Pular para o conteúdo
Cotidiano

Em MS, 1 em cada 3 mortos parte sem que familiares saibam a real causa da morte

Em 2024, 5.305 mortes foram classificadas como causa inespecífica ou incompleta no Estado
Lethycia Anjos -
Cemitério
Fiéis durante o Dia de Finados – Imagem ilustrativa. (Henrique Arakaki, Midiamax)

Em apenas um ano, mais de 5,3 mil registros de morte ficaram sem causa claramente definida em Mato Grosso do Sul. Na prática, isso significa que milhares de famílias não tiveram uma resposta objetiva sobre o motivo que levou seu ente querido à morte — fator que pesa não apenas no processo de luto, mas também no planejamento da saúde pública.

Segundo o Painel de Monitoramento da Mortalidade, do Ministério da Saúde, o Estado contabilizou 18.790 óbitos em 2024. Desse total, 5.305 (28,2%) estão classificados como ‘causa básica inespecífica ou incompleta’ — os chamados garbage codes (códigos lixo). Ou seja, quase uma em cada três mortes em MS não teve a causa básica claramente identificada.

Cemitério em Campo Grande. (Arquivo,Jornal Midiamax)

Impacto na saúde pública

O painel detalha em quais capítulos do CID-10 (Classificação Internacional de Doenças) essas mortes foram registradas. Entram nessa lista sintomas maldefinidos e doenças dos aparelhos circulatório ou respiratório, mas de forma incompleta.

Na aba de doenças infecciosas e parasitárias, por exemplo, constam 203 mortes distribuídas entre categorias como neoplasias (tumores), doenças endócrinas e transtornos mentais — todas sem especificação clara. O grupo mais expressivo é o de ‘sintomas e sinais maldefinidos’, com 803 registros em 2024.

O pico de mortes sem causa ocorreu em maio, com 530 registros, enquanto em dezembro houve queda brusca, para 286. Esse movimento pode refletir tanto falhas de notificação quanto sobrecarga dos serviços de saúde em determinados períodos. Sem a definição da causa básica, fica mais difícil dimensionar quantas mortes ocorreram, de fato, por câncer, doenças crônicas, infecções ou acidentes.

Para a SES (Secretaria de Estado de Saúde), esses números representam um desafio de âmbito nacional, diretamente relacionado à qualidade do preenchimento da DO (Declaração de Óbito) — documento de caráter ético-legal, de responsabilidade exclusiva dos médicos, conforme normatização do CFM (Conselho Federal de Medicina). “A correta identificação da causa básica do óbito é essencial para garantir informações confiáveis”, afirma a secretaria.

A pasta explica que, na prática, causas maldefinidas comprometem a qualidade das estatísticas vitais e dificultam a formulação de políticas públicas de saúde.

“Entre os principais fatores que contribuem para esse cenário, estão a ausência de informações clínicas detalhadas, a falta de exames complementares ou de necropsia em determinados casos, e falhas no preenchimento adequado da DO”, destaca a SES.

Pandemia de Covid-19
Pandemia de covid-19. (Altemar Alcântara, Prefeitura de Manaus)

Efeitos durante a pandemia

Não é a primeira vez que o problema aparece em destaque. Em 2021, ano marcado pela pandemia de covid-19, houve aumento expressivo no uso de classificações inespecíficas. Apenas em Mato Grosso do Sul, dos 25.049 óbitos registrados, 11.824 receberam classificações incompletas.

“Esse aumento expressivo de óbitos maldefinidos reflete o grande volume de mortes em curto período, aliado à sobrecarga dos serviços e à limitação para diagnósticos conclusivos”, destaca a nota enviada pela SES.

No panorama nacional, foram 898.156 mortes registradas como garbage codes em um universo de 1.832.649 óbitos.

O peso do luto sem respostas

Quando se perde alguém querido, a pergunta que fica é quase sempre a mesma: “Por quê?”. Mesmo que a aceitação seja difícil, conhecer a causa da morte pode trazer um mínimo de conforto em meio à dor. Mas, quando isso não acontece, a ausência de respostas abre uma lacuna que muitas vezes nunca se fecha.

Teólogo, filósofo e psicólogo, Edilson dos Reis estuda a morte sob diferentes perspectivas e lembra que a perda em si já é suficiente para causar sofrimento profundo.

“A morte, por si só, gera grande impacto quando se trata de um familiar. É natural termos dificuldade em aceitar e acreditar que realmente aconteceu”, explica o psicólogo, que coordena o Núcleo de Estudo, Pesquisa, Assistência, Extensão e Apoio ao Luto do Humap-UFMS.

