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Cotidiano

Soroterapia e até ‘tratamento para autismo’ via retal viram armadilhas perigosas em Campo Grande

Também chamada de ‘soro da beleza’, a soroterapia para fins estéticos esconde sérios riscos à saúde
Lethycia Anjos -
Soroterapia (Reprodução de imagem produzida pelo Gemini)

Apresentada como solução para problemas que vão do cansaço à obesidade, a soroterapia — aplicação direta de vitaminas, minerais e aminoácidos na corrente sanguínea — tem se popularizado em clínicas de estética e consultórios médicos do Brasil. Longe de ser inofensiva, a prática que pode provocar hipervitaminose e trazer sérios riscos à saúde, têm se popularizado em .

O tema ganhou repercussão nacional após uma empresária da Bahia ficar 28 dias em coma e sofrer falência múltipla dos órgãos depois de sessões de soroterapia. O caso ficou conhecido como “Xixi de Coca-Cola”.

“Estava intoxicada com a soroterapia… A cardiologista disse que o único órgão que ainda funcionava era meu coração”, relatou em entrevista ao O Globo.

Conforme familiares, o problema começou quando a urina da empresária passou de um tom amarelo para a cor semelhante à da bebida, acompanhada de sangramento.

Além disso, há também a promessa da ozonioterapia via retal para ‘tratamento do autistmo’. Ambas estão na mira do CRM-MS (Conselho Regional de Medicina de ).

Nova roupagem ao ‘soro da beleza’

A soroterapia não é uma novidade. Trata-se do já conhecido ‘soro da beleza’, que agora ganhou apenas uma nova roupagem, sendo vendido como soroterapia em uma tentativa de transmitir mais credibilidade.

Enquanto isso, a indústria de suplementos vitamínicos movimenta mais de R$ 4 bilhões por ano. Desde o ano passado, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) registrou 240 notificações de problemas relacionados a esses produtos, sendo que 28% envolveram efeitos graves. Além disso, mais de 62 mil anúncios irregulares foram retirados da internet.

Protocolos milagrosos ganham as redes sociais

Em Campo Grande, uma influenciadora digital têm usado as redes sociais para denunciar médicos que prescrevem o método como solução milagrosa. Em um vídeo que ultrapassa 200 mil visualizações, ela critica a ausência de exames laboratoriais e ironiza o marketing envolvido.

“Chegando à clínica, você se depara com bioimpedância. Não há nenhuma avaliação de sangue e já recebe a oferta de canetas milagrosas, um verdadeiro item de luxo digno de reis e rainhas do marketing . Em alguns casos, até presentinho dão”, relata a influenciadora.

(Ilustrativa)
Medicamentos (Ilustrativa)

Nos comentários do vídeo, um paciente contou ter pago R$ 30 mil em apenas três ampolas de tirzepatida, sem passar por nenhum exame, após uma reunião online de R$ 700. Já uma psicóloga relatou que uma paciente sofreu surto psicótico ao seguir um desses protocolos.

“Venderam para minha esposa um tal ‘chip da beleza’ com promessas de grandes melhoras em vários aspectos da saúde. Para nossa surpresa a saúde dela ficou comprometida, com uma série de efeitos colaterais péssimos, o que nos obrigou a consultar outros especialistas, para reverter o mal causado. O transtorno foi tão grande que ela sofreu abalo psicológico. Em pesquisa, descobrimos que o implante aplicado é proibido pela Anvisa para fins estéticos, justamente porque o riscos são enormes”, diz outro relato.

Marketing agressivo e relatos ‘inspiradores’

Um dos médicos citados acumula mais de 100 mil seguidores e ostenta uma vida de luxo nas redes sociais, com fotos ao lado de famosos e depoimentos, em sua maioria de mulheres, sobre transformações corporais atribuídas ao “protocolo” de emagrecimento que inclui soroterapia e canetas emagrecedoras.

