No ano em que Campo Grande completará 126 anos de fundação, a capital de Mato Grosso do Sul já ostenta vasto acervo de monumentos e bustos históricos em homenagem a nomes de relevância para criação da cidade.
A coleção é motivo de orgulho, contudo, dentre centenas, somente quatro obras de prestígio eternizam a figura de mulheres em posição de destaque. Esses marcos representativos garantem que a história viva para o futuro, revelem a tradição, identidade e cultura. Com tão poucos monumentos relacionados a mulheres, caberia a reflexão se o planejamento cultural e histórico ignora os feitos delas?
Na última reportagem especial do Jornal Midiamax pelo Dia Internacional da Mulher, celebrado neste sábado (8), um olhar sobre monumentos com representação exclusiva da mulher. E também sobre a cidade que, apesar de ter mais profissionais de arquitetura do gênero feminino que masculino, segue sendo pensada por e para homens.
Na lista, não estão incluídos murais efêmeros, como as pinturas em prédios que representam Tia Eva e Helena Meireles. Também foram retirados da lista a representação de mulheres, em decisão editorial, a estátua do filho do fundador da cidade, Antônio Luiz, acompanhado de sua esposa, Anna Luiza, e da filha Carlinda, localizada no Museu José Antônio Pereira. O critério utilizado para a retirada é a representação patriarcal do conjunto arquitetônico, e não do protagonismo feminino.
Da mesma forma, não integra a lista a estátua da deusa Themis, localizada no Fórum de Campo Grande. Embora uma legítima representação etérea da Justiça por meio de uma figura feminina, a obra não representa uma mulher real, mas uma figura mitológica. Confira, a seguir, a lista.
Índia Terena
Construída pelo plástico Anor Pereira Mendes, o monumento da Índia Terena tem três metros de altura. A obra foi construída em 2012 no Mercadão Municipal, na Rua Sete de Setembro, Centro. A escultura simboliza a força da mulher indígena de Mato Grosso do Sul, representando o trabalho da cultura e a produção artesanal. Portanto, o marco é a característica do projeto, semelhante às bonecas de cerâmica indígena.

Tia Eva
O busto em homenagem à Eva Maria de Jesus, popularmente conhecida como Tia Eva, resgata a imagem da mulher, matriarca, escravizada, alforriada e fundadora da Comunidade Remanescente de Quilombo Eva Maria de Jesus, no bairro Mata do Jacinto.
O símbolo da comunidade foi elaborado pela artista plástica Maria de Oliveira e inaugurado em 18 de maio de 2003. Sendo assim, o busto da matriarca foi esculpido com base na imagem da bisneta de tia Eva, Nadir Antônia da Silva. Conforme os mais velhos, a fisionomia de Nadir era semelhante.

Monumento Praça dos Imigrantes
A Praça dos Imigrantes é palco da história de Campo Grande desde 1888, quando sediava casamentos, desfiles, e servia de estacionamento para carros de boi. Em 1912, a Praça recebeu a denominação de Costa Marque, em homenagem ao Governador do Estado que, pela primeira vez, visitava o povoado.
A Secult (Secretaria Executiva da Cultura) informou que o artista Anor Mendes fez o monumento, proposto pela associação dos artesãos da Praça dos Imigrantes e financiado pelo FIC (Fundo de Investimentos Culturais). Nele, uma mulher e uma menina representam a forte presença feminina entre artesãos.

Monumento Conceição dos Bugres
Este marco faz homenagem à artista Conceição Freitas da Silva, mais conhecida como Conceição dos Bugres. Importante artista de MS, especialmente pelas esculturas de ‘bugrinhos’ de madeira e cera de abelha, Conceição participou de bienais, exposições do Rio de Janeiro e São Paulo, reconhecida internacionalmente.
No livro “Marcos e Monumentos Históricos de Campo Grande”, a dedicação afirma que: “Sua arte, iniciada em um pedaço de mandioca, passou para pedaços de madeira, originando bonecos nos mais diversos tamanhos que, embora manifestem muitas semelhanças, revelam também muitas particularidades e expressões diferenciadas”.
Dessa forma, a escultura de tributo à Conceição dos Bugres foi criada por José Nantes. A obra está localizada perto da entrada principal do Centro de Convenções Rubens Gil de Camillo. A obra do bugre é em arenito e pesa duas toneladas. A arte foi inaugurada juntamente com o prédio do Centro de Convenções, e o arquiteto Rubens Gil de Camilo, autor do projeto, definiu seu posicionamento.

