Basta um dia, um acidente de trabalho, e a vida muda para sempre
Marcas não são apenas físicas, mas também psicológicas
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Marcas não são apenas físicas, mas também psicológicas
Jane sofreu acidente a caminho do trabalho e um esporte entrou em sua vida (Foto: Marithê Lopes)
Se a vida da gente fosse um filme, boa parte dele teria como locação o nosso ambiente de trabalho. É dele que extraímos o básico para viver, o retorno financeiro, e também é dele que vem o reconhecimento do ofício estudado ou aprendido na vida. Trabalho é lugar, ainda, de estabelecer relações de amizade, de amor, algumas para toda a vida. Às vezes, porém, esse filme fica triste, e o que era para ser um local seguro, um nascedouro de coisas boas, transforma-se em risco à vida, em medo da morte, em desesperança, na forma de acidentes de trabalho.
Em Mato Grosso do Sul, a cada dia a vida de 31 trabalhadores muda, temporariamente ou de forma definitiva, depois de incidentes relacionados ao desempenho profissional. O dado considera o levantamento mais atualizado disponível, de 2013, quando foram registrados 11.402 acidentes de trabalho no Estado, 6,5% a mais do que em 2011, de acordo com as informações do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social).
Na frieza dos números, é um quadro preocupante e merecedor de envolvimento do Poder Público, da iniciativa privada e da sociedade em ações de combate ao problema. No calor dos sentimentos, cada número na estatística se transforma em uma mudança nas vidas do trabalhador e de quem o cerca. Jane da Silva Leite, de 40 anos, ilustra de forma exemplar essa nova vida após um acidente de trabalho. Em 2013, poucos dias após conseguir emprego numa lavanderia de Campo Grande, o roteiro que se iniciava teve uma interrupção drástica, quando ela ia para a empresa. Jane gravou na memória aquele momento. “Era o meu 3° dia de serviço. Um rapaz em uma camionete entrou na minha frente. Eu estava na preferencial, não deu tempo de parar, eu bati no para-lama do carro. Na hora do acidente, eu já perdi os movimentos, perdi minha perna ali”, lembra. Como estava no trajeto para a lavanderia, a situação configura acidente de trabalho.
Uma nova descoberta
Podia ser só mais um episódio para praguejar contra o destino. Mas não. Para Jane, o acidente abriu novas oportunidades. Ela encontrou no tiro adaptado a superação para a trauma. “Desde o ano passado, eu comecei o esporte e não me vejo sem. Hoje, eu vejo que sou muito mais feliz que antes. Eu consegui me desenvolver com o tiro adaptado”, destaca. Ela e mais de 20 atletas disputam o esporte pela ARPP (Associação de Reabilitação e Paradesporto Pantanal). Ela já conheceu várias cidades do país pelo esporte. No último campeonato, a equipe ficou em 1° lugar no ranking nacional.
Jane é segurada do INSS, e passa por readaptação para voltar ao mercado de trabalho. Ela mal vê a hora de retornar ao serviço. “Eu quero muito voltar a trabalhar, ganhar o meu dinheiro, como antigamente. Sempre trabalhei, desde nova, não vai ser agora que vou parar de vez”. Jane quer, principalmente, manter o esporte que, ironicamente, descobriu após um evento tão trágico em sua vida. “Eu não consigo mais viver sem o tiro adaptado. Quero cada vez mais me aperfeiçoar neste esporte. Hoje estou em 3° lugar no ranking nacional e quero melhorar ainda mais”, afirma.
À procura de um novo ofício
Valdemir da Costa Almeida, de 45 anos, sofreu um acidente em 7 de janeiro deste ano em um condomínio quando prestava serviço de armador de ferragem para uma construtora. Ele caiu de uma altura de três metros e quebrou três ossos do pé esquerdo. Dez meses depois do acidente, Valdemir já passou por duas cirurgias, e está em fase avançada de recuperação, mas entende que não tem condições de voltar ao mesmo serviço. “Para minha área, eu tenho certeza que não vou voltar. É tudo muito complicado, depende de serviço braçal”, resigna-se.
