Mais que perdas materiais, vício em apostas e jogos de azar traz sérios danos à saúde mental

Neste Setembro Amarelo, entenda como a dependência em jogos e apostas online afeta a saúde mental

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Apostas online (Joédson Alves, Agência Brasil)

O Setembro Amarelo é uma campanha nacional de prevenção ao suicídio, voltada para a conscientização sobre a importância da saúde mental. Dentro desse cenário, o vício em apostas online e jogos de azar tem se destacado como uma preocupação crescente nos últimos anos. Seja pela facilidade de acesso às plataformas ou pela ilusão de ganhos rápidos, o fato é que a ludopatia – vício em jogos – tem levado muitas pessoas a desenvolverem dependência, causando prejuízos financeiros e emocionais.

A ludopatia é uma doença oficialmente reconhecida pela OMS (Organização Mundial da Saúde) e caracterizada pela compulsão de uma pessoa por apostas ou jogos de azar. Dados do Ministério da Saúde estimam que 1,5% da população brasileira sofre de algum transtorno relacionado a esse vício. Além disso, o levantamento indica que a maioria dos pacientes com ludopatia são homens, com idades entre 30 e 50 anos.

Como identificar a ludopatia?

Psicólogo clínico, Robson Verão explica que, na maioria dos casos, o portador da ludopatia apresenta um histórico de problemas como ansiedade ou depressão. Um fator quase exclusivo é a dificuldade que as pessoas têm em lidar com frustrações geradas pelos jogos.

“Tudo na vida exige esforço e tempo para ser adquirido ou conquistado, mas os jogos de apostas (como tigrinho, cassino, aviãozinho) trazem a falsa promessa de que essas conquistas podem vir em um espaço de tempo muito curto ou sem esforço algum”.

Dessa forma, emocionalmente, a pessoa acredita que esses resultados virão, mesmo não percebendo que está perdendo. “Esses jogos afetam a vida da pessoa nos aspectos pessoais, profissionais e nos relacionamentos, e geralmente elas não percebem isso.”

Segundo o especialista, para identificar se uma pessoa está enfrentando problemas relacionados ao vício, é importante que familiares e amigos observem três aspectos principais: prejuízo emocional, prejuízo físico e prejuízo financeiro.

“Se a pessoa está enfrentando esses três tipos de prejuízos, ela realmente tem um problema e precisa de ajuda. Alguns sinais são bastante evidentes, como mudanças de comportamento, aumento da ansiedade ou depressão, afastamento das pessoas próximas, descumprimento de obrigações como trabalho, estudo, alimentação ou até mesmo descuido com a higiene pessoal”, esclarece o psicólogo.

Estágios do vício em jogos

Vício em jogos - ilustrativa
Vício em jogos – ilustrativa (Ana Laura Menegat, Midiamax)

Em alguns casos, o especialista explica que o estágio do vício pode estar tão avançado que a pessoa realmente acredita estar tomando a decisão certa, apesar de todas as evidências em contrário. Por isso, o vício costuma ser classificado em três estágios:

  • Leve: Neste estágio inicial, a psicoterapia pode ser uma opção de tratamento, ajudando a pessoa a buscar outras alternativas para lidar com as frustrações.
  • Moderado: No estágio médio, pode ser necessário o acompanhamento de um médico psiquiatra para o uso de medicação, visando estabilizar o humor da pessoa e tratar sintomas de ansiedade e depressão.
  • Grave: No terceiro estágio, pode ser necessária a internação para que a pessoa interrompa imediatamente os comportamentos de risco que possam estar afetando sua própria vida ou a de outros.

No entanto, o psicólogo ressalta que a psicoterapia é fundamental em todos os estágios, pois ajuda a pessoa a compreender as motivações conscientes e inconscientes por trás desses comportamentos que têm impacto negativo em sua vida.

“É essencial a participação da família e amigos neste momento. Busquem ajuda nos primeiros sinais, como preocupação excessiva com jogos, necessidade de apostar quantias crescentes de dinheiro, tentativas repetidas e fracassadas de parar ou reduzir as apostas, irritabilidade ou inquietação”, orienta.