Cemitério
Cemitério. (Henrique Arakaki, Midiamax)

A incerteza sobre a causa da morte, ou mesmo sobre o que poderia ter sido feito para evitá-la, intensifica esse sofrimento. “É comum familiares se sentirem culpados ou questionarem se poderiam ter feito algo diferente. Isso afeta muito o processo do luto e aumenta a dor de familiares e amigos próximos.”

A importância do acolhimento

Edilson explica que a certeza é uma condição psicológica que permite atravessar o luto de forma mais leve. “Saber a causa da morte significa estar livre de dúvidas. Quando existe incerteza, o luto dói mais, porque faltam elementos indispensáveis para compreender e aceitar a perda.”

UFMS oferece grupo de apoio para pessoas em luto. (Arquivo)

O acolhimento clínico, segundo ele, pode amenizar essa dor. O acompanhamento psicológico oferece espaço seguro para expressar sentimentos, legitimar emoções e respeitar o tempo de cada pessoa.

Contudo, a ausência de respostas pode prolongar o sofrimento e desencadear transtornos como ansiedade e depressão.

“Surge um sentimento de injustiça, rejeição e abandono, já que as perguntas não trazem respostas definitivas. Isso impede o fechamento do ciclo e prolonga o sofrimento, aumentando a angústia, a ansiedade e a depressão. Infelizmente, pode prejudicar a saúde mental, interferir na convivência familiar e até impedir a pessoa de retomar a rotina.”

Da investigação ao registro oficial

Até que sejam classificadas como “códigos-lixo”, as ocorrências de óbitos passam por um processo de apuração que envolve tanto as autoridades de saúde quanto órgãos de investigação.

Segundo a Polícia Civil, a definição das causas de morte, que posteriormente entram no sistema do Ministério da Saúde, depende do avanço das investigações. Isso ocorre nos casos em que, inicialmente, não é possível apontar se o óbito decorreu de causa natural ou violenta. Ao final do procedimento, o laudo pericial apresenta a qualificação definitiva da causa, que então é registrada nos índices estaduais e nacionais.

Questionada sobre os principais desafios enfrentados nessas situações, a PCMS pontua que não se trata exatamente de obstáculos, mas sim de uma apuração técnica que busca integrar o trabalho policial com os laudos emitidos pela perícia.

“Estamos aprimorando nosso processo de investigação, tornando cada vez mais especializado e técnico, o que contribui para uma maior precisão dos registros de óbitos.”

Apesar disso, a instituição ressalta que falhas ou atrasos em inquéritos policiais não impactam no aumento de registros classificados como “códigos-lixo”. A instituição esclarece ainda que casos de óbitos com causa inconclusiva não são registrados no âmbito da Polícia Civil em MS.

O que são os garbage codes

Os chamados garbage codes, ou códigos-lixo, são registros usados em declarações de óbito quando a causa não está definida de forma precisa.

Eles representam diagnósticos genéricos ou pouco úteis do ponto de vista técnico, que não permitem identificar a real origem da morte. Diferentemente de termos específicos como “infarto agudo do miocárdio” ou “neoplasia de mama”, esses registros não oferecem base sólida para orientar políticas públicas ou ações preventivas.

Já a causa básica corresponde à doença que iniciou a cadeia de eventos mórbidos levando ao óbito, ou às circunstâncias do acidente ou violência que provocaram a morte.

Impacto dos códigos-lixo nas estatísticas de mortalidade no Brasil

Santa Casa. (Divulgação, Santa Casa)

Um estudo da médica Elisabeth França, da Faculdade de Medicina da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), analisou os efeitos dos chamados códigos “garbage” nas estatísticas de mortalidade do país.

No Brasil, todas as mortes são registradas por meio da DO (Declaração de Óbito), documento padronizado que alimenta o SIM (Sistema de Informações sobre Mortalidade). Criado em 1975 pelo Ministério da Saúde, o SIM possui cobertura quase universal, captando mais de 1,3 milhão de óbitos por ano.

Desde 1996, as causas de morte no Brasil são codificadas segundo a CID-10 (Classificação Internacional de Doenças, 10ª revisão), sistema que organiza os óbitos em categorias específicas.

Embora nenhuma classificação única consiga atender a todas as finalidades, é fundamental ter uma base comum que permita a compilação, a recuperação e a tabulação de dados para uso estatístico geral.

Histórico da padronização de registros de óbitos no Brasil
  • 1950: adotado o “modelo internacional do atestado” na 6ª revisão da CID, aplicável às causas de óbito, sem padronizar outras seções.
  • 1976: implementação de um modelo único de Declaração de Óbito em todo o país.
  • 2017 – Lei 13.484, Art. 77: estabeleceu que nenhum sepultamento pode ocorrer sem certidão emitida pelo cartório do local do falecimento ou do domicílio do falecido, baseada em atestado médico ou, na ausência deste, por duas testemunhas qualificadas.

