Uma das primeiras memórias que me vem à cabeça quando penso em uma instituição que estudei na infância, é de quando um garoto, uns 5 anos mais velho que eu – na época eu tinha entre 6 e 7 – me pressionou com seu corpo contra a parede, sem me dar qualquer brecha para escapar.

As outras crianças que brincavam de basquete com a gente minutos antes tinham ido cumprir com alguma demanda passada pelos professores, que não me lembro qual era e, ali, sozinha, sem nem entender o que estava acontecendo, só conseguia sentir medo.

Pedi para ele me soltar, o que ele fez alguns longos segundos depois. Ao se distanciar, ele fez um gesto obsceno, disse algo tão esdrúxulo quanto, e saiu dando risada.

Com vergonha, contei para uma professora, uns dois dias depois, o que o garoto tinha feito. Ele já era conhecido da coordenação por seu mau comportamento. Ela me olhou e disse que não era nada, que aquele menino era assim mesmo e que já nem adiantava mais levar ele à coordenação, porque “ele não tinha jeito”.

Talvez, anterior a este episódio, eu até tenha passado por outra situação de assédio. Mas, como muito nova que era, não me lembro. Então, esse dia ficou marcado como o primeiro dos tantos infelizes que viriam. Hoje, vejo que aquela foi provavelmente a primeira vez que a ‘vida’ me empurrou à primeira lição de sobrevivência para quem nasce mulher em uma sociedade machista: os erros de meninos e homens sempre serão justificados com o fato de serem do sexo masculino. Enquanto isso, meninas são ensinadas a relevar tudo o que as magoam, diminuem ou restringem suas próprias liberdades, afinal, “mulheres são mais maduras que os homens”.

Com a liberdade de ser escrita em primeira pessoa, esta é a 5ª reportagem especial de uma série de matérias em alusão ao Dia Internacional da Mulher, celebrado nesta sexta-feira (8). Hoje, trazemos o questionamento: meninas amadurecem mais rápido ou são forçadas a isso?

Amadurecimento ou adultização infantil?

Que atire a primeira pedra a menina que nunca ganhou uma boneca, utensílios de cozinha ou então uma minipassadeira de roupa na infância, enquanto o primo ou os irmãos eram instigados a praticar diferentes esportes, aprender sobre carros ou, então, curtir alguns jogos de videogame. Essa realidade já é figurinha repetida.

Enquanto os meninos têm autorização para passar a tarde pós-aula jogando bola com os amigos na pracinha do bairro, bom é que a menina esteja em casa ajudando com os afazeres. Além de dividir as tarefas domésticas com a mãe – que diariamente sente a exaustão da jornada interminável de trabalho – ela aprende a ser responsável, porque dali uns anos precisará administrar a casa e cuidar de seu marido e filhos, como pede o manual.

Sobre o assunto, conversamos com Estela Márcia Rondia Scandola, professora e pesquisadora em gênero e geração com ênfase em diversidades, democracia e participação nas políticas sociais; crianças e adolescentes e povos indígenas; e investigações quali-quantitativas em saúde. A especialista aponta que o que socialmente é esperado de meninos e meninas é estabelecido antes mesmo do processo educacional, antes até do nascimento da criança.

Quando enfim ocorre o processo de educação, na maioria das vezes, as mulheres são as responsáveis por isso, já que socialmente ela é pautada pelo que é ‘certo e errado’. Isso muda conforme a comunidade em que o núcleo familiar está inserido, igreja que frequenta, bairro em que mora, as festas de que participa e, posteriormente, a escola em que estuda.

“A educação sexista na família é uma reprodução das condições em que o machismo opera em todas as esferas da nossa vida. Então, falar para as meninas fecharem as pernas e falar para os meninos, ‘mostra o que você tem’, por exemplo, é uma forma de demarcar o que vai ser das meninas e o que vai ser dos meninos”, pontua.

Ou seja, ao invés de ensinarmos meninas e meninos de forma igualitária os comportamentos e atitudes necessários para uma convivência social respeitosa, reforçamos o pensamento de que meninos podem tudo, enquanto meninas devem ser polidas e respeitáveis – embora nem sempre respeitadas.

E é, então, que esbarramos na adultização infantil, muitas vezes confundida com o amadurecimento. O que muitas pessoas admiram e apontam como ‘maduro e responsável’ nas meninas é, na verdade, a aceleração das fases da vida durante a infância e, depois, na adolescência. Ou seja, é estimular a criança, de forma inadequada, a entrar no mundo adulto antes mesmo de estar com o desenvolvimento físico e psicológico completo.