Entre os relatos, há pacientes que afirmam ter perdido mais de 60 quilos após sessões semanais de vitaminas, soros e hormônios. O tratamento, entretanto, sempre vem acompanhado de recomendações tradicionais de dieta equilibrada e atividade física.

Outro ponto que chama atenção é o marketing agressivo que inclui parcerias com influenciadores locais e até subcelebridades com mais de 14 milhões de seguidores, que reforçam a narrativa com entrevistas recheadas de termos técnicos para enaltecer os supostos benefícios do protocolo ofertado.

Ozonioterapia retal para autismo

‘Três dias de detox e você terá resultados incríveis’, promete uma médica de Campo Grande. Em entrevista ao Jornal Midiamax, a paciente, que pediu anonimato, detalhou o protocolo de “desintoxicação intestinal” oferecido pela profissional que, assim como o médico citado pela influencer, não possui especialidade.

Ela conta que procurou a médica em busca de tirzepatida, o Mounjaro, mas se deparou com preços elevados e a recomendação de terapias sem comprovação científica, como a ozonoterapia, medicina alternativa que alega aumentar a quantidade de oxigênio no corpo introduzindo ozônio. Na clínica em questão, a ozonoterapia era também recomendada para o ‘tratamento de autismo’.

Na parede da clínica, uma ‘tabela’ promete tratamento para autismo e TEA a partir dos 3 meses de idade (Reprodução)

Ozonioterapia: quem pode recorrer ao polêmico tratamento sancionado por Lula?

O tratamento começava com três dias sem proteína animal e sem cafeína. No terceiro dia, a paciente deveria apresentar diarreia, induzida pelo chamado “pack laranja”, composto por sachês de magnésio diluídos em água.

“No terceiro dia, vai dar uma diarreia às 15 horas, porque no lugar de tomar o lanche da tarde, você vai tomar o pack laranja. São dois sachêzinhos de magnésio, você vai preparar em 100 ml de água e tomar só no terceiro dia”, cita a médica em um trecho da consulta gravado pela paciente.

Tudo aliado a canetas emagrecedoras

Imagem ilustrativa (Freepik)

A médica orientava ainda o consumo diário de água com limão, glutamina para “equilibrar o intestino”, frutas de baixa caloria, sucos detox e refeições com legumes e folhas refogadas.

Além disso, indicava o uso de comprimidos manipulados, sachês de e até restrições alimentares específicas, como evitar manga, uva e caqui, consideradas por ela como ‘frutas calóricas’.

“No almoço bastantes legumes, frutas e folhas, de preferência refogados, tá? Aí o pack azul de novo e o ‘sachêzinho’, durante dois dias e meio. Assim, passado esse período você volta a fazer a sua dieta normal para poder ajudar no emagrecimento”, diz.

A conversa continua e a médica explica que, após esse período de desintoxicação, a dieta deveria ser substituída por um plano Low Carb (sem carboidratos) ou Cetogênico, em paralelo ao uso de medicamentos injetáveis para emagrecimento, como a própria tirzepatida (Mounjaro) e o semaglutida (Ozempic/Wegovy).

No entanto, há inumeros riscos ao associar soroterapia com tirzepatida ou semaglutida. Segundo a médica endocrinologista Lara Rubio, essas medicações alteram o trânsito gastrointestinal e o perfil metabólico.

“A adição indiscriminada de nutrientes pode aumentar o risco de náuseas, vômitos ou sobrecarga hepática, além de interferir no monitoramento clínico do paciente, dificultando a avaliação de eficácia e segurança da semaglutida e da tirzepatida”, explica.

Com alta procura em Campo Grande, uso de canetas emagrecedoras pode trazer graves riscos à saúde

O custo inicial do tratamento? R$ 5 mil

Após o período de detox a paciente iniciaria a soroterapia com sessões de aplicação de vitaminas e hormônios. Além de um “sorinho para hepato proteção (fígado)” e o uso do aparelho chamado ‘BEMER’, que utiliza ondas eletromagnéticas para “melhorar a circulação sanguínea e desintoxicar o organismo”. Tudo isso, pela ‘bagatela’ inicial de R$ 5 mil.

