No Dia Mundial Sem Carro, celebrado nesta segunda-feira (22), a proposta é refletir sobre alternativas de mobilidade mais sustentáveis e repensar a dependência do automóvel no dia a dia. A inicaitiva surgiu na Europa, nos anos 90, e vêm ganhando força em várias partes do mundo. Em Campo Grande, onde a dependência do carro ainda é predominante, o debate ganha relevância diante dos desafios do transporte público, da falta de integração entre modais e da necessidade de planejar uma cidade mais inclusiva e sustentável.
Do ponto de vista geográfico, o doutor em Arquitetura e Urbanismo Júlio Botega analisa que Campo Grande é uma cidade plana, o que favorece diversos meios de mobilidade ativa, como bicicleta, caminhada e corredores de ônibus. As condições geográficas possibilitam até a adoção de um VLT (Veículo Leve sobre Trilhos), sistema de transporte público que opera sobre trilhos, sendo uma alternativa moderna e sustentável ao ônibus e ao metrô.
No entanto, mesmo com condições naturais e uma boa infraestrutura urbana, um dos principais impeditivos para que a população possa, de forma segura e confortável, optar por outros meios de locomoção, é a própria cultura da cidade, ainda fortemente dependente de carro, aliada às dificuldades estruturais de outros meios de transporte que não recebem investimentos. “Em termos de infraestrutura, sinceramente, eu acho que nós temos uma boa infraestrutura, só que o transporte não faz jus à infraestrutura que nós temos”, diz Júlio.
✅ Clique aqui para seguir o Jornal Midiamax no Instagram
Outros meios de mobilidade são ‘engolidos’ pelos automóveis
Ao analisar a mobilidade urbana de Campo Grande, o doutor em Arquitetura e Urbanismo Júlio Botega a define como ‘monofuncional’. Isto porque Campo Grande, historicamente, tem uma boa estrutura para carros, com diversas avenidas largas e a famosa ‘onda verde’. No entanto, falha com outros modais de transporte, a começar pelo primordial: o pedestre.
Com exceção de alguns pontos da região central e de bairros nobres, a Capital sul-mato-grossense carece de uma calçada de boa qualidade. No dia a dia da população, ao sair para pegar um ônibus ou até mesmo percorrer pequenas distâncias a pé, é comum o pedestre encontrar calçadas quebradas, tomadas pelo matagal ou até mesmo inexistentes.
“O que acontece aqui é que se esquece que a primeira forma de mobilidade é exatamente ser pedestre. Todos nós somos pedestres, até quem é motorista, em algum momento do seu dia, é pedestre, mesmo na hora que sobe e desce de um carro. Nesse ponto de vista, para pedestre é terrível, porque as calçadas não têm qualidade. Quando nós olhamos para os bairros, então, menos ainda”, comenta.

Além disso, conforme o urbanista, em Campo Grande, assim como no Brasil inteiro, o carro ainda é visto como símbolo de status, enquanto em outros países desenvolvidos até pessoas ricas usam transporte público. Isso acontece principalmente devido a baixa qualidade do serviço, incluindo ônibus sem ar-condicionado, demorados e sem horários confiáveis, reforçando a dependência que o campo-grandense tem do automóvel.
“As nossas cidades são construídas para carros. Veja quanto espaço que uma rua ocupa e quanto espaço de calçada a gente tem. Então o pedestre é sempre secundário. A ciclovia, então, é quaternário, não é nem terciário. E quanto para o carro, você tem toda uma infraestrutura”, destaca.
‘Não existe cidade sustentável sem transporte planejado’
Na visão do urbanista, não é possível uma cidade se desenvolver de forma sustentável sem pensar, primeiramente, em uma mobilidade plural e inclusiva. Para Júlio, o principal meio de fazer isso é por meio do transporte coletivo, pois ele atinge todos os públicos: idosos, gestantes, famílias com crianças e pessoas com mobilidade reduzida.
“Eu não consigo imaginar uma cidade que se desenvolva sustentavelmente sem transporte público planejado. Se você tem um bom sistema de transporte público, você vai fazer com que qualquer pessoa da cidade chegue a qualquer lugar que ela queira. Até pessoas em cadeira de rodas ou que tem problemas de mobilidade, com um bom transporte público, podem chegar nos mesmos lugares. Mas eu não vejo isso em Campo Grande”, destaca Júlio Botega.
Uma solução para Campo Grande tornar o transporte público mais atrativo e competitivo com os carros, conforme destaca o urbanista, seria promover uma maior eficiência no serviço, como incluir ar-condicionado nas conduções, ter horários definidos e corredores de ônibus mais eficientes.
“Se eu tenho um ônibus minimamente confortável, e que vai rápido dentro do corredor de ônibus, sem ficar parando um atrás do outro, enquanto o carro está competindo com os outros carros, eu começo a ter um modal competitivo ao automóvel”, cita.

