Cidades de Mato Grosso do Sul ‘saem’ do centro-oeste e nomeiam endereços de todas as regiões do país
Municípios têm mais de 2 mil ‘xarás’ espalhados pelo Brasil; Mato Grosso do Sul concentra a maioria das homenagens
Letícia Marquine –
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Em um curioso entrelaçamento geográfico, fragmentos de Mato Grosso do Sul estão por todo Brasil. A conexão entre o estado do Pantanal e outros cantos do país acontece por meio do ‘batismo’ das ruas. Na segunda reportagem especial pelos 47 anos do Estado, o Jornal Midiamax descobriu que são pelo menos 2.021 logradouros nos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal, que carregam o nome de 74 municípios sul-mato-grossenses.
Chegar ao número que ultrapassa dois milhares, foi possível por meio do levantamento realizado pelo Jornal Midiamax com base nos dados do Cadastro Nacional de Endereços do Censo Demográfico de 2022 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
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Bela Vista, Campo Grande, Bandeirantes e Rio Negro têm mais de 100 logradouros ‘xarás’ pelo país. Seguidos de Antônio João, Costa Rica, Corumbá e Eldorado, com até 50. Os únicos municípios que ficam de fora são Dois Irmãos do Buriti, Laguna Carapã, Nova Alvorada do Sul, Novo Horizonte do Sul e São Gabriel do Oeste.
Mas estima-se que o número de logradouros possa ser ainda maior, uma vez que, segundo o IBGE, o Brasil tem mais de 2,5 milhões de ruas sem nome registrado. Ou seja, só é possível saber quantos endereços existem nas ruas que já estão identificadas, não naquelas que ainda não têm nome oficializado nas prefeituras locais.
Espalhadas pelas cinco regiões do país, essas homenagens urbanas são, muitas vezes, desconhecidas até pelos próprios moradores. Imagine andar todos os dias por uma rua que leva o nome da capital de um estado sem sequer ter pisado lá. Isso levanta uma questão curiosa: como esses nomes chegaram a lugares tão distantes?
Identidade regional além dos limites territoriais
O doutor em História Social pela USP (Universidade de São Paulo) e professor de História do Brasil da Faculdade de Ciências Humanas da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), André Dioney Fonseca, explica que o Brasil tem como tradição homenagear cidades e estados emprestando-lhes os nomes para ruas e avenidas. Isso cria um vínculo simbólico que vai além da localização física e une diferentes lugares por meio do sentimento e da cultura.
Por exemplo, é sempre emocionante encontrar uma rua que lembre nossa cidade quando estamos longe dela. “Esse tipo de fenômeno se manifesta como uma forma de memória espacial, que aguça o sentido de pertencimento e faz com que a identidade regional transcenda os limites territoriais”, afirma.
Dessa forma, o professor reforça que tais homenagens são formas de compartilhar identidades e estabelecer laços de reconhecimento e solidariedade entre cidades ou estados. Além disso, o ato de nomear os lugares desempenha um papel fundamental para preservar elementos da cultura e da história, abrindo a possibilidade de eternizar elementos da memória coletiva.
Ou seja, embora muitas vezes desapercebidas, são formas de manter viva a memória de diferentes regiões do Brasil ao criar laços invisíveis que conectam o país de norte a sul. Um dos exemplos mais curiosos dessa conexão acontece em Jaboatão dos Guararapes.
Um pedaço de MS no Nordeste
Em uma cidade no litoral do Nordeste brasileiro, a 3 mil km de Mato Grosso do Sul, ruas comuns conectam lugares bem distantes. Em Jaboatão dos Guararapes, região Metropolitana do Recife, o bairro das Candeias é um pedacinho simbólico de MS. Por lá, algumas ruas são batizadas com nomes de municípios que vão da capital ao interior do estado do Pantanal.
São 17 cidades homenageadas. Amambaí, Bandeirantes, Bela Vista, Brasilândia, Bonito, Campo Grande, Caracol, Cassilândia, Corumbá, Dourados, Iguatemi, Itaporã, Jateí, Maracaju, Paranaíba, Ponta Porã, Rio Negro e Rochedo. Peças que montam uma espécie de mapa invertido onde ‘os municípios de MS’ aparecem em meio ao cenário litorâneo. Já pensou Campo Grande a poucas quadras do mar?