“O que mais me chocou foi a questão da ozonoterapia. Isso aí é charlatanismo dos grandes e ela aparentemente faz em pessoas com autismo. É uma grande violência”, denuncia.

No Brasil, o CFM (Conselho Federal de Medicina) liberou a prática da ozonoterapia para seis tratamentos. De forma tópica, a técnica está autorizada para o tratamento de feridas infecciosas agudas e úlceras venosas crônicas, arteriais isquêmicas e decorrentes do pé diabético. Já de modo injetável, como terapia adjuvante, foi aprovada para osteoartrite de joelho e dor lombar por hérnia de disco.

Uso sem comprovação científica

Atualmente, não há evidência científica robusta que comprove que a soroterapia promova emagrecimento de forma significativa ou sustentável, conforme explica a endocrinologista Lara Rubio.

“A melhora na disposição relatada por alguns pacientes costuma estar mais ligada ao ‘efeito placebo’ ou à correção de deficiências específicas, quando presentes. Em indivíduos saudáveis, a absorção oral é geralmente suficiente”.

Entre os riscos associados à administração indiscriminada de nutrientes intravenosos está a hipervitaminose, que consiste no excesso de vitaminas, principalmente lipossolúveis como A, D, E e K, mas também de vitaminas hidrossolúveis como B6 e B12. Outros riscos incluem:

  • Sobrecarga renal ou hepática;
  • Reações alérgicas ou anafiláticas;
  • Flebites (inflamação nas veias);
  • Desequilíbrios eletrolíticos – desequilíbrios do cálcio, magnésio, sódio;
  • Interações medicamentosas.

Procurado, o CRM-MS (Conselho Regional de Medicina de Mato Grosso do Sul) esclareceu que a administração de soroterapia possui indicações médicas válidas, desde que siga protocolos cientificamente comprovados. No entanto, o uso do metodo com alegações como “anti-idade”, “melhora de performance”, “desinflamação” ou “detox” não possui respaldo científico e pode não apenas ser ineficaz, como também oferecer riscos à saúde.

“Existem normas específicas para garantir a administração segura de medicamentos. Isso inclui regras sobre o funcionamento de clínicas, estabelecidas pelo CRM e pela Vigilância Sanitária”, alerta o conselho.

Além disso, o CRM-MS orienta que é fundamental avaliar cuidadosamente se as indicações de ‘suplementações’ e ‘soroterapias’ têm base científica.

Para evitar cair em golpes, a recomendação é ter cautela diante de alegações extraordinárias ou de terapias apresentadas como milagrosas, “geralmente, o que parece bom demais para ser verdade não é confiável”.

Médico diz que hipervitaminose por soroterapia ‘não tem respaldo científico’

Em nota enviada à reportagem, a clínica do médico influencer esclarece que “todos os protocolos utilizados no atendimento de seus pacientes são fundamentados em critérios médicos individualizados, respaldados por avaliação clínica completa, exames laboratoriais e acompanhamento contínuo. Nenhum procedimento é indicado sem diagnóstico preciso e evidência da real necessidade do paciente”.

E prossegue. “No contexto da obesidade, especialmente em pacientes submetidos a dietas extremamente
restritivas, o desafio é ainda maior. Trata-se de um grupo de indivíduos que, além de apresentarem elevado grau de inflamação sistêmica, estão expostos ao risco de deficiências nutricionais decorrentes da própria restrição alimentar. Ignorar esse cenário seria uma negligência médica. A reposição intravenosa de vitaminas e antioxidantes, portanto, não é apenas um adjuvante, mas uma conduta preventiva diante das alterações metabólicas previsíveis em pacientes superobesos e obesos graves”.