Valdemir atuava como autônomo quando sofreu a queda, mas como pagava a Previdência, está sendo assistido e procurando uma nova ocupação, sem desânimo. “Eu tento não pensar no futuro, penso no agora. Eu sei que vou sarar e me recuperar o mais rápido possível. Estou em fase avançada de recuperação e espero voltar a trabalhar logo”, diz.
O olhar da psicologia
O professor Serginaldo José dos Santos é fisioterapeuta e psicólogo e trabalha com reabilitação há de 30 anos. Na Clínica-Escola da UCDB (Universidade Católica Dom Bosco), ele atende pacientes e familiares de quem sofreu acidente de trabalho por meio do Projeto Cogni-Ação. A experiência do dia a dia mostra que o trauma psicológico é uma das consequências desse tipo de intercorrência na vida do trabalhador.
“Os pacientes podem ter um estresse pós-traumático e, por isso, ter alguns problemas cognitivos, como na memória, cognição, percepção, entre outros. Há áreas que são afetadas depois de lesões, principalmente, quando o trauma foi naquela parte do corpo”, define.
“É preciso acompanhamento psicológico em alguns casos, uma vez que 60% de todos os pacientes de acidentes de trabalho sofre com depressão. A cada três pacientes, dois se deprimem, e um pode ter ideação (pensamento) suicida”, alerta.
Marcas eternas
Em alguns casos, a marca mais dolorida de um acidente de trabalho é o luto. Essa dor invisível é vivida desde o último dia de janeiro de 2012 pela família de Edimar Felisbino da Silva, um dos quatro trabalhadores que morreram vítima de vazamento de gás tóxico em um curtume de Bataguassu.
A viúva, Lucimara de Lima Santos, de 37 anos, fala com emoção sobre a perda do pai de seus filhos. “Não foi nada fácil para minha família receber a notícia da morte do meu marido, a gente não consegue esquecer até hoje. Eu perdi o emprego, na época, porque não tinha condições de ir trabalhar. É uma rotina, ele vinha me buscar, nós pegávamos meu filho, voltávamos para casa. Ele me contava como foi o serviço. Eu fiquei mais de dois anos sem sair direito de dentro de casa e até hoje ainda não consegui superar”, conta.
Da relação de 14 anos, ficaram dois filhos, Gabriel, de 12 anos, e Luana, de 16 anos. Lucimara hoje é dona de casa e vive com o aluguel de duas casas, que os filhos receberem de indenização da empresa.
“Minha filha é quem mais sofre com a morte do Edimar. Ela era muito apegada a ele. Eles conversavam todos os dias. Ele dava muitos conselhos a ela. Ele morreu um dia depois do aniversário dela. Ela sente muita falta dele e de vez em quando eu pego ela chorando até hoje”, disse Lucimara.
Luana mantém as roupas do pai em casa. “As roupas e bonés são a lembrança mais viva que eu tenho dele. Não moramos mais na casa que morávamos naquela época, então hoje guardo o que ele deixou”, explica.
Roteiro dramático
O operador de tratamento de água Wellington Brito Lima, de 23 anos, é um sobrevivente. Ele viu dois colegas morrerem em um acidente também num curtume, em Campo Grande, no dia 30 de agosto deste ano. A vida dele também correu risco: passou 13 dias em coma na Santa Casa. A situação ganha contornos de filme quando ele revela que no dia em que os equipamentos seriam desligados, acordou do coma. De volta à vida, carrega no celular uma foto dos dias no CTI (Centro de Terapia Intensiva).
“A médica disse para a minha esposa que iam desligar os equipamentos naquele dia porque eu não tinha mais salvação. Falaram para minha mãe não ter esperança porque eu não viveria mais. E se sobrevivesse, teria problemas, ficaria cego ou até paralítico”, relata. “Duas horas antes de pedir permissão para minha esposa para desligarem, eu acordei. A médica que me atendeu disse que não acreditava que eu não teria sequelas. Ela disse que eu jamais eu teria essa vida normal que eu tenho hoje”.