Muitas vezes, as pessoas recorrem aos jogos como escape para problemas ou para aliviar sentimentos de impotência, culpa, ansiedade ou depressão. Também é comum mentir para esconder o envolvimento com o jogo e recorrer a atos ilegais para financiar o vício, por isso, a familia precisa estar atenta.

‘Quando vi, estava em um ciclo de repetição’

“Mera curiosidade”. Assim Carlos* define o que o levou a entrar no universo dos jogos de azar. Há cerca de um ano, ele iniciou nas apostas online. O vício, contudo, só foi descoberto após perder grandes quantias em dinheiro e ver a relação com sua esposa desmoronar.

“Entrei por curiosidade, mas acabei me envolvendo com o jogo. Tinha algumas dívidas e projetei quitá-las no jogo. Jogava várias vezes até obter algum resultado, mas surgia o pensamento de pagar o que devia e ganhar mais, já que estava com sorte. Eu insistia, mas perdia ponto”, relata.

Em pouco tempo, Carlos se viu imerso em um ciclo de repetição. Jogava em busca de ganhos financeiros para quitar dívidas. Quando ganhava, a ambição aumentava e a meta era ter lucros. Ao perder, contraía mais dívidas. Voltava a jogar e o ciclo se repetia.

‘Ele mentia olhando nos meus olhos’

No dia a dia, Bruna*, a então esposa, foi quem percebeu os primeiros sinais. Carlos* passava noites acordado, sempre ao celular. Afastou-se dos amigos, as conversas entre o casal diminuíram, e até nos momentos de lazer ele se isolava para jogar.

“Eu tentei entender. No início, aceitei que ele jogasse. Mas, não tinha dimensão do problema. O vício começou sem que eu percebesse. Carlos* sempre foi muito correto, por isso acreditava nas mentiras dele. Ele mentia olhando nos meus olhos, só descobri quando mexi no celular dele”, diz.

Exploração de jogos de azar é proibida no Brasil (Ilustrativa, Freepik)

Quando as dívidas saíram de controle, ele decidiu pedir dinheiro emprestado à família. No entanto, já estava viciado, e todo o dinheiro que conseguia era utilizado para novas apostas. Em menos de um ano, perdeu quase tudo que tinha, incluindo a loja que era da esposa.

“Foi virando uma bola de neve e fui envolvendo a minha esposa, minha família e o meu trabalho. No final, tinha perdido não só os bens materiais, mas minha paz, honra e meu respeito.”

Recomeço…

Sala onde ocorre as reuniões
Sala onde ocorrem as reuniões (Lethycia Anjos, Midiamax)

Foi somente após perder tudo que ele decidiu buscar ajuda, assim chegou ao J.A. (Jogadores Anônimos), grupo voltado à recuperação e ao compartilhamento de experiências de pessoas viciadas em jogos e apostas. Carlos* conta que conheceu o J.A. por meio de Bruna*. Após perceber a situação do ex-marido, ela decidiu tomar a frente e buscar ajuda. Desde então, Carlos* tem sido um frequentador assíduo das reuniões, sempre ao lado da ex-esposa.

“Faz uns 10 dias que nem abro o jogo. Bloqueei no meu celular, não penso mais nisso e nem tenho curiosidade. Desde então, com ajuda da minha família, resolvi algumas coisas e estou no caminho de nunca mais recair e resolver os problemas que criei. Quero voltar a ser… Na verdade, não quero voltar a ser a pessoa que eu era, mas me tornar uma pessoa melhor”, diz.

Apostas online reinventaram os jogos de azar 

Jogo do 'tigrinho'
Jogo do ‘tigrinho’ (Reprodução)

Jogo do bicho nos anos 80. Caça-níqueis nos anos 2000. O surgimento das apostas online revolucionou um mercado extremamente lucrativo no Brasil. Em meio às diversas possibilidades de apostas, os jogos de azar se reinventaram. Embora ainda sejam ilegais (Decreto-Lei nº 3.688/1941), o acesso agora está disponível na palma da mão. 

