Equipe federal a pede que ‘clínica terapêutica’ suspeita de agressão e cárcere em Campo Grande seja fechada

Pacientes relataram que comida parecia ‘lavagem’, que eram colocados em ‘quarto do castigo’ e trabalhavam sem receber

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Equipe recomenda fechamento do estabelecimento (Divulgação, MNCPT)

O Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura publicou nesta quarta-feira (6) o relatório com as situações graves vividas pelos internos de ‘clínica terapêutica’ Filhos de Maria, em Campo Grande, alvo de ação no mês passado.

A equipe federal pede que a MPMS (Ministério Público de Mato Grosso do Sul), TJMS (Tribunal de Justiça de MS), Defensoria Pública peçam o fechamento do local e a Vigilância Sanitária de Campo Grande interdite o estabelecimento.

O relatório ainda traz recomendações para a Polícia Civil, Ministério Público do Trabalho da 24ª Região e Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego, com base nos relatos dos pacientes e na situação grave que se encontrava a clínica.

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Beliche remendada (Divulgação, MNCPT)

Estrutura decadente

A estrutura da clínica tem um prédio principal, que abriga a portaria e a administração, e por um prédio secundário que contém os alojamentos e a enfermaria. Além disso, a clínica conta com uma academia, quadra, horta, piscina e área de manejo de frutas. A instituição dispõe de três veículos para transporte.

A equipe constatou que os alojamentos tinham condições insalubres e degradantes. Os relatos detalham muita sujeira, além de um forte mau cheiro no momento da inspeção.

Os ambientes não tem iluminação adequada e careciam de ventilação. Havia colchões e lençóis rasgados nas camas, em péssimas condições de conservação. Uma das camas estava suja de urina. Além disso, camas e beliches tinham remendos e a quantidade de pessoas num mesmo quarto era incompatível com o espaço.

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Cama urinada (Divulgação, MNCPT)

Uma escada que leva ao piso superior não tinha segurança, onde vários internos se acidentaram, pois estavam sob efeito de medicamentos. Os pertences deles eram guardados em uma estante aberta, mas celulares e documentos confiscados pela equipe da clínica.

Há relatos também que o quarto do andar superior é usado como castigo e isolamento, onde as pessoas ficavam trancadas até três meses. Para isso, a porta desse quarto não possuía maçaneta e tinha uma tetra chave que trancava por fora.

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Estante com pertences dos internos (Divulgação, MNCPT)

Pacientes eram ameaçados e agredidos

A rotina era de violência física e psicológica dentro da instituição. Caso se recusassem a fazer algo, como tomar remédios, recebiam ameaças. O documento cita que no dia da inspeção, uma pessoa mostrou um punho inchado e hematomas no braço. Segundo ele, tinha sofrido agressões no dia anterior, quando se recusou a tomar os remédios.

Além disso, o interno ainda afirmou que já não suportava mais ingerir medicamentos para dormir e, ao ser questionado sobre a medicação administrada, declarou que todos os internos eram obrigados a tomar.

Ele também relatou graves ameaças, inclusive de morte, por parte de pessoas ligada à direção da clínica. Segundo paciente, esta pessoa o ameaçou com um revólver calibre 38.

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Ferimentos (Divulgação, MNCPT)

Além disso, afirmou que presenciou essa pessoa agredindo vários internos, e que ele exercia total controle e intimidação, levando os pacientes frequentemente a um local próximo ao chiqueiro para espancá-los.

As pessoas internadas também relataram um caso específico de um interno que, segundo eles, chegou à clínica andando normalmente, mas, após supostas agressões, passou a viver em condições degradantes, necessitando utilizar fraldas e cadeiras de rodas com dificuldades para se comunicar verbalmente.

Segundo os relatos, as famílias das pessoas idosas usavam o serviço da clínica como uma espécie de Instituição de Longa Permanência para Pessoas Idosas, mesmo para pessoas sem qualquer demanda de saúde associada ao uso de álcool e outras drogas. Como resultado, os idosos acabavam submetidos a uma série de tratamentos desumanos e degradantes.