Wellington ainda não conseguiu voltar ao serviço e sente dificuldades para respirar. Além do aspecto físico, há ainda o outro, talvez até mais complexo. Ele sofre com a morte dos amigos. “Eu ainda não consegui voltar a trabalhar direito. Eu não tenho condições. Eu tento ir trabalhar, mas meche com meu psicológico e físico. Minhas pernas tremiam, dava falta do ar. Eu chegava perto do tanque, lembrava do acidente, lembrava dos meus colegas, chorava”, conta.
Readaptação profissional
Nem sempre o retorno é possível. “Depois do acidente, nós olhamos as limitações e as capacidades. O objetivo é readaptar a pessoa para algo que ela tenha potencial. Mas, não podemos esquecer que o segurado é o protagonista. Temos que aceitar o interesse dele e a motivação dele”, afirma a analista do seguro social e terapeuta ocupacional Lilian Varandas, que atua no núcleo do INSS dedicado à readaptação de trabalhadores.
O programa da Previdência Social tem orçamento próprio para concessão de cursos e aquisição de materiais, próteses e instrumentos de trabalho. “Temos exemplos de sucesso, como um segurado que recebeu uma máquina de assar frango e hoje está trabalhando e ganhando seu dinheiro ali. Nós pagamos aos segurados cursos e qualificações que o mercado de trabalho está absorvendo. Para o próximo ano, nós pedimos 32 cursos, como de almoxarifado, tornearia mecânica, entre outros”, destaca.
Reparação
Para o trabalhador assalariado, contratado por uma empresa, acidentar-se no trabalho também abre a possibilidade de, por meio de indenização, reparar os danos físicos e mentais. Para o juiz Ademar de Souza Freitas do TRT (Tribunal Regional do Trabalho) da 24ª Região, empregados e empregadores precisam ter consciência do serviço e da relação de trabalho. “A culpa nos acidentes de trabalho acontece por três motivos: negligência, imprudência ou imperícia. A negligência é quando a empresa deixa de fornecer equipamentos, como no caso do EPIs (Equipamento de Proteção Individual). Imprudência, quando por exemplo, falam para um empregado subir em determinado local. A imperícia é a falta de habilidade específica para aquele determinado serviço”, explica.
O juiz assinala que toda empresa tem que ter uma CIPA (Comissão Interna de Proteção de Acidentes), e respeitar a Portaria n 3.214 do MTB (Ministério do Trabalho), de 8 de junho de 1978, e principalmente a NR 12 (Norma Regulamentadora), que regulamenta normas de segurança para as instalações e áreas do trabalho, como para a manutenção e operação de máquinas e equipamentos.
Quando o empregador descumpre sua parte e, comprovadamente, é responsável por um acidente, a indenização é um caminho possível. Em 2014, foram 3.268 ações abertas no TRT/MS, e de janeiro a setembro deste ano o registro foi de 2.730 ações. Campo Grande, Dourados e Três Lagoas são as cidades com maior número de processos relacionados a acidentes de trabalho no Estado.
Um dos casos mais conhecidos é o acidente no curtume de Bataguassu em 2012. O juiz Antônio Arraes Branco Avelino, da Vara do Trabalho de Bataguassu, que julgou a ação dos familiares que entraram com processo, afirmou que a empresa ainda está pagando o que foi determinado ao município. No total, o valor chegou a R$ 5 milhões, divididos em R$ 1 milhão ao ano. “Esse valor está sendo repassado a comunidade de Bataguassu para construção de quadra de tênis, reforma da Santa Casa, compra de equipamentos a Polícia Ambiental, barcos e lanchas para os bombeiros, entre outros”.
As famílias das quatro vítimas, entre elas a de Lucimara e dois filhos, também receberam indenização. É um alento, mas como diz a adolescente que ficou sem o pai tão jovem, a dor e a saudade não se pagam. “Dinheiro nenhum vai recompensar a perda dele”.
Não é à toa que dois curtumes são citados nesta reportagem. As indústrias que representam uma das principais forças motores da economia de Mato Grosso do Sul são as que mais têm episódios em que a insegurança na rotina profissional afeta, de forma incontestável, a vida dos trabalhadores, como você poderá conferir no quadro que encerra esse texto.
Arte: Jhully Espíndola
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