ganiko em Shigakogen, Japão (Arquivo pessoal)

 

Com o passar dos anos, Daniela e Lúcia redescobriam-se, uma a outra. E além delas, amparavam-se na comunidade brasileira no Japão. As duas trabalhavam longas jornadas, de olho das horas extras, e em casa também faziam salgados para vender. “Tinha muita gente que chegava tarde, não queria cozinhar, e comprava os salgados que a gente fazia”, explica Lúcia. Em 1998, no entanto, ela precisou voltar ao Brasil para resolver assuntos familiares. Na ocasião, Daniela, que era noiva, decidiu ficar e acertou de dividir um apartamento com uma amiga de infância que também foi para o Japão.

Quando Daniela foi premiada melhor funcionária de uma fábrica (Arquivo pessoal)“Minha ideia, mesmo, era ficar por lá, fazer a vida por lá. Mas quando eu voltei, vi que a vida chamou aqui. Fiquei três meses, resolvi o que precisava ser resolvido, e então retornei ao Japão para acertar algumas coisas com minha amiga, para não deixar ela na mão, e também para romper o noivado. E voltei definitivamente para o Brasil, depois de cinco anos, em 1999, mas na certeza de que deixei muitas oportunidade por lá”, conta.

Viver em um país que, no fim das contas, descobriu que não era seu, foi o motor para as novas descobertas e aprendizados da arquiteta. “Eu não me senti japonesa lá, sempre era vista como descendente, como brasileira, mas isso nunca foi problema, pelo contrário. Ser brasileira, latina, me deu jogo de cintura para contornar um ‘não’, uma dificuldade. Eles não tem a nossa criatividade diante dos problemas. Mais difícil que conviver com os japoneses, mesmo, era conviver com os brasileiros, que continua brasileiro em todo lugar”, brinca.

De volta ao Brasil, ela decidiu traçar novas metas, agora, com a maturidade que havia adquirido e que trouxe na mala. A Harley Davidson nunca rolou, mas, é o aprendizado na bagagem que tem valor inestimável. “Eu aprendi a valorizar minha família, entendi que as coisas dependem mais de mim que das circunstâncias. Consegui uma grana que investi em outras áreas. É claro que eu queria ter ficado, mas não deu. Porém, o que eu tenho aqui também tem valor inestimável. Estar junto da minha mãe, tanto lá como aqui, fez de mim a pessoa que eu sou. Além do mais, meus sonhos não cabem mais numa Harley, tem que ser uma Doblô, para levar meus bichos, minha família e meus amigos pelo muindo”, conclui.