Integração nos meios de transporte
Outro ponto importante quando se fala em mobilidade sustentável é o desenvolvimento de um modelo de integração entre transporte coletivo e bicicletas. O urbanista cita como exemplo a cidade de São Paulo (SP), cujas linhas específicas de metrô e ônibus permitem a entrada de passageiros com bicicletas. Ele cita também Curitiba (PR), onde os terminais possuem bicicletários.
“Eu chego de bicicleta, estaciono, vou para o outro lado da cidade, volto, e quando eu chego minha bicicleta está lá, dentro desse bicicletário, eu tiro ela e vou embora para minha casa, não preciso ficar esperando o ônibus do bairro”, diz.
Em Campo Grande, ele explica que isso pode ser aplicado investindo em bicicletários nos terminais e em linhas de ônibus específicas para transportar usuários com bicicletas.
“A pessoa vai de bicicleta até o terminal, deixa sua bicicleta em um lugar seguro, faz as coisas de ônibus, e quando volta, a bicicleta está ali, segura. Ter ônibus maiores que tenham áreas destinadas para quem anda de bicicleta é uma possibilidade também. Isso incomoda algumas pessoas, então uma solução seria colocar uma identificação nesses ônibus, porque se isso for uma coisa que incomoda, a pessoa já nem entra”, exemplifica.
Realidade: longas esperas e falta de estrutura
A fotógrafa Nicolle Por Deus, de 31 anos, mora em um bairro afastado do Centro, e precisa pegar, em média, de 2 a 3 ônibus diferentes para se deslocar de sua casa até seus compromissos. O conflito já se inicia quando ela precisa esperar o ônibus do bairro, para ir para o terminal, e continua na volta para casa, por causa do desencontro dos horários das linhas.
“Nem parece que Campo Grande é uma capital quando se trata de mobilidade urbana. Só uma linha atende a região onde moro, e ela só passa de 1 em 1 hora. E várias vezes as linhas que me levam pro terminal não estão alinhadas com a que me leva pra casa. É muito comum ficar mais de 40 minutos esperando no terminal pelo ônibus que me leva pra casa. Houveram situações em que fiquei até 3 horas na função de ônibus, por conta desses desencontros de linhas. Isso é um absurdo, porque acaba reduzindo o direito de ir e vir dos cidadãos, que acabam não tendo autonomia de organizar melhor os horários em que vão sair de casa, ou voltar. É péssimo!”, expressa Nicolle Por Deus.
Além disso, a fotógrafa relata que os ônibus que atendem os bairros mais afastados e aqueles que atendem linhas e uso mais frequentes são de péssima qualidade. “Uma barulheira sem fim, parece que você está dentro de um liquidificador por conta da trepidação. Água escorrendo pelas janelas em dias chuvosos é muito comum. E o calor? A sensação é a de que você tá assando”, descreve.

Nicolle relata que até existem alguns ônibus ‘premiados’ com ar condicionado, mas são poucos. A linha mais comum de se encontrar esse serviço é a 515, que tem um trajeto curto, do terminal Hércules Maymone até o residencial Damha. “Nele sempre tem ar condicionado, nas vezes em que precisei fazer esse trecho. Uma pena as linhas mais movimentadas e os ônibus que atendem bairros mais humildes não terem o mesmo cuidado”, lamenta a passageira.
Outra questão que merece atenção, segundo a fotógrafa, é a estrutura dos pontos de ônibus nos bairros. No caso dela, não há bancos para sentar ou sequer uma estrutura que proteja do sol e da chuva.
“É um pedaço de pau laranja fincado na calçada. Não tem banco, não tem cobertura, não tem nada. O dia tá com um sol pra cada campo-grandense no céu? Vai esperar com a cabeça queimando. Tá caindo o mundo em forma de chuva? Pois então você que arrume um guarda-chuva pra esperar seu ônibus, se não vai entrar ensopado”, relata.
Conforme dados da Prefeitura, levantados pelo Jornal Midiamax em 2023, dos 4.386 pontos, apenas 2.243 paradas tinham cobertura e assentos. Nas demais 2.143 estações, que representa 48,86% do montante, o morador se depara com postes de madeira sem qualquer tipo de suporte ao consumidor que aguarda pelo transporte coletivo.
Transporte público é mal planejado
Para o doutor em arquitetura e urbanismo Júlio Botega, o sistema de transporte coletivo de Campo Grande não possui integração, tampouco eficiência e hierarquia entre as linhas. Ele avalia que, em vez de trajetos otimizados, os ônibus percorrem longos caminhos dentro da cidade em trajetos extensos e pouco objetivos, o que compromete a função dos terminais.
Esses espaços deveriam concentrar a chegada dos ônibus para, a partir dali, distribuir os passageiros aos bairros, no entanto, isso não acontece porque as linhas circulam por vários pontos da cidade, sem uma lógica clara. Na prática, o resultado é um transporte mais lento, desorganizado, que leva os usuários a esperarem por uma hora inteira para deslocar do bairro ao terminal, por exemplo.

