Para quem passou 13 anos em um ritmo intenso de trabalho, a adaptação a uma nova rotina após a aposentadoria torna-se um grande desafio. Aos 68 anos, João Pereira da Silva carrega o peso e o orgulho de ter integrado a primeira equipe do Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) em Campo Grande. De lá para cá, acumulou inúmeras histórias, que agora ajudam a construir esta reportagem.
Nesta sexta-feira, 11 de julho, é celebrado o Dia do Socorrista. Para além do uniforme e da sirene, a data é também um convite para conhecer os bastidores de uma rotina incansável e, muitas vezes, invisível.
Um chamado que veio cedo

João conta que a vontade de trabalhar com socorro sempre esteve presente. Nos anos 1970, ainda na adolescência, fez seu primeiro curso na área da saúde — por correspondência. Tinha apenas 16 anos.
“Fiz o curso por correspondência, mas logo percebi que já estava ultrapassado. As faculdades estavam se multiplicando e oferecendo formações presenciais. E eu precisava trabalhar”, relembra.
Diante da necessidade de ajudar no sustento da família, o morador de Pereira Barreto, no interior de São Paulo, se arriscou em várias profissões: passou pelo serviço militar, foi açougueiro, cobrador de ônibus, pedreiro em Brasília… até que, em 1985, após os 30 anos, iniciou de fato sua formação na área da saúde.
Já em Campo Grande, ingressou no curso de atendente de enfermagem na Santa Casa, principal hospital da cidade.

“Com o tempo fui me especializando. Trabalhei sete anos como auxiliar de enfermagem, depois cursei o nível técnico, também em enfermagem, e segui nessa profissão até me aposentar”, conta.
Foi ainda nos corredores da Santa Casa que teve o primeiro contato com os atendimentos de urgência. Aprovado em concurso da prefeitura, passou a atuar nas unidades de saúde da cidade e, com o tempo, era frequentemente escalado para os casos mais complexos.
“Eu gostava tanto de sair nas ambulâncias que sempre me chamavam. Era a parte com que eu mais me identificava”.
Antes do Samu, ‘improviso’ salvava vidas
Os relatos sobre o período anterior ao Samu impressionam. A estrutura precária das ambulâncias e a escassez de profissionais exigiam criatividade e, muitas vezes, sangue-frio.
“A gente saía em viaturas pequenas, que mal comportavam o paciente. Muitas vezes, eu fazia o atendimento de traumatizados ali mesmo. Instalava soro na estrada, enquanto levava o paciente da unidade até a Santa Casa”, conta.
Sem ambulâncias suficientes, não era raro que os próprios familiares levassem os pacientes em carrocerias de caminhonetes. “A gente fazia o possível, mas até o Samu chegar, trabalhávamos com o que tinha”.
A chegada do Samu e o aprendizado, na prática

Em 2005, com a implantação oficial do Samu em Campo Grande, João passou a integrar a equipe. Na época, João já era casado e pai de três filhas.
A experiência prática, no entanto, foi o verdadeiro aprendizado.
“A gente foi treinando no dia a dia. Atendimento com múltiplas vítimas, parto, incêndios… aprendemos tudo mesmo, na prática”.
Desde o início, o suporte dos bombeiros era essencial, especialmente em acidentes com vítimas presas nas ferragens. “Muitas vezes, a gente tinha que estabilizar a vítima no interior do carro, até o desencarceramento. Era difícil, porque alguns equipamentos só os bombeiros tinham”.
João ainda se lembra com detalhes de seu primeiro atendimento como socorrista: um parto, procedimento temido por muitos profissionais da área.
“Era uma gestante em fase de expulsão. Eu não sabia muito bem como agir, mas fui fazendo os procedimentos até chegar na base, onde as enfermeiras terminaram o parto. Por isso, nunca gostei de fazer parto”, ri. “Fugi por um tempo, mas no meu último ano tive que fazer vários. Já estava treinado, acabou sendo tranquilo”.
20 anos de criação do Samu