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Ferimentos (Divulgação, MNCPT)

Situação de escravidão

Os pacientes que faziam quase tudo na clínica. Dentre as atribuições estavam as faxinas, manutenção do local, cozinhar e um ‘interno pastor’ fazia a adoração religiosa na capela pela manhã. Um grupo de pacientes também ficava responsável pela internação involuntária e pela captura dos internos que tentavam fugir.

Os pacientes precisavam obrigatoriamente tomar medicamentos antes de dormir. Como resultado, muitas vezes urinavam e defecavam, ficando naquela situação até a manhã seguinte. Inclusive, os próprios internos ficavam responsáveis por limpar uns aos outros.

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Cronograma de trabalho dos internos (Divulgação, MNCPT)

Regalias

Um dos cozinheiros da clínica afirmou que trabalhava no local em dias alternados cerca de 17h seguidas (das 5h às 22h). Entretanto, relatou que não recebia nenhum tipo de remuneração e nem descontavam nada nos valores pagos pela família.

Entretanto, caso recusem trabalhar, os internos recebiam punições. Dentre elas, estavam perseguições ou perda de algumas poucas regalias ofertadas aos que faziam algum tipo de trabalho na clínica.

Questionado sobre quais os tipos de benefícios ofertados em troca da mão de obra, ele respondeu: “ficar mais de boa”, “assistir TV ou ficar no pátio uma hora a mais antes de dormir”, “não lavar a louça nos dias de folga”, “poder usar o dinheiro que a família envia para gastar na cantina para comprar os itens que eles quisessem”.

Porém, em caso de recusa de trabalho, alguns itens ficam limitados, como, por exemplo, a aquisição de carteiras de cigarro ou “comer mais” que os demais.

Refeições insuficientes

A equipe ainda ouviu muitos relatos sobre a quantidade insuficiente de comida e a presença de alimentos estragados, como frutas e verduras com bichos. Inclusive, a clínica descartou uma parte dos hortifrútis deteriorados assim que a equipe federal chegou ao local.

Havia também uma monotonia alimentar, com o mesmo cardápio sendo servido todos os dias. A qualidade da comida é considerada péssima, sendo definida pelos internos como “lavagem”.

Segundo os pacientes, a alimentação tinha uma alta proporção de carboidratos e pouca proteína, sendo que muitas vezes a refeição consiste apenas em “pucheiro”, molho de carne ou um excesso de salsicha.

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Alimentos foram encharcados com água suja (Divulgação, MNCPT)

Um dos internos, que se identificou como um dos seis cozinheiros que trabalhavam sem remuneração no local, relatou que alguns dias antes da visita, a despensa de alimentos acabou alagada por água suja do banheiro localizado no piso superior.

Segundo ele, pacotes de arroz, feijão, macarrão e café ficaram encharcados, apresentando aspecto de podres. O dono da clínica não permitiu o descarte desses alimentos e ordenou o cozimento da forma que estavam, resultando em vários dias em que as pessoas internadas consumiram esses alimentos, possivelmente, contaminados.

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(Divulgação, MNCPT)

Venda irregular de cigarro

Dentro da clínica havia uma cantina para venda de produtos, como doces e biscoitos, e também de cigarro. Um dos internos informou que o local vendia cigarro da marca FOX.

De acordo com a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), a marca integra as 90 marcas de cigarro identificadas e comercializadas de forma irregular no país. Ou seja, sendo um produto não registrado este não pode ser comercializado e importado.

Além disso, os internos só podem fumar os cigarros vendidos na cantina. Então, se não tiverem dinheiro, ficam sem fumar compulsoriamente, pois não é permitido que os familiares os disponibilizem. A equipe de inspeção identificou muitos internos fumando folhas de caderno como alternativa ao consumo do tabaco.