“Qualquer bom sistema de transporte têm horário. As pessoas sabem que horas chegar no ponto de ônibus e que horas elas estarão no seu destino. Claro que acontecem acidentes, e imprevistos, mas dentro do previsível, todo bom sistema de transporte tem horário. Mas aqui não tem, temos um sistema muito desintegrado e irracional. Não sei quem está pensando nesse tipo de modelo, mas me parece muito fraco em termos de engenharia de tráfego e de organização das linhas”, enfatiza Júlio.
O urbanista destaca ainda que a frota é antiga e defasada, pois muitos veículos são comprados de segunda mão de outras cidades e circulam sem ar-condicionado, o que prejudica a qualidade do serviço. Outro ponto é em relação às linhas com alta demanda. “Linhas que têm mais demanda precisam de um ônibus de outro porte. Mesmo cidades menores que Campo Grande, possuem muitos ônibus articulados”.
Ciclovias conectam ‘nada’ a ‘lugar nenhum’
Na visão de Júlio, Campo Grande tem uma estrutura razoável para bicicletas, mas que é completamente desintegrada. Em outras palavras, as ciclovias e ciclofaixas não conectam ‘nada’ a ‘lugar nenhum’. Embora exista uma boa continuidade e conexão entre pontos como a Orla do Aeroporto, Orla Morena, Avenida Euler de Azevedo e Orla Ferroviária, os outros pontos da cidade não possuem a mesma fluidez.
“Por exemplo, a ciclovia da Avenida Heráclito é interrompida próximo à Mascarenhas de Moraes e não se conecta a nada. E isso nós vamos ver em vários lugares da cidade: trechos de ciclovia que ligam um ponto ao outro e não se conectam a nada”, diz.

Até mesmo a Avenida Afonso Pena, que possui uma das melhores estruturas para ciclistas na cidade, cai no limbo da desconexão. Além disso, o modelo em zigue-zague também é criticado pelo urbanista, pela falta de praticidade para quem usa a bicicleta para ir trabalhar ou resolver tarefas cotidianas, por exemplo.
“A ciclovia, muitas vezes, é vista pelo poder público e até pela população em geral, como algo para passear. A ciclovia na Afonso Pena, que é um dos principais eixos da cidade, é uma ciclovia toda em ziguezague. Se eu estou passeando de bicicleta, ok. Agora, se eu uso a bicicleta para ir ao trabalho, eu preciso de uma ciclovia que conecte as coisas, que seja mais direta”, explica Júlio.
Além disso, boa parte da população, por exemplo, sequer sabem onde estão localizadas as ciclovias, ou como traçar rotas com a bicicleta. “Quando as pessoas andam de ônibus, elas sabem onde o ônibus vai passar. Quem anda de bicicleta, às vezes, não tem esse mapa, a não ser que seja um ciclista de fato de todos os dias, mas se a gente pegar uma bicicleta aqui, dificilmente a gente vai saber onde tem ciclovia de fato”, cita Júlio.
Falta de segurança e estrutura limita uso de bicicletas
Para que a bicicleta seja vista como meio de transporte viável, o urbanista analisa que é necessária uma mudança tanto cultural quanto estrutural, como por exemplo: empresas que ofereçam locais para que trabalhadores possam se arrumar após o trajeto, ciclovias conectadas que permitam deslocamentos rápidos e seguros, além de condições que tornem a escolha competitiva em relação ao carro, como subsídios na compra.
Atualmente, segundo Júlio, esses fatores não se combinam em Campo Grande, o que impede a consolidação da bicicleta como transporte efetivo. “Por exemplo, se eu viesse para o meu trabalho, eu teria onde tomar um banho e me arrumar antes de entrar em sala de aula? Porque eu chegaria suado. Em geral, isso não existe. Nós temos desconto para comprar carro, mas não temos desconto para comprar bicicleta. Mas só isso também não adianta”, comenta.
O trânsito também é um dos pontos que pesam no quesito ‘segurança’, pois não há respeito, por parte dos demais veículos, aos ciclistas. Conforme o CTB (Código de Trânsito Brasileiro) a bicicleta é considerada um meio veicular, portanto, em ruas com pouco movimento, os ciclistas podem circular com os carros, sendo deles a preferência. Ruas de menor movimento, inclusive, não têm obrigação de ter ciclovia.