Ao longo de 20 anos, o Samu realizou mais de 8 milhões de atendimentos na Capital. Atualmente, o serviço conta com 240 profissionais atuando na regulação e no atendimento pré-hospitalar, entre médicos, enfermeiros, técnicos, TARM/ROs (Telefonista Auxiliar de Regulação Médica) e condutores socorristas.
Segundo a Sesau (Secretaria Municipal de Saúde), a formação exigida varia conforme a função, sempre com capacitação técnica e específica. A remuneração também varia de acordo com formação e função exercida.
A estrutura atual conta com 14 ambulâncias e duas motolâncias habilitadas pelo Ministério da Saúde. As chamadas pelo número 192 são recebidas pelos TARM, que fazem o primeiro contato. Em seguida, o médico regulador avalia a situação e define a conduta: orientação por telefone, envio de unidade de suporte básico ou avançado.
Assim, as equipes móveis prestam os primeiros atendimentos ainda fora do hospital, realizando manobras que muitas vezes são determinantes para a sobrevivência do paciente.
Entre vítimas e reviravoltas
No dia a dia da profissão era quase impossível não se deparar com um acidente inesperado, foi assim que durante o transporte de um paciente, se deparou com uma colisão entre carros envolvendo dez vítimas. É quando cada segundo torna-se crucial para salvar vidas.
“Estava indo para o hospital quando passamos pelo acidente. Avaliei tudo ali mesmo, priorizei os mais graves e pedi reforço. Todos sobreviveram. Mas, se não tivéssemos passado por ali, talvez o socorro não tivesse chegado a tempo”.
Como atuava no suporte básico, João integrava equipes com somente um técnico ou enfermeiro e o condutor. O objetivo era estabilizar o paciente e passar o caso à unidade de suporte avançado, a chamada “Alpha”, composta por médico, enfermeiro e socorrista.
Mas mesmo com todo o preparo técnico, nem sempre o desfecho ocorria como esperado. Por isso, era essencial que o profissional soubesse lidar com a morte.
“Já tivemos situações em que o paciente chegou sem pulso, fizemos o atendimento e ele voltou. Outras vezes, a gente fazia de tudo, mas perdia o paciente. Era difícil ter que comunicar a família”.
‘O peso emocional vem depois’
Ao lidar diariamente com dor, risco e responsabilidade, mal sobra tempo para emoções. Seja pela adrenalina das ocorrências ou pelo zelo profissional, o abalo emocional só vem depois.
“Na hora, a gente não sente. O treinamento é tão forte que a emoção só vem depois. Se você se abala ali, não consegue salvar ninguém, é um trabalho que exige muito profissionalismo”.

Pai de três filhas, ele ressalta que os acidentes que envolviam crianças eram sempre os mais difíceis, nessa hora o lado humano impactava fortemente o profissional.
“A gente sente mais. Quando era criança, pegava diferente, não têm como não se colocar no lugar da vítima e dos parentes. Ainda assim tinha que manter a calma para fazer o máximo para salvar”.
Rotina intensa e desvalorização
Além da carga emocional, a jornada era exaustiva. João chegou a fazer 14 plantões por mês, acumulando turnos no Samu e nas unidades de saúde.

“Trabalhava das 7h às 17h na unidade e depois ia direto para o Samu. Fácil, passava das 40 horas semanais. Só descansava quando tinha outro técnico na base. Quando não tinha, seguia direto”.
Mesmo aposentado desde 2017, ele diz que o corpo ainda guarda a memória da rotina. “Até hoje sonho que estou de plantão, quase toda noite”.
Outro fator desfavorável da profissão é a falta de valorização financeira da categoria, o que, em muitos casos, resultava em muito trabalho e poucos ganhos.
“No início não tínhamos adicional noturno nem de periculosidade. A remuneração também deixava muito a desejar. Falta muito reconhecimento. O trabalho é difícil, perigoso, mesmo sendo extremamente importante”.
‘Profissão exige muito, mas há pouco reconhecimento’
Apesar da dedicação por décadas, o socorrista aposentado é sincero ao avaliar a profissão. “Hoje, se fosse para entrar de novo, eu não entrava. A profissão é desvalorizada, exige muito e o reconhecimento é pouco. Tem que gostar muito.”
Ainda assim, ele não consegue virar as costas para a vocação e ainda guarda com carinho todos os uniformes que acumulou durante os anos de profissão.
“Se eu vir um acidente na rua, paro e tento ajudar. Não tem como fugir disso, mesmo aposentado é meu dever”. Embora a profissão seja marcada por inúmeras dificuldades, João reafirma que nada substitui a satisfação de salvar uma vida.

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