Representação da mulher é fraca e expõe cenário conservador
Entre o acervo de obras da cidade, poucas são representações da mulher. Mas não somente monumentos. O planejamento urbano de Campo Grande também traz o cenário conservador, elitista e clientelista. Neila Janes Viana Vieira, arquiteta e urbanista, especialista em Gestão Regional e Urbana e Mestre em Meio Ambiente e Desenvolvimento Regional, reforça esse ponto.
Para a especialista, há frequência em nomeação de escolas antigas, por exemplo, para professoras, entretanto, nomes de ruas, monumentos, estátuas e bustos são predominantemente de homens, tanto na figura como em assinaturas das obras.
Neila conclui em uma pesquisa que as mulheres são as que mais sofrem com o modo como as cidades são planejadas. Sendo assim, mulheres têm uma rotina mais complexa e encarregada de atividades atribuídas. Por exemplo: mães vão trabalhar e precisam buscar os filhos na escola, ir ao mercado e, por fim, retornar para casa.
“Cidades sempre foram planejadas ou desenhadas por e para homens. Homens brancos, héteros, de classe média alta, pessoas que podem transitar pela cidade em qualquer horário, em qualquer espaço sem nenhum tipo de limitação ou constrangimento. Ou seja, podem usufruir da cidade em sua plenitude, com todo conforto e bem-estar. As cidades são inóspitas para as mulheres porque não são pensadas para atender as demandas feminina, que são maiores e mais complexas que as masculinas”.
Por exemplo, os itinerários e horários dos ônibus não favorecem o deslocamento das mulheres nos percursos mais curtos e mais diversos, além de desconforto, ruas mal iluminadas e inseguras.

Valorização delas
Neila ressalta que há uma grande discrepância na valorização do trabalho executado por homens e por mulheres. Ainda está no imaginário comum a visão da sociedade de que uma obra e construção são coisas de homens e decoração é “coisa de mulher”.
Mulheres predominam na arquitetura e urbanismo, como mostram os dados do CAU-MS (Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Mato Grosso do Sul). O Sicau (Sistema de Informação e Comunicação do Conselho de Arquitetura e Urbanismo) indica que, atualmente, o total de profissionais cadastrados ativos no Estado é de 4.093, sendo 2.580 mulheres e 1.513 homens. Ou seja, mulheres são a maioria na categoria.
Além disso, muitas têm qualificações com anos de estudo, especializações e mestrado. Entretanto, a categoria enfrenta dificuldade de reconhecimento, assédios, desconfianças e salários baixos.
“A Coletiva Arquitetas inVisíveis, criada em 2014, é uma coletiva feminista que busca a equidade de gênero no âmbito da arquitetura e urbanismo e áreas relacionadas, tem trabalhado efetivamente para a inclusão e visibilidade das mulheres no campo da arquitetura e urbanismo, por meio de pesquisas, debates, publicações, promoções de seminários e outros”.

Evoluções a passos lentos
Para a professora e arquiteta e urbanista Maria Lúcia Torrecilha, a categoria está assumindo posições cada dia mais presentes no mercado, porém, com dificuldades. Entretanto, esquecem a visibilidade da mulher, principalmente em órgãos públicos, em grandes projetos de planejamentos urbanísticos de Campo Grande.
“Hoje, poucos identificam nos projetos de urbanização de favelas, de mobilidade urbana, da criação de parques e praças, de legislações urbanísticas e ambientais, planos diretores, de projetos arquitetônicos de habitações, de escolas, de unidades de saúde e outros comunitários desenvolvidos por profissionais mulheres com dupla ou tripla jornada de vida e trabalho que são ‘invisíveis’ aos olhos da nossa sociedade”, reforça.
A carreira de Torrecilha é grandiosa, com especialização e doutorado em políticas urbanas. Ela ressalta que as autorias das obras são relevantes para uma atuação democrática no desenvolvimento dos trabalhos.
“Não quero ressaltar somente os aspectos autorais do ponto de vista narcisístico, mas que eles sirvam de parâmetro para podermos ter uma sociedade mais humana representada em nossos projetos. Hoje, atuando na docência, tento mostrar aos alunos como esta abordagem poderá contribuir para termos soluções de qualidade e mais justas ao nosso viver”, conclui.
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