Nas rádios, “Faith”, de George Michael, e “Faz Parte do Meu Show”, de Cazuza, brigavam pelo primeiro lugar na parada de sucessos. Na TV, a primeira versão de “Vale Tudo” reunia famílias em frente à televisão em busca de saber quem havia matado Odete Roitman. Nas ruas, trilhos da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil ainda cortavam a cidade, que só dali a algumas décadas começaria a perder a cara de interiorana.
Assim era Campo Grande no ano em que a nova e atual Constituição Federal foi apresentada aos brasileiros. Nessa época, a cidade experimentava, há quase uma década, o status de capital. Como tal, também vivia a expectativa de um país norteado na defesa da democracia, na soberania e nos direitos fundamentais.
Pouco antes disso, entre 1986 e 1987, campo-grandenses se mobilizaram no sonho de ajudar a escrever a Carta Magna do país que recém havia retomado o rumo democrático. Caneta e papel em mãos. Recorreram às palavras para exprimir sonhos, desenhando-os letra por letra. Em todo o país, foram mais de 72 mil cartas enviadas ao Congresso Nacional, em uma espécie de ouvidoria que buscava entender o que, afinal, queriam os brasileiros.
Cerca de 270 foram enviadas por moradores da Cidade Morena.
Esta reportagem em alusão aos 126 anos de Campo Grande nasceu da curiosidade de olhar o passado e ver o que ele devolveria, em 37 anos de Constituição Federal, a uma das mais jovens capitais brasileiras. Foi uma procura pelos vivos — e mortos — em um mundaréu de cartas endereçadas como sugestões à elaboração da Constituição Federal de 1988, a fim de entender o que campo-grandenses da década de 1980 desejavam para o país.
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Lendo, lendo e relendo os sonhos e as dores de artistas, juristas, motoristas, professores, camponeses, servidores públicos, pedreiros, empregadas domésticas, mas especialmente de campo-grandenses pobres, que sugeriram nas cartas um país mais justo, em uma época em que o SUS não existia e a educação era vista como privilégio. Entre os remetentes, alguns já morreram, outros viraram nome de rua, disputaram cargo de vereador em outros estados, comandaram instituições, formaram família, entre outras atividades em quase 40 anos.
“Espero da nova constituinte: apoio direto ao pequeno e médio produtor. Maior apoio às crianças pobres. Proteção ao Pantanal. Combate à corrupção pública-estatal. Maior participação dos políticos à administração nacional. Resultados positivos, de um intenso trabalho, para que realmente possam ajudar o sofrido brasileiro."
Geraldo Alves Pereira, casado, morador da zona urbana de Campo Grande (20 a 24 anos)
Nos anos 1980, a inflação descontrolada — rescaldo da ditadura militar — corroía o poder de compra dos brasileiros, enquanto culturalmente emergia uma sede de expressão, de crítica e de reconstrução da identidade nacional, após anos de repressão.
“Sugiro os seguintes temas para debate: poder econômico e os reais direitos de um cidadão. A efetiva implantação da reforma agrária no país. Sistema partidário — para que tantos? Quando dois ou três partidos no máximo, se bem estruturados, seriam o suficiente para a nação... A extinção definitiva das milhares de mordomias usufruídas pelos ministros em exercício. Etc."
Norival Pérez da Silva, outros, morador da zona urbana de Campo Grande (40 a 49 anos)
Entre ditaduras e regimes democráticos, o Brasil viu a alternância entre a repressão e a liberdade: pena de morte; SUS somente para trabalhadores com carteira assinada; educação como privilégio de poucos; pobres, analfabetos e mulheres sem direito ao voto; trabalhadores sem direito a férias remuneradas e a 13º salário; ditadura; renda mínima para ser eleito; fim da liberdade partidária e de imprensa.
“Senhor Presidente, por que o senhor não olha um pouquinho mais para os aposentados do FUNRURAL? Nós também precisamos de aumento."
Eliodora Tosta Barbosa, viúva, moradora da zona urbana de Campo Grande (acima de 59 anos)
A maioria desses dispositivos só foi alterada na última Constituição Federal, de 5 de outubro de 1988. A “Constituição Cidadã” previu uma série de direitos básicos que foram ora assegurados, ora afastados, nas outras seis constituições anteriores (1824, 1891, 1934, 1937, 1946 e 1967).
Nasce Campo Grande e um nova Constituição Federal
A primeira Constituição Federal data de 25 de março de 1824 e foi uma imposição do imperador D. Pedro I. Na época, nem a liberdade a todos era um direito básico. Ainda operava o sistema escravocrata, que só teria fim em 13 de maio de 1888, um ano antes da proclamação da República. É neste contexto da primeira Carta que surge o que seria hoje Campo Grande, com a chegada do mineiro Antônio José Pereira, acompanhado de familiares e escravos, em 21 de junho de 1872.