A resposta, portanto, é muito simples: meninas não amadurecem mais cedo que os meninos. Somos cobradas e direcionadas desde crianças a criar responsabilidades mais que os homens.

Impacto da educação respeitosa na infância

A jornalista Nathaly Campos, 35 anos, conta que se tornou uma mulher reflexo da criação que recebeu de seus pais na infância. Foi devido à base educacional que, com muito esforço, eles lhe proporcionaram, que ela conquistou seu espaço sem que ninguém a limitasse ou a subestimasse.

“Tive o privilégio de ter sido criada em uma família com mulheres muito fortes: minha avó, minha mãe, minhas tias, minha irmã. Cada uma em sua geração, com influências sociais distintas, mas firmes em suas posições, influentes e respeitadas no núcleo familiar”, pontua.

“Em casa, eu e a ‘mana‘ sempre ouvimos que tínhamos que estudar ‘para sermos independentes de pai, mãe, marido’. A mulher que sou hoje vê essa fala como um ato de amor e uma forma de proteção, para que as minhas escolhas nunca fossem condicionadas pela falta de opção – ocasionada, muitas vezes, pela dependência – especialmente, a financeira”, acrescenta.

Já em relação aos afazeres domésticos, a jornalista explica que ela e sua irmã foram ensinadas a serem adultas funcionais, capazes de desenvolver qualquer função em casa, seja um cuidado com a casa, seja um reparo em algum móvel, por exemplo.

“Lógico que ganhei bonecas, que brinquei de comidinhas, que fui incentivada a atos de serviço e cuidado. Mas, também, ajudava o meu pai a montar e a desmontar coisas, a parafusar e a desparafusar. A carregar o que fosse preciso e necessário”, conta.

“Tenho direito de escolha, busco ter voz nos espaços que ocupo e não me sinto obrigada a permanecer em qualquer lugar ou relação”.

Reflexo na vida adulta

Ao chegar na fase adulta, a mulher começa a corrida contra o tempo, em uma ânsia de conseguir concluir todo o checklist social: formação acadêmica, emprego bom, casamento, compra de uma casa e filhos.

Imersa e, na maioria das vezes, sozinha nesse cenário, os dias se tornam, no mínimo, exaustivos. Isso porque aprendemos que reclamar é sinônimo de ingratidão ou falta de amor pela família. Precisamos dar conta de tudo e todos! Se fugimos disso, somos questionadas: “Se as coisas sempre foram assim, por que mudar?”

“Muitas mulheres, quando começam a cuidar dos filhos sozinhas, começam a ser elogiadas pela sociedade como guerreiras, lutadoras, que fazem tudo pelo filho. Essa também é, na sociedade, uma forma de justificativa do machismo, porque reforça nas meninas que é bonito isso”, volta a explicar a pesquisadora Estela Scandola.

Dessa maneira, portanto, a mulher precisa ser capaz de fazer muitas coisas sozinhas para não passar fragilidade. Mas, no fundo, sofre com a sensação de incapacidade, com a sensação de que poderia ser melhor.

Estela rememora o dia em que, ao abordar o assunto em sala de aula, um aluno discordou e disparou: “Não entendo o que você quer dizer. Minha mãe criou sete filhos sozinha, sendo lavadeira e passadeira, e ela é uma mulher honrada”. Surpresa com o apontamento, Estela esclareceu que não estava dizendo que ela não era uma mulher honrada, mas que a ela foram negadas todas as outras condições de ser mulher. Seu aluno não conseguiu compreender.

“É muito comum a ideia de que a sociedade precisa dessas mulheres guerreiras. As mulheres são forjadas a serem fortes. Ouvimos: ‘de agora em diante, você não vai ser frágil, você vai ser forte’ e isso mantém as mulheres numa relação extrema de violência, uma violência que impõe a condição de nunca poder dizer que está sobrecarregada porque ela se torna heroína, mulher forte, guerreira”, explica a pesquisadora.

E assim, restam os questionamentos. Qual versão dela mesma, a mulher, está deixando de viver para cuidar do outro? Quantos passeios, viagens, sonhos, bate-papo com amigas ela tem deixado de lado porque a rotina da casa consome 100% do seu tempo? Quanto do seu potencial segue escondido atrás de um sorriso cansado de quem foi ensinada que pode e deve dar conta de tudo?

Onde estão essas respostas?

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