Mais de 1,5 mil famílias em MS aguardam na Justiça direito ao acesso à maconha medicinal

Criminalização de qualquer quantidade de droga faz uso terapêutico da maconha retornar ao centro do debate

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Cartaz sendo feito durante a Marcha da Maconha de 2023 (Ana Laura Menegat/ Midiamax)

Enquanto a CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara dos Deputados aprovou, na última quarta-feira (12), a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 45/2023 – que criminaliza o porte de qualquer quantidade de droga ou entorpecente, como a maconha – aproximadamente 1,5 mil famílias sul-mato-grossenses lutam na Justiça por acesso à cannabis sativa.

Este é o nome científico da maconha, que volta ao centro do debate sobre a sua legalidade no Brasil. Mas, e quando o porte é questão de saúde e esbarra na morosidade da Justiça?

A luta judicial que envolve mais de 1,5 mil sul-mato-grossenses por acesso à planta, que possui características terapêuticas comprovadas, está em ação coletiva movida no TRF3 (Tribunal Regional Federal da 3ª Região) pela Associação Divina Flor desde 2020.

Inicialmente, segundo o advogado que representa a entidade, Felipe Nechar, o processo abraçava apenas 300 famílias, mas o número cresceu exponencialmente.

“Em verdade, podem haver muito mais. A maioria dos casos corre em segredo de justiça, por terem dados sensíveis dos pacientes. Então, vai muito da vontade ou não de expor sua intimidade nesse sentido”, explica o profissional ao Jornal Midiamax, e reforça o Artigo 196 da Constituição Federal, que diz que “a saúde é um direito de todos e um dever do estado”.

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A Marcha da Maconha de 2023, organizada em parceria com a Divina Flor, quis ampliar o debate sobre o tema (Ana Laura Menegat/ Midiamax)

Plantio, cultivo e extração da maconha medicinal

A ação tem a finalidade de permitir o plantio, cultivo, extração, beneficiamento e distribuição de extrato em óleo de Cannabis sativa l nas dependências da Divina Flor.

“Os pacientes-associados precisam comprovar a necessidade do tratamento com a planta, a ser efetuado nos limites da sede da associação, por prazo indeterminado ou enquanto durar a necessidade de seus associados”, esclarece Nechar à reportagem.

O próprio profissional tem dois casos de sucesso na Justiça em ações individuais para permissão e acesso à maconha medicinal. “[…] Nas ações que impetrei perante o Tribunal Federal no Mato Grosso do Sul, as experiências que tive foram negativas em primeira instância e positivas perante o TRF3 nos casos individuais”, avalia Felipe.

Ação prejudicada

Porém, o advogado explica que a ação coletiva acabou prejudicada por conta do ‘Incidente de Assunção de Competência nº 16 do STJ (Superior Tribunal de Justiça)’. Isso acontece quando um órgão colegiado assume a competência que antes estava com outro órgão do mesmo tribunal.

Manifestantes pedem pela descriminalização da maconha (Ana Laura Menegat/ Midiamax)

“No momento, estou visando uma taxa de sucesso maior, buscando o respaldo de forma coletiva por meio de um Habeas Corpus. Mas, representar de forma precisa as especificidades e realidades de 1.500 famílias, se torna algo complexo”, revela ao Jornal Midiamax.

“Em razão desta suspensão, uma nuvem de insegurança paira sobre a possibilidade de continuarem se tratando ou não, perdendo sua qualidade de vida. Esse é o peso do biopoder enraizado de preconceito”, lamenta.

Os entraves legais para o cultivo da planta e a extração do óleo fazem com que a medicação seja comercializada a preços inacessíveis para muitas famílias.

“Enquanto não ocorre uma regulamentação mais eficaz, ficamos todos à mercê da importação desses produtos, a valores estrondosos. Isso coloca em jogo a saúde e a qualidade de vida do povo brasileiro”, explica Felipe.

‘Santo remédio’

Lucileia é mãe da Manuella, um criança de três anos diagnosticada com microcefalia, paralisia cerebral, epilepsia de difícil controle, tetraparesia espástica e disfagia. Manuella toma quatro medicações que atuam minimizando as crises convulsivas, mas o verdadeiro “santo remédio” para a criança era o Canabidiol, conhecido como CBD.

“Ela estava tendo muitas convulsões e o Canabidiol melhorou, mas eu não tive mais condições de comprar e a neurologista suspendeu”, conta ao Jornal Midiamax. Manuella está desde outubro de 2023 sem tomar o CBD. Quando as crises diminuíram, elas tiveram que interromper o tratamento. Entretanto, de lá para cá, a mãe relata duas convulsões e alguns momentos em que a filha quase convulsionou.

Lucileia e o esposo Edilson Antônio dos Santos adotaram Manuella e movem mundos pela pequena. “Eu dedico a minha vida toda para ela, ela requer muitos cuidados”, afirma a mãe. “Corria atrás para comprar pra ela, mas essa medicação tem um alto custo. Eu entrei já pela Defensoria, mas até agora nada. Fiz rifa, vakinha online para ver se conseguia, e a vakinha também não deu nada”, lamenta.