“Sugiro que seja instituído o seguro desemprego. A Igreja fora da política (a católica). O respeito obrigatório pelas nossas armas (simbólicas)."
Paula Francinete dos Santos, solteira, moradora da zona urbana de Campo Grande (40 a 49 anos)
Em 24 de fevereiro de 1891, foi criada a segunda Carta, trazendo a independência dos Três Poderes, a separação da Igreja e do Estado e a ampliação da votação para outros grupos, exceto para mendigos e analfabetos. Entre a segunda e a terceira CF, Campo Grande foi elevada à posição de município, por meio da Resolução Estadual 255, de 26 de agosto de 1899.
“1- Que marido e mulher sejam iguais para todos os efeitos legais, principalmente na previdência e imposto de renda, evitando-se o humilhante processo para marido inválido, pois um sempre será, automaticamente, dependente do outro. 2- Que após 2 (dois) anos de convivência comprovada, a mulher companheira tenha todos seus direitos assegurados como dependente ou herdeira, independentemente da existência de filhos. 3- Que qualquer cargo público ou autárquico em sociedades de economia mista seja preenchido por concurso de títulos e provas. 4- Que se institua, com urgência, o seguro desemprego. 5- Que se extingua [sic] juros e correções monetárias para implementos agrícolas e sementes."
Palmira Arruda Vasconcelos, casada, moradora da zona urbana de Campo Grande (50 a 59 anos)
Constituição dos Sonhos

Após duas décadas de ditadura militar e mobilização de milhões de pessoas no Diretas Já, os brasileiros ansiavam por ter uma maior participação nas decisões do país. O então presidente da República, José Sarney, convocou a Assembleia Nacional Constituinte, em 1985, voltada a desenvolver a nova lei maior do país.
Um sul-mato-grossense que acompanhou de perto a elaboração da nova Carta foi o jornalista Sérgio Cruz, que desempenhou mandato como deputado federal até 1987. Apesar de não ter sido um deputado da Constituinte, recebeu algumas cartas e viu de perto as movimentações, compondo a assessoria de Lula — então deputado federal — e, posteriormente, do também deputado federal Valter Pereira.
“Sou a favor da Constituinte também. Entretanto, tenho certeza que o povo tem que participar, buscar suas reivindicações ao nível de política brasileira. Somos frutos de uma ditadura de vinte anos, fomos levamos a seguir às regras ditadas pelos detentores dos poderes. Também é fundamental a participação da mulher em todos os sentidos [...] Também devemos analisar ‘a reforma universitária‘, que é primordial… mais verbas para escolas e universidades. O governo federal, nossa presidência, deveria realizar algo para nós estudantes universitários."
Vera Lúcia Ataide, solteira, moradora da zona rural de Campo Grande (15 a 19 anos)
Cruz relembra que Sarney era íntimo do regime banido e garantiu uma transição confortável e generosa aos antigos donos do poder autoritário. Ele avalia que, com a desarticulação com o fim do regime, a extrema-direita não teria tido influência nas decisões da Assembleia.
“O clima reinante era de grande expectativa, criada pelo pós-ditadura. O receio de que os militares tentassem voltar foi definitivamente afastado pela movimentação do governo civil, que terminou muito afinado com alguns postulados da ditadura, pela presença do Sarney, que, em consequência da morte de Tancredo Neves à véspera da posse, assumiu a presidência”, relembra o jornalista.
“Sugiro aos Senhores Constituintes que elaborem leis fiscalizadoras dos órgãos públicos, para que acabem com esbanjamento do dinheiro da nação, e punir os infratores que usam tais cargos para se enriquecer. Riqueza esta ilícita e vergonhosa para nós brasileiros."
Nilza V. Neto da Silveira, outros, moradora da zona urbana de Campo Grande (25 a 29 anos)
O jornalista se recorda de que, na antevéspera da Constituinte, o que a maioria pleiteava, além do resgate dos direitos abolidos pela ditadura, era livrar-se da política econômica desastrosa do regime, em decadência.
“A inflação havia perdido completamente o controle, corroendo salários e desestabilizando as atividades produtivas”, explica.
Neste sentido, um dos meios de participação da população foram as cartas enviadas com sugestões para a elaboração da Constituição Federal. Foram recebidas 72.719 cartas, entre 1986 e 1987. Cinco milhões de formulários foram distribuídos pelos municípios de todo o país, disponíveis nas agências dos Correios. Partidos políticos puderam entregar diretamente aos filiados. Houve pontos de coleta em prefeituras e assembleias legislativas.