Campanha lembra que sonho é distante, mas não impossível
O urbanista avalia o Dia Mundial Sem Carro como uma iniciativa positiva, embora pouco divulgada. Para ele, a data cumpre um papel essencial: lembrar que é possível viver sem depender do automóvel, ter cidades menos poluídas, mais sustentáveis e com melhor mobilidade.
No entanto, em países em desenvolvimento, como o Brasil, o carro ainda é visto como sonho de consumo, enquanto em países mais ricos e desenvolvidos caminham em um movimento para reduzir cada vez mais o uso de automóveis. “Quando você olha para os países ricos e mais desenvolvidos, isso já não é a realidade. Eles não querem mais vias para carro. Pelo contrário, eles querem cada vez menos depender do carro”.
“A ideia de que carro é sinônimo de riqueza é ultrapassada. As cidades que perceberam isso lá nos anos 90, hoje têm excelentes meios de transporte. Alguns caminham para eliminar completamente o carro das suas áreas urbanas, como é o caso de Hamburgo, na Alemanha, entre outras cidades que têm seus planos diretores sendo pensados para que o carro seja completamente eliminado em 30 anos. Há incentivo para os combustíveis e para os veículos elétricos, de forma a melhorar a questão ambiental também”, expõe Júlio Botega.
Por isso, Júlio pondera que essa mudança deve partir de ações concretas do poder público, pois em um país marcado pela violência e que sofre com altas temperaturas, é irreal imaginar uma realidade onde as pessoas irão simplesmente abandonar o carro, sem que haja outra opção viável e confortável. “O Dia Mundial do Carro é um lembrete do que nós poderíamos viver, e não vivemos por uma série de motivos. Mas um dia a gente pode chegar lá, se houver esse alinhamento de poder público, empresários e sociedade”, finaliza.
Para Gabriel, essa já é uma realidade
O advogado Gabriel Campanini, de 32 anos, relata que nasceu e cresceu na cidade de Amambai, distante 301 quilômetros de Campo Grande, e conta que por lá era bastante comum as pessoas utilizarem a bicicleta como meio de locomoção. Mesmo após se mudar para a Capital, o advogado revela que não perdeu esse hábito, e optou por viver sem carro.
“Lá é bem comum as crianças irem pra escola ou pra casa dos amigos de bicicleta e eu sempre fazia isso. Quando eu me mudei aqui pra Campo Grande e morando em outros lugares, eu acabei só continuando a fazer isso. Eu sinto falta [de ter um carro] às vezes pra viajar, porque seria mais prático, mas no dia-a-dia, pra viver na cidade, nunca fez falta”, comenta.
Gabriel compartilha que pedala cerca de 10 quilômetros por dia, considerando o trajeto de ida e volta de casa para o trabalho, e eventuais idas ao mercado ou farmácia. Para ele, o trajeto é viável pois o escritório fica na mesma região do bairro onde ele mora.

No entanto, mesmo com a experiência no pedal, Gabriel comenta que o principal desafio dos ciclistas é o trânsito. Devido à falta infraestrutura, os ciclistas acabam, na maior parte do tempo, tendo que dividir espaço com os automóveis, o que coloca eles em risco, principalmente em horário de pico. Outro ponto debatido pelo advogado são as condições das ciclovias.
“Campo Grande tem pouca infraestrutura cicloviária, e a infraestrutura que tem, apresenta diversos problemas. Ela tem, geralmente, muitos buracos, na transição entre a ciclovia e o asfalto geralmente tem desníveis, pedras soltas que podem causar acidente, mas o principal problema é que as ciclovias que existem, elas não são conectadas entre si. Elas não ligam os bairros entre si, no máximo ligam alguns bairros com o centro da cidade e só”, finaliza.
A reportagem do Jornal Midiamax procurou a Prefeitura de Campo Grande para discutir questões como a possibilidade de futuros projetos de integração no trasnporte público, bem como informações sobre o plano diretor de mobilidade urbana da cidade. No entanto, não houve retorno até o fechamento da reportagem.
💬 Fale com os jornalistas do Midiamax
Tem alguma denúncia, flagrante, reclamação ou sugestão de pauta para o Jornal Midiamax?
🗣️ Envie direto para nossos jornalistas pelo WhatsApp (67) 99207-4330. O sigilo está garantido na lei.
✅ Clique no nome de qualquer uma das plataformas abaixo para nos encontrar nas redes sociais:
Instagram, Facebook, TikTok, YouTube, WhatsApp, Bluesky e Threads.