A rotina de cuidados é orquestrada com a mesma precisão que se dedica ao cuidado de uma criança em seus primeiros passos. A alimentação tem horário marcado, os banhos são programados, os passeios são momentos de estímulo, e as atividades lúdicas – como aulas de leitura – são essenciais para o desenvolvimento. Assim como constrói uma base saudável na infância, o cuidado possibilita um envelhecer digno até os últimos suspiros.
Em um cenário de envelhecimento populacional, o trabalho dos cuidadores tem ganhado cada vez mais espaço em Mato Grosso do Sul. Atuando no cuidado de acamados, idosos e pessoas com necessidades especiais, esses profissionais enfrentam desafios diários que exigem não apenas conhecimento técnico, mas, sobretudo, empatia e dedicação com a qualidade de vida dos assistidos.
Neste Dia Nacional do Cuidador de Idosos (20), o Jornal Midiamax traz uma reportagem que mostra os desafios e perspectivas dessa profissão que, mesmo essencial, ainda carece de reconhecimento.
Profissão, cuidador
Embora não haja exigência de formação específica na área da saúde para atuar como cuidador de idosos, empresas e processos seletivos frequentemente priorizam a contratação de profissionais especializados, como técnicos e auxiliares de enfermagem. Isso ocorre porque o trabalho exige a realização de tarefas complexas, como a administração correta de medicamentos e a prestação de primeiros socorros.
Atualmente, a profissão não possui uma regulamentação federal específica. No entanto, o Projeto de Lei 5.178/2020, que trata sobre a regulamentação, está em tramitação. Além disso, os cuidadores seguem normas relacionadas ao Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003) e a Consolidação das Leis do Trabalho, quando contratados formalmente.
Nuances do cuidado
Fernando Rogério de Souza, é enfermeiro e fundador da empresa Residencial Cuidadosos, atua há 14 anos nesse segmento, ao longo desse tempo, ele percebeu que, os profissionais precisam estar preparado para lidar com todas as nuances do cuidado ao idoso, o que exige mais que a formação técnica.

“O trabalho do cuidador vai muito além das atividades rotineiras, envolve estimular a autonomia do idoso, acompanhar sua evolução e, sobretudo, promover um ambiente de afeto e respeito”, diz.
Fernando explica que a empresa, fundada em parceria com o também enfermeiro Alex Souza, iniciou a atuação no segmento home care (atendimento domiciliar), prestando serviços diretamente nas residências, mas diante da demanda, expandiu os negócios para a criação de um residencial adaptado.
“O cuidador é fundamental na qualidade de vida do idoso. Além do atendimento domiciliar, home care, o cuidador realiza tarefas diárias com o idoso. Higiene pessoal, alimentação via oral, medicações. Além disso, temos que passar segurança, carinho e afeto aos assistido”, ressaltou.
No local, os cuidadores trabalham em turnos diários ou noturnos, conforme a necessidade dos familiares, e contam com o apoio de uma equipe multidisciplinar – composta por fisioterapeutas, nutricionistas e terapeutas ocupacionais – que potencializa os resultados do tratamento.
Laços construídos

Aos 23 anos, Israel Batista encontrou no cuidado de idosos uma vocação que transformou sua vida. Há um ano, ele dedica seu tempo e energia a proporcionar conforto e dignidade àqueles que se encontram na terceira idade. No entanto, o trabalho com idosos exige força emocional, uma vez que, em muitos casos, o convívio diário é interrompido pelo ciclo natural da vida.
Apesar da pouca experiência na profissão, o jovem já viveu situações que o marcaram profundamente. Com os olhos marejados, ele relembra um caso em específico que o fez nutrir laços que permanecem vivos em sua memória.

“Há pouco tempo, conheci um paciente com quem tive uma aproximação muito grande. Conversávamos bastante, ele me pedia as coisas e eu sempre dava para ele. Cheguei a dar um colar de presente para ele. Após oito meses cuidando dele, ele faleceu. Na hora, fiquei em choque, não sabia como lidar, mas com o passar dos dias entendi que aquele era o momento dele partir”, relata Israel.
Israel conta que iniciou na profissão após concluir um curso técnico em enfermagem. Buscou oportunidades na área, mas encontrou dificuldades. Foi então que surgiu a chance de trabalhar como cuidador, uma profissão que o cativou desde o início.
“No começo, foi um pouquinho difícil me adaptar, mas quando me adaptei, peguei bem e comecei a gostar. Mas tem que ter bastante paciência, saber entender o lado do idoso, conversar bastante, interagir”, afirma.
Embora saiba que a parceria entre cuidador e paciente tem um tempo determinado, o jovem ressalta que encontra satisfação em proporcionar o melhor para os idosos enquanto ainda estão aqui.
“Quando a gente ficar velho também precisaremos de cuidados, por isso, sempre me coloco no lugar deles”, conclui Israel.
Dedicação e desprendimento