Levantamento do Midiamax encontrou 274 cartas de campo-grandenses endereçadas à elaboração da Constituição Federal. Foram feitas tentativas de encontrar fontes personagens para esta reportagem com envio de mensagens — estas virtuais — para homônimos de autores das cartas. De gente que redigiu a cartinha e aguardou mudanças. Nós também escrevemos e ficamos à espera de uma resposta, o que, infelizmente, não veio.
“Espero que a nova Constituição dê chance aos jovens de 25 até 30 anos a ingressar como oficial ou aluno na: Polícia Militar, no Exército, na Aeronáutica, na Marinha. E que todos os alunos do segundo grau não tenham necessariamente que passar pelo vestibular, mas sim, ingressar diretamente na universidade. Fixar o salário mínimo no próximo aumento em torno de CRS 1.500,00. sem ter que aumentar os preços das mercadorias. Obrigado."
Afonso Pereira Teixeira, solteiro, morador da área urbana de Campo Grande (25 a 29 anos)
Esse vasto banco de dados é mantido atualmente no site do Senado Federal. É possível consultar os documentos a partir de filtros, como temas e cidades.
A maioria dos pedidos enviados à Constituinte envolvia o fim da corrupção, reforma agrária, preservação do Pantanal, direitos iguais entre homens e mulheres, mais oportunidades de emprego, mais segurança, fim de privilégios de políticos e do Judiciário. Outros faziam questionamentos.
“Nós brasileiros não temos nada de dar sugestões e sim perguntar: Até onde vamos parar com estes aumentos insuportáveis para o bolso?. [sic] Pois, o que ganhamos hoje não dá nem mesmo para manter uma família. O brasileiro vai chegar num ponto, de trabalhar de dia para o sustento da família e trabalhar a noite para pagar o B.N.H. [Banco Nacional da Habitação]."
Jonas Sanches, casado, morador da zona urbana de Campo Grande (30 a 39 anos)
Um novo Brasil
O que se ressalta entre os pedidos, entretanto, é a garantia de saúde e educação para todos. O SUS não exista como hoje. O Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social) atendia apenas trabalhadores com carteira assinada e os dependentes. Ou seja, quem não contribuía não tinha direito à assistência à saúde.
Doutor em Direito Constitucional e professor da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), André Puccinelli Júnior afirma que a Constituição Federal de 1988 é moderna, comparável às mais avançadas do mundo, protetiva e generosa em reconhecer direitos fundamentais.
“Na educação, a Carta de 1988 fortaleceu o princípio da gratuidade e obrigatoriedade do ensino fundamental, assegurando maior investimento público e ampliando o acesso às escolas. Antes, tanto a saúde quanto a educação eram vistas como privilégios restritos; depois, passaram a ser direitos fundamentais, exigíveis perante o Estado e o Judiciário, afirma.
“Esperamos melhora do ensino em todos os níveis. Maior preservação e divulgação turística do Pantanal."
Jesus Ferreira Gutierrez, solteiro, morador da zona urbana de Campo Grande (20 a 24 anos)
O docente explica que a Constituição é, em essência, a espinha dorsal da democracia. Ela representa o pacto fundamental que organiza o Estado brasileiro, estabelece limites ao poder e garante direitos aos cidadãos. Sem a Constituição, não há segurança jurídica nem estabilidade institucional.
“No entanto, o desafio brasileiro não é a ausência de normas, mas a efetividade delas. Em países de tradição consolidada no cumprimento da lei, o que se escreve no papel é fielmente observado. No Brasil, ainda enfrentamos um hiato entre o que a lei garante e o que o cidadão, de fato, recebe. A justiça de nossas normas é inquestionável; o que está aquém é a capacidade de torná-las realidade para todos, indistintamente”, aponta.

Ainda no campo da educação, o jornalista Sérgio Cruz explica que as maiores mudanças foram sentidas na área do ensino superior.
“A educação tornou-se mais acessível a todos, por vários programas de incentivo, através de bolsas de estudo e planos de financiamento, no ensino superior. No ensino fundamental e médio, não houve mudanças significativas. No geral, a principal mudança foi a volta da democracia plena”, aponta.
Alguns diziam que o país ia bem, mas a maioria dos remetentes das cartas demonstrava insatisfação em poucas frases. Há um punhado de cartas enviadas à Constituinte por campo-grandenses curiosos, que queriam saber mais informações sobre aquela reforma que mudaria os rumos do país.
“Apesar de ser um pouco leigo sobre a política do Brasil, preocupo-me com nossa situação econômica. Gostaria, portanto, que os senhores políticos fossem mais claros, para que todas as pessoas pudessem entender e saber como lutar para melhorar o nosso país."
Américo Ferreira Felix, morador da zona urbana de Campo Grande (Não informado)
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(Revisão: Dáfini Lisboa)