As declarações de óbito são divididas em três partes: causas imediatas ou finais, causas intermediárias e a causa básica, sendo a doença ou circunstância que iniciou a sequência de eventos levando diretamente à morte.

Os códigos-lixo incluem:
  • Causas maldefinidas: por exemplo, algumas doenças do capítulo 18 da CID, exceto morte súbita infantil (R95).
  • Causas impossíveis como causa básica: como gota ou tracoma.
  • Causas intermediárias ou terminais: por exemplo, sepse, pneumonia ou insuficiência respiratória, que podem ser consequência de outra doença como AVC, demência ou covid-19.
  • Causas pouco especificadas: como neoplasias cujo tipo primário não está identificado.

A adoção de uma classificação padronizada é essencial para a compilação, recuperação e tabulação de dados de mortalidade, mas os códigoslixo dificultam a obtenção de informações precisas. Segundo Elisabeth França, apesar de existirem limitações, uma base de classificação comum é necessária para que os dados possam ser utilizados de forma confiável em políticas de saúde pública.

O que o Estado tem feito para reduzir as mortes sem definição?

Com o objetivo de enfrentar esse problema, a SES tem promovido capacitações periódicas para médicos e equipes municipais, reforçando a importância técnica e ética do correto preenchimento da Declaração de Óbito. Além de fortalecer a rede de codificação e investir na implantação dos SVOs (Serviços de Verificação de Óbitos) em Campo Grande e Dourados.

“Essas unidades terão papel fundamental na realização de necropsias em casos de mortes naturais sem assistência, na elucidação de causas maldefinidas e na melhoria da precisão dos registros”, explica a secretaria.

A SES ressalta ainda que reduzir os registros maldefinidos é essencial para o planejamento da saúde pública. Informações precisas sobre as causas de morte permitem ações mais eficazes de prevenção e controle de doenças crônicas, acidentes, violência e epidemias.

“O compromisso do Estado é manter o percentual de causas bem definidas em torno de 90%, em consonância com as metas nacionais, reduzindo gradualmente os registros maldefinidos. Esse resultado será alcançado com a consolidação dos SVOs, a qualificação contínua de médicos e a atualização permanente de codificadores e profissionais da vigilância”, conclui.

💬 Receba notícias antes de todo mundo

Seja o primeiro a saber de tudo o que acontece nas cidades de Mato Grosso do Sul. São notícias em tempo real com informações detalhadas dos casos policiais, tempo em MS, trânsito, vagas de emprego e concursos, direitos do consumidor. Além disso, você fica por dentro das últimas novidades sobre política, transparência e escândalos.
📢 Participe da nossa comunidade no WhatsApp e acompanhe a cobertura jornalística mais completa e mais rápida de Mato Grosso do Sul.

(Revisão: Dáfini Lisboa)

Compartilhe

Notícias mais buscadas agora

Saiba mais
Empregos - Imagem ilustrativa

Programe-se: Campo Grande terá 2,3 mil vagas de emprego abertas na segunda-feira

agetran

Vai sair? Confira as interdições deste fim de semana em Campo Grande

Santo de mochila e calça jeans? Imagens de gesso de Carlo Acutis dividem opiniões e chegam a R$ 7 mil

Viúva de Charlie Kirk manda recado a assassino do marido e promete ‘manter viva’ sua missão

Notícias mais lidas agora

terenos contas

Em 5 anos, Câmara de Terenos só votou contas do prefeito uma vez; TCE-MS reprovou todas

Onde foram parar as lan houses? Empreendimento ainda tem ‘pé’ no passado, mas se reinventou

Idade média dos ônibus supera em mais de 3 anos limite exigido em contrato, acusa CPI

Wanessa Camargo, Vem Garimpar e Feira da Bolívia animam fim de semana em Campo Grande

Últimas Notícias

Transparência

Juíza manda perita explicar laudo que livra JBS de poluir córrego turístico em MS

Promotor apontou série de falhas no laudo

Polícia

Padrasto leva adolescente até a casa de amigo e abusa de enteada em Campo Grande

Morador suspeitou da movimentação e acionou a mãe da vítima

Política

Bolsonaro condenado, revés de Fux e prefeito preso marcam semana política

Confira o resumo da pauta política que movimentou a semana no Brasil e em Mato Grosso do Sul

MidiaMAIS

Praça do Rádio recebe Parada LGBT+ com show de Wanessa Camargo em Campo Grande

22ª Parada da Cidadania e Orgulho LGBTQIAPN+ contará com 15 atrações locais, além do show nacional de Wanessa Camargo