Os jogos de azar são considerados contravenção penal, ou seja, também passíveis de punição na esfera jurídica. Apesar disso, entre 2020 e 2024, Mato Grosso do Sul julgou 98 processos relacionados aos jogos de azar, conforme dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça).

Somente no ano passado, o número de processos aumentou 24%, coincidindo com a popularização do ‘Fortune Tiger’, principal jogo de azar online no Brasil. Conhecido como ‘jogo do tigrinho’, a plataforma simula um caça-níquel e ficou famosa por prometer ganhos exorbitantes, sendo inclusive amplamente divulgado por influencers Brasil afora.

Em setembro, MS registrou média de 1,4 suicídio por dia

Suicídios registrados em 2024
Suicídios registrados em 2024 (Divulgação, Sigo)

De janeiro a setembro deste ano, Mato Grosso do Sul registrou 107 suicídios, conforme dados do sistema Sigo Estatística. Somente entre os dias 1° e 9 deste mês ocorreram 13 casos no Estado, o que corresponde a uma média de 1,44 mortes por dia.

Os homens são as principais vítimas, representando 86 casos registrados, o que corresponde a 80% das mortes. Os dados divulgados pela Sejusp (Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública) também revelam que os adultos são o grupo mais afetado, com 49 casos, seguidos por jovens de 15 a 29 anos (36 ocorrências), idosos a partir de 60 anos (16) e adolescentes (3).

Entre os jovens de 15 a 29 anos, o suicídio foi a quarta causa de morte, atrás de acidentes de trânsito, tuberculose e violência interpessoal. Complexo que pode afetar indivíduos de diferentes origens, gêneros, culturas, classes sociais e idades.

Apesar do alto número, os casos registrados são menores se comparados ao mesmo período dos anos anteriores. Em 2023, o Estado contabilizou 124 casos até setembro. Já em 2022, Mato Grosso do Sul vivenciou uma alta no número de suicídios com 178 casos.

Como dar o primeiro passo?

Ilustrativa
Ilustrativa (Divulgação)

O primeiro passo para buscar ajuda psicológica é procurar uma UBS (Unidade Básica de Saúde) e agendar uma consulta com a Rede de Saúde Mental. Após essa avaliação inicial, o paciente é direcionado para o tratamento adequado, a depender da gravidade do caso. Podendo receber encaminhamento ao Caps (Centros de Atenção Psicossocial) ou CEM (Centro de Especialidade Médicas).

Além do CAPS e UBSs, o cidadão que precisa de ajuda psicológica em Campo Grande conta com alguns programas de apoio, que possuem diferentes tipos de atendimento. Confira abaixo alguns:

GAV (Grupo Amor Vida): presta serviço gratuito de apoio emocional a pessoas em crise através do telefone: 0800 750 5554 (ligação gratuita) ou pelo e-mail precisodeajuda@grupoamorvida.ong.

Coordenadoria de Atendimento Psicossocial da Polícia Civil (exclusivo para agentes e familiares): conta com equipe multidisciplinar de psicologia, serviço social e capelania. Fazem plantão psicológico e encaminhamentos junto aos planos de saúde. Mais informações pelo telefone (67) 99627-6178.

CVV (Centro de Valorização da Vida): oferece apoio emocional e prevenção do suicídio de forma gratuita, todos os dias, pelo telefone 188, e-mail e chat 24 horas todos os dias.

J.A.: Para participar do Jogadores Anônimos, basta comparecer ao local, situado na Rua Maracaju, n° 249, Centro de Campo Grande. As reuniões ocorrem sempre às terças e quintas-feiras, às 19h. Mais informações podem ser obtidas no site: https://jogadoresanonimos.com.br/ ou pelo telefone: (67) 98473-1321.

(*) Nomes fictícios para preservar o direito ao anonimato dos membros do J.A.

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