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Pacientes faziam cigarro com folhas de papel (Divulgação, MNCPT)

Internação forçada

A clínica também oferta o serviço de internação compulsória. Vale ressaltar que esse tipo de internação pode ocorrer apenas a pedido do médico e em ambiente hospitalar – não em clínicas terapêuticas. Além disso, o MPMS e a Defensoria devem ser notificados no prazo de 72 horas sobre a internação.

O GAP (Grupo de Apoio aos Pacientes) tinha como finalidade atuar nessas internações compulsórias. De acordo com relatos, a abordagem inicial acontece com diálogo, mas caso a pessoa não queira ir, é violentamente forçada a ir com a equipe, com imobilização física, utilizando-se de métodos violentos, como, por exemplo, “mata-leão”, aplicação de medicação de uso controlado por via oral ou intramuscular.

As pessoas relataram que, ao chegar na clínica, passavam por um “protocolo”, que os deixava dormindo por cerca de três dias. Entretanto, eram são forçadas a tomar a série de medicamentos de efeito psicotrópico e, após dopados, assinam diversos documentos sem plena consciência.

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Pacientes eram presos com lacre e se feriam ao serem ‘resgatados’ (Divulgação, MNCPT)

Pacientes dopados

Na clínica, relataram que todos são obrigados a tomar remédios controlados. Também relataram que dão choques na pessoa durante o resgate. Uma pessoa internada relatou que foi levado à clínica involuntariamente há cerca de 10 meses. Ele afirmou que foi abordado em sua casa por quatro pessoas não identificadas. Entretanto, posteriormente descobriu serem internos da clínica.

Durante o processo de resgate, afirma ter sido hipermedicado e ter acordado apenas três dias depois. Ele relata que foi obrigado a assinar o contrato e que permaneceu em isolamento por sete dias no alojamento de convivência. Durante a entrevista, ele relatou ter sido contido tanto com uma braçadeira de nylon e faixas.

Além disso, foi informado que, caso ocorresse a rescisão do contrato, teria que pagar à clínica uma multa. Também mencionou ter sofrido castigos físicos e punições, como a restrição de alimentação, a proibição do uso da cantina, a suspensão das visitas e a retirada das ligações para os familiares.

Outro residente, internado há três meses na clínica, relatou que foi submetido a um “resgate” involuntário. Ele conta que estava em casa quando foi imobilizado e recebeu medicação à força. Além disso, ficou 30 dias amarrado em um quarto fechado, conhecido como “coletivo”.

O grupo também atuava na captura dos internos que tentavam fugir. Os relatos são que, ao serem recapturados, eram obrigados a ingerir grande quantidade de medicação, incluindo um comprimido conhecido como “abobrão” que os deixavam sedados por até três dias dormindo.

Outro fator é que a clínica não tem enfermeira no período noturno e os medicamentos de uso controlado são administrados pelos próprios internos monitores, que também realizam imobilizações e contenções químicas.

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Anúncio da internação compulsória (Divulgação, MNCPT)

Pacientes ficavam para não pagar multa

Muitas pessoas relataram permanecer ali contra sua vontade por medo de ser aplicada a multa prevista no contrato, que é equivalente ao valor de uma parcela, mais o proporcional das diárias (se houver), acrescido da incidência de honorários advocatícios à razão de 20% sobre o valor devido, conforme previsão contratual.

Um interno contou que optou por uma internação voluntária de três meses. No entanto, ao solicitar o desligamento da clínica, disse que foi ameaçado com a cobrança de uma multa. Ele afirmou ter pago R$ 1,4 mil no ato da internação e R$ 2,4 mil mensais pelo tratamento.

Outra pessoa também informou que já estava de alta, contudo não havia sido “liberado” porque tinha que cumprir o lapso de seis meses de estadia. Ou seja, se saísse, incidiria sobre a sua família a multa por descumprimento do contrato com a instituição.

O documento de 47 páginas relata a rotina dos internos na clínica Filhos de Maria e pode ser visto na íntegra clicando neste link.

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