Para a técnica de enfermagem Priscila Ramos, o trabalho de um cuidador exige dedicação e desprendimento. Mãe de duas filhas, Priscila já precisou abdicar do cuidado familiar para se dedicar ao cuidado com os assistidos.
“Eu fiz o curso porque me identifico muito com a parte dos idosos, pelo cuidado que posso oferecer a eles. Sempre tive curiosidade em conhecer como seria a rotina e a vida deles”, explica.
Ela conta que sua entrada na profissão se deu a partir de um curso específico de cuidador, motivado por sua identificação com o cuidado aos idosos. Contudo, admite que os desafios superaram suas expectativas iniciais.
“No começo, pensei que seria fácil, mas logo percebi que cada idoso tem seu jeito, seus problemas pessoais, e adaptar-se a cada um deles exige muita paciência e sensibilidade”, relatou.
A rotina de trabalho de Priscila envolve uma série de atividades diárias, desde o banho, refeições e momentos de lazer e estímulo cognitivo.
“É o banho, o café da manhã, um tempo para brincar, distrair, depois o almoço, o descanso e assim por diante. É preciso ter paciência, compreender que, de certa forma, todos nós um dia precisaremos desse tipo de cuidado”, afirmou.
Demanda crescente

Desde a década de 1990, o Brasil vem experimentando uma transição demográfica significativa, com a inversão da pirâmide etária, caracterizada pela diminuição da taxa de natalidade e o aumento da população idosa. O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) projeta que, até 2060, a população com mais de 65 anos representará 25,5% do total, um salto expressivo em relação aos 9,2% registrados em 2018.
Gilka Trevisan, diretora de Educação Profissional do Senac, destaca que essa tendência de envelhecimento populacional crescente, impõe desafios significativos aos sistemas de saúde público e privado, bem como às famílias.
“A OMS (Organização Mundial da Saúde) alerta que, até 2025, o Brasil será o sexto país do mundo em número de idosos, o que evidencia a urgência de políticas e ações voltadas para essa parcela da população. Além dos desafios relacionados à saúde, há preocupação com o abuso contra idosos. Em 2018, quase 16% das pessoas com 60 anos ou mais foram vítimas de alguma forma de abuso, seja psicológico, financeiro, físico ou sexual”, diz.
Outro ponto fundamental para entender a importância do trabalho de um cuidador é a criação do Estatuto do Idoso, instituído pela Lei nº 10.741, de 01 de outubro de 2003. O documento surgiu em resposta a necessidade de se assegurar os direitos das pessoas idosas, expressos na Constituição Federal de 1988.
Em Mato Grosso do Sul, a demanda por profissionais qualificados tem se intensificado, tanto para serviços de home care quanto para instituições especializadas, como residências terapêuticas e centros de longa permanência para idosos. No entanto, a diretora do Senac ressalta que a atenção à saúde dos idosos exige conhecimentos específicos sobre o processo de envelhecimento, doenças comuns, síndromes geriátricas e a dinâmica familiar em que o idoso está inserido.
Desvalorização é obstáculo para profissionais
Mesmo essencial, a profissão ainda enfrenta desafios quanto à regulamentação e à definição de um piso salarial, já que, mesmo com um Projeto de Lei em tramitação, não há uma regulamentação federal específica para os cuidadores. Assim, muitos profissionais não tem uma valorização condizente com a complexidade do trabalho.
No Brasil, não há um piso salarial definido para cuidadores, mas os valores praticados variam conforme a jornada de trabalho e a região. Em Campo Grande e no Mato Grosso do Sul, os cuidadores podem ser contratados com base no salário mínimo ou em acordos individuais e coletivos.
Além disso, alguns profissionais são representados por sindicatos da categoria de trabalhadores domésticos ou técnicos em enfermagem.
Cursos e capacitações