O médico alega, ainda, que é “incorreto e alarmista afirmar que protocolos de soroterapia representem uma ameaça pela suposta indução de hipervitaminose. Essa narrativa não tem respaldo científico. As complicações relatadas são raríssimas e restritas a situações de uso indiscriminado, sem acompanhamento profissional. Em ambiente médico controlado, a soroterapia se mostra segura, eficaz e respaldada pela literatura científica internacional”.

‘Desconfie de especialidades inexistentes’

Também é importante desconfiar de métodos exclusivos e de profissionais que se apresentam como especialistas sem comprovação, aponta o Conselho de Medicina.

Para verificar a especialidade de um médico, basta acessar https://crmms.org.br/busca-medicos e conferir se ele possui as qualificações que alega.

Atenção especial deve ser dada a especialidades inexistentes, como “medicina integrativa”, “medicina regenerativa” ou “medicina ortomolecular”.

“Há normas que coíbem promessas de resultados e sensacionalismo, e o CRM-MS está sempre disponível para esclarecer dúvidas ou receber denúncias de práticas irregulares”.

Apesar disso, o Conselho informa que a legislação garante o sigilo dos procedimentos éticos, o que impede o fornecimento de detalhes sobre denúncias em andamento.

Perigo mora nos excessos

As vitaminas e os minerais são essenciais para o bom funcionamento do corpo e, em geral, são obtidos por meio da alimentação. A falta deles pode gerar sintomas como cansaço constante, fraqueza muscular, dificuldade de concentração, anemia, sangramentos, perda óssea e até problemas de visão.

Nesses casos, quando os exames mostram níveis baixos devido a doenças ou dificuldade de absorção, médicos e nutricionistas podem recomendar a suplementação. Mas é importante lembrar que, se por um lado a falta faz mal, o excesso também pode trazer sérios riscos à saúde, conforme alerta o Ministério da Saúde:

  • Vitamina D: provoca reabsorção óssea e aumento da absorção de cálcio, levando à hipercalcemia. Casos graves exigem uso de corticoides ou bifosfonatos.
  • Vitamina C: doses acima de 2g por dia causam náuseas e diarreia e podem gerar sobrecarga de ferro em pessoas com talassemia ou hemocromatose.
  • Vitamina E: pode causar sangramentos em doses superiores a 1000 mg/dia, além de fadiga, fraqueza muscular e distúrbios gastrointestinais.

Além disso, a endocrinologista orienta a sempre passar por uma avaliação médica criteriosa antes de qualquer procedimento, o que inclui dosagem de vitaminas, função hepática e renal, eletrólitos (sódio, potássio, cálcio, magnésio), histórico de alergias e avaliar se o paciente tem comorbidades (diabetes, hipertensão, problemas hepáticos ou renais, doença coronariana).

“A soroterapia não deve ser banalizada ou vendida como solução estética rápida. Deve ser individualizada, baseada em evidências de segurança e eficácia e sempre sob supervisão do médico”, conclui Lara Rubio.

Soroterapia no radar do CRM

No ano passado, o CRM-MS divulgou um alerta à população sobre o uso crescente desse procedimento em tratamentos estéticos. De acordo com o o presidente da entidade, Carlos Idelmar Barbosa, no caso de pessoas saudáveis, a prática pode expor os pacientes a sérios riscos, como infecções e reações alérgicas.

“A soroterapia, que consiste na infusão de nutrientes e vitaminas via intravenosa, deve ser restrita a casos com deficiências comprovadas. Por isso, aplicar esse tratamento em pessoas sem indicação clínica é irresponsável e pode causar danos à saúde”, alertou Barbosa.

O Conselho Federal de Medicina também se posiciona contra a prática indiscriminada e a venda de protocolos milagrosos. A Resolução CFM nº 1.711/2003 proíbe a divulgação de técnicas sem comprovação científica. Além disso, orienta a fiscalização de clínicas que oferecem esses procedimentos estéticos sem a devida regulamentação. Mas na prática, a soroterapia segue em alta, gerando cada dia mais adeptos.

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(Revisão: Bianca Iglesias)

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