Relações entre vizinhos
Apesar do abismo imenso entre os biomas, o bairro de Candeias se aproxima de Mato Grosso do Sul, ao ser definido pela cozinheira, Maria Aparecida, de 61 anos. “É um lugar de gente humilde, um bairro nobre que mora muita gente com condições financeiras, mas tem muitas casinhas de gente humilde, desempregada, aposentada”, explica.
Moradora de Candeias há 30 anos, ela diz que uma das razões pelas quais gosta de viver ali é o forte laço com os vizinhos. “Conheço todos os meus vizinhos. Uns têm umas barraquinhas de vender lanche, outros têm comércio. A gente se ajuda e é muito bom aqui”.
Ainda assim, Maria conta que já viu muita coisa por ali e nem tudo são flores. “A rua transborda e ninguém passa. Teve enchente que o vizinho perdeu geladeira, móveis”, lamenta. E embora nunca tenha visitado nenhuma cidade de Mato Grosso do Sul e até confundido o estado com o Mato Grosso, o relato de Maria parece muito próximo ao cotidiano daqui. “Aqui é uma demora para conseguir vaga no posto de saúde, várias vezes tive que tirar do bolso para comprar remédio, para fazer consulta”, enfatiza.
Rua Campo Grande
Bem longe do Cerrado e a só dez quadras da Praia de Candeias, a Rua Campo Grande é uma das mais longas vias do bairro. Curiosamente paralela à Rua Cuiabá, são 3,5 km de extensão saindo do cruzamento com a Dr. Aniceto Varejão, passando por um trecho mais estreito e indo até a Rua Criciúma.
Nesse trecho mais estreito é onde vive Mariana Ramos, de 33 anos. Pernambucana, microempresária e mãe, ela divide a rotina entre o trabalho formal, a criação do filho e o desafio de tocar sua pequena empresa de perfumes. No esforço diário de tentar equilibrar os papeis que desempenha, ela sonha um dia viver apenas do próprio negócio.
Mariana vive na rua Campo Grande há seis anos – foi parar lá enquanto buscava um lugar que fosse próximo tanto à casa da mãe, quanto a do pai para quando precisar de apoio com o filho. Ela nunca visitou a capital de Mato Grosso do Sul, mas soube da conexão graças ao irmão Herman, que adora geografia. “O mais longe que fui foi ao Maranhão, onde ele mora agora”, conta.
Mas a vida na rua Campo Grande não é tranquila. Mariana relata a insegurança no local, marcado pela presença do tráfico de drogas, violência e tiroteios. “A gente já presenciou cenas bem feias aqui”, lamenta. Com medo pela segurança do filho, de 10 anos, ela e o marido evitam que o menino brinque fora de casa. “A gente nunca deixa ele brincar na rua, ele até estuda integral por causa disso. Eu levo, meu marido busca”, explica.
Qual o motivo das homenagens a MS?
O Jornal Midiamax procurou a Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente de Jaboatão dos Guararapes, para entender as homenagens. A pasta informou que não tem o histórico relativo a nomes de ruas do município. “Na atualidade, os nomes são propostos e oficializados via Câmara Municipal, podendo partir propostas do município. Em muitos casos, os próprios moradores deram nomes a ruas, que foram adotados oficialmente”.
A Câmara Municipal de Jaboatão dos Guararapes também foi acionada e, em resposta, a chefe da 1ª secretaria, Aparecida Lopes, informou que a casa legislativa não possui informações sobre processo de oficialização desses nomes das ruas. “Dando buscas nos arquivos, verificou-se que as nomenclaturas das ruas citadas são bastante antigas, anteriores a 1970, não constando nos arquivos o nome dos autores dos projetos na época, o que nos impossibilita infelizmente de atender a solicitação”.
Ainda assim, o Jornal Midiamax procurou pesquisadores do Instituto Histórico de Jaboatão que arriscam dizer que o batismo se deve a um vereador sul-mato-grossense, possível autor da lei que deu nome das cidades de MS às ruas do bairro, mas essa informação não foi confirmada.
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