Em Campo Grande, a Funsat (Fundação Social do Trabalho) oferta capacitações especificas para atuarem no cuidado de idosos. Os cursos abrangem desde noções básicas de saúde e primeiros socorros até aspectos psicológicos do envelhecimento, preparando os alunos para um mercado de trabalho cada vez mais exigente.
Atualmente, a Escola de Educação Profissional da Funsat disponibiliza dois formatos de curso:
- Curso de Cuidador de Idosos – 160 horas (Formação Inicial e Continuada)
- Curso de Cuidador de Idosos – 80 horas (Capacitação complementar)
Conforme a Funsat, a procura pelo curso tem crescido a cada ano e superou as expectativas dos instrutores.
“Temos diversos relatos inspiradores de ex-alunos que se formaram conosco e hoje atuam com sucesso na área. Muitos compartilharam suas experiências de transformação profissional e pessoal após o curso, conseguindo emprego rapidamente e garantindo uma fonte de renda estável. Alguns ex-alunos inclusive voltaram à escola para agradecer e incentivar novos estudantes a seguirem na profissão”, diz.
Gilka Trevisan ressalta que existe uma variedade de cursos e formações para cuidadores de idosos, o que abrange desde a qualificação profissional completa até especializações específicas.
Curso de Cuidador de Idosos (160 horas):
- Qualificação profissional completa para o cuidado abrangente de idosos.
- Foco no bem-estar, higiene, conforto, entretenimento, alimentação, mobilidade e saúde.
- Prepara para atuação em residências, instituições de longa permanência, clínicas geriátricas e hospitais.
- Prepara o aluno para a inclusão e na relação entre o idoso, seus familiares e os integrantes da equipe profissional de saúde.
Aperfeiçoamento Assistência de enfermagem em saúde do idoso (36 horas):
- Destinado a estudantes e profissionais de enfermagem.
- Prepara para a prestação de assistência a idosos, considerando as alterações fisiológicas e patológicas do envelhecimento.
Aperfeiçoamento de Técnicas de cuidador de idosos (48 horas):
- Focado em cuidados domiciliares, com ênfase no acolhimento e humanização.
- Prepara pessoas para exercer cuidados domiciliares com idosos.
- Cuidados com idosos com demência (24 horas):
- Especialização para profissionais da saúde, familiares e comunidade em geral.
- Prepara para a assistência a idosos com demência e limitações nas atividades diárias.
- Identificando suas necessidades e respeitando sua individualidade.
Curso aberto à comunidade
Entre 2008 e 2010, a ETSUS/MS (Escola Técnica do Sistema Único de Saúde), vinculada à SES (Secretaria de Estado de Saúde), também oferecia cursos de formação inicial de cuidadores de idosos para a comunidade, com carga horária de 160 horas. A iniciativa, financiada pelo Ministério da Saúde, visava qualificar pessoas que já trabalhavam com idosos, mas sem a devida formação.
“Naquele momento, esse trabalho era uma ocupação e quase não havia instituições de ensino desenvolvendo processos educativos voltados para essa necessidade de formação em saúde”, explica a SES.
Contudo, passados 17 anos e com o aumento da oferta de cursos de formação e qualificação para cuidadores de idosos, agora denominados técnicos em cuidados de idosos, a ETSUS/MS passou a direcionar seus cursos exclusivamente para profissionais e trabalhadores da saúde. A instituição oferece tanto a formação inicial de cuidadores, com carga horária mínima de 160 horas, quanto o nível técnico em cuidados de idosos, com mínimo de 800 horas, conforme o Catálogo Nacional de Cursos Técnicos do MEC.
“Até hoje a instituição ainda é procurada por pessoas da comunidade que nos solicitam o contato dos egressos de nossos cursos para oferecerem oportunidade de trabalho, o que nos leva a acreditar que há uma demanda por esse profissional em nosso estado”, conclui a SES.
Regulamentação
Em dezembro do ano passado, a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal aprovou o PL (Projeto de Lei) 5.178/2020, que regulamenta a profissão de cuidador. O projeto estabelece normas para a formação profissional e os direitos dessa categoria.
Conforme a proposta, o cuidador é o profissional responsável por auxiliar e oferecer assistência a pessoas que apresentem condições ou enfermidades que exijam acompanhamento permanente ou parcial. Entre suas atribuições, estão a realização de rotinas de higiene pessoal, a administração de medicamentos prescritos por profissionais de saúde habilitados e o auxílio no deslocamento durante atividades sociais, entre outras.
O PL 5.178/2020 distingue dois tipos de profissionais: cuidador de pessoa, quando o trabalho é realizado em domicílio, e cuidador social de pessoa, quando o trabalho é desenvolvido em instituições de acolhimento.
Além disso, o texto determina que, para exercer a profissão, é necessário ter concluído o ensino fundamental e ter realizado um curso de formação ministrado por instituição de ensino reconhecida pelo Ministério da Educação ou por uma associação profissional credenciada, com carga horária mínima de 160 horas. Profissionais que já exercem a função há pelo menos dois anos ficam dispensados dessa exigência.
Desafios e perspectivas para o futuro

Em uma profissão que exige um profundo comprometimento emocional, os desafios perpassam questões como a carga horária intensa, falta de valorização salarial e a dificuldade de encontrar profissionais realmente qualificados, que aliem técnica e afeto. Por outro lado, a crescente oferta de cursos e a ampliação das políticas de assistência aos idosos apontam para um futuro promissor.
“Muitos cuidadores acabam abrindo mão de momentos com a família para se dedicar integralmente ao trabalho, o que evidencia a alta demanda emocional dessa profissão”, pontua Fernando de Souza.
Para Gilka Trevisan, a percepção de que o trabalho de um cuidador se resume à aplicação de técnicas e rotinas é um dos principais desafios da profissão. A realidade, segundo ela, vai muito além de uma agenda de tarefas e envolve uma profunda compreensão do processo de envelhecimento e suas complexidades.
“A competência no atendimento passa por entender o processo de envelhecimento, seus impactos e demandas junto ao idoso atendido e a família, a análise das condições físicas e mentais deste idoso e o planejamento de atividades que possibilitem lidar com essa realidade, tornando a vida do idoso confortável e agradável”, explica Trevisan.
Além da complexidade do cuidado com o idoso, a convivência com a família, suas expectativas e necessidades também representa um desafio significativo. “O cuidador precisa lidar com a história de vida do idoso, que muitas vezes impactou profundamente as relações familiares, e com a importância que essa história representa para todos os envolvidos”.
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