Tratamento com maconha medicinal

Médico clínico com experiência em tratamentos canabinoides, Luiz Felipe Abdalla explica que o Canabidiol (CBD) tem efeito terapêutico para diversos quadros de saúde e não gera dependência ou efeitos entorpecentes.

“Ele é utilizado em práticas terapêuticas para substituir o uso de medicamentos que não obtêm resultados satisfatórios ou que tenham efeitos colaterais intoleráveis no controle de algumas doenças crônicas”, explica.

Pacientes manifestam pelo direito ao tratamento com CBD (Ana Laura Menegat/ Midiamax)

A substância, assim como outras derivadas da planta Cannabis, conhecidas como fitocanabinoides, possui propriedades ansiolíticas, antidepressivas, neuroprotetoras e anti-inflamatórias, ajudando na homeostase, ou seja, no processo de equilíbrio do organismo.

“Ela é indicada, principalmente, para o tratamento de pacientes com epilepsia ou outros problemas neurológicos graves, doenças neurodegenerativas, tais como esclerose múltipla, Alzheimer, Parkinson, além de doenças psiquiátricas como ansiedade, insônia, depressão e no tratamento de dores crônicas, por ser um potente anti-inflamatório”, ressalta.

“Fez muita diferença na vida dela”

Luna é mãe de Alice, de 13 anos, diagnosticada com epilepsia e também crises convulsivas focais, que afetam apenas um lado do corpo de Alice. A menina teve sua primeira crise convulsiva aos oito anos de idade. “Nas crises fracas ela sente um leve formigamento, e nas crises fortes ela perde todo o controle do lado direito do corpo, ela não consegue engolir, ela se repuxa inteira”, explica Luna ao Jornal Midiamax.

Antes da filha fazer tratamento com Canabidiol, Luna sentia muito medo de Alice ter convulsões durante a noite. “Ela dormia no quarto dela. Mas eu tinha muito receio dela ter isso no meio da noite e comecei a botar o colchãozinho dela no meu quarto. É muito assustador você ver sua filha tendo uma reação daquela e você não poder fazer absolutamente nada só esperar passar”, desabafa a mãe.

A primeira vez que Alice convulsionou, Luna pensou que a filha estava engasgando. “Eu já entrei em desespero, estava dando tapa nas costas tentando desengasgar ela, porque eu achei que ela não estava conseguindo respirar. Quando passou ela ficou meio desorientada, sem conseguir falar e eu já enfiei ela no carro pra levar pro hospital”, explica Luna.

Ajuda

Após o diagnóstico, Alice começou a ser medicada, mas a mãe sentia que a medicação tratava apenas os sintomas da filha. “Eu não estava vendo algumas melhoras nela que eu esperava que ela tivesse. As crises diminuíram, mas ainda aconteciam e o médico falava para esperar. Meu coração de mãe não ficou tranquilo”, relembra.

Nesse momento, ela conheceu a Associação Divina Flor e descobriu a fórmula para cessar as crises convulsivas. Bastava colocar algumas gotas do óleo de Canabidiol na boca da filha que ela melhoraria.

“Comecei o tratamento, eis que a Alice teve uma crise à noite e eu lembrei do que a médica me falou. Pinguei as gotinhas na boca dela e foi como mágica, a crise sessou muito rápida. Aí eu abracei de verdade esse tratamento. Com o tempo, também melhorou a ansiedade e a concentração da Alice. Fez muita diferença na vida dela”, relata Luna.

Para muitas pessoas, a planta é cura (Ana Laura Menegat/ Midiamax)

Proibição

Na última quarta-feira (12), a PEC 45/2023 foi aprovada na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara dos Deputados. Agora, será analisada em comissão especial da Câmara, que ainda deve ser instalada. Se aprovada na comissão, a PEC segue para análise do plenário. Caso obtenha os votos necessários, nem é preciso passar por sanção presidencial, já que emendas à Constituição são automaticamente aprovadas por um procedimento chamado de promulgação.

Antes disso, a PEC já havia sido aprovada em dois turnos no Senado.

Em publicação no Instagram, a Associação Divina Flor defende que: “As políticas de drogas precisam ser pautadas em CIÊNCIA, não em crenças ou moralismo. O Brasil vive uma guerra interna e sanguinária contra o tráfico de drogas e quem perde é sempre a mesma parcela da população: os usuários negros e os moradores de periferias”.

“O proibicionismo é uma política nefasta que não foi construída de um dia para o outro, nesse sentido, a única forma de superar o obscurantismo e o preconceito é trazer a ciência para o cerne da questão”, afirma Felipe Nechar.

Mariane Lopes, responsável pela comunicação da Divina Flor, ressalta que “a maconha que a galera fuma não é a mesma do medicamento, o cultivo é outro, o intuito é outro. É dentro da lei, com base na ciência e em estudos”. Mariane não tem medo de lutar pelo que acredita. “Eu propago a voz da medicina canábica, porque é qualidade de vida”, garante.

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