#CG125: Campo Grande chega aos 125 anos com mobilidade urbana e meio ambiente como grandes desafios

Segundo IBGE, Campo Grande cresceu menos de 2% ao ano na última década. Se a população não cresceu tanto assim nos últimos anos, o que explica alguns dos problemas urbanos atuais da capital? 

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Trânsito de Campo Grande. (Foto: Ana Laura Menegat, Midiamax)

“Campo Grande ainda não é capital, não se comporta como capital. Nós ainda não tivemos esse amadurecimento econômico”, define a arquiteta e urbanista Regina Maura Lopes Couto Cortez. 

Com 42 anos de atividade profissional e sendo especialista em Direito Ambiental, ex-Diretora de Trânsito da Agetran (Agência Municipal de Transporte e Trânsito) e ex-Diretora Técnica da Planurb (Agência Municipal de Meio Ambiente e Planejamento Urbano), Regina é categórica:

“Campo Grande não se comporta como capital do estado e não está crescendo como parece.”

Com seus aproximadamente 900 mil habitantes, conforme o Censo 2022, o avanço populacional da cidade ocorre de maneira uniforme, estável, crescendo anualmente entre 1% e 2%, em média, nos últimos 10 anos. Como fica claro, portanto, na quinta reportagem especial sobre os 125 anos de Campo Grande – celebrados na próxima segunda-feira (26) -, o assunto é crescimento urbano.

Cidade cresce: não como a gente pensa, mas dentro da normalidade

A atual velocidade do crescimento de Campo Grande é uma realidade muito diferente de 40 anos atrás, logo após tornar-se a capital de Mato Grosso do Sul. Na época, o índice ficava entre 7% e 8% ao ano. “Aquilo era crescimento real, mas era natural para aquele momento, de novas oportunidades, de migração”, contextualiza.

A arquiteta e urbanista Regina Maura Lopes Couto Cortez (Foto: Ana Laura Menegat, Midiamax).

Hoje o crescimento é muito menor e pode até parecer lento. Porém, a urbanista explica que é o esperado para a realidade do município, representando um equilíbrio e até mesmo sustentabilidade para o desenvolvimento da cidade. 

Contudo, se não há “boom” no adensamento populacional, se não estamos crescendo tanto assim, o que explica alguns dos mais notados problemas urbanos da capital? 

A resposta pode estar no fato de que esses problemas não dizem respeito diretamente ao aumento do número de moradores, mas a outras realidades. Alagamentos e enchentes, trânsito caótico nos horários de pico, falta de áreas de lazer ou concentração de parques na região norte da cidade: tudo isso tem explicação. 

Trânsito de cidade grande

Se a população não está crescendo tanto assim, o que, então, explica os problemas na mobilidade urbana? Por que o trânsito da cidade parece lotado? 

Para ela, essa realidade tem relação com o modelo de cidade adotado e a vinculação é simples: “nosso modelo de cidade foi feito para o transporte individual”, afirma.

Trânsito de Campo Grande (Arquivo Midiamax).

Longe de ser um problema novo, o número crescente de acidentes de trânsito, o fluxo “travado” em horários de pico, as ruas constantemente esburacadas e os “buzinaços” em cruzamentos – que acabam fechados no abre e fecha dos semáforos: tudo isso está ligado a desafios antigos de mobilidade, e o destaque é o aumento no número de veículos circulando.

Nos últimos 15 anos, o número de  carros, motos, caminhonetes, ônibus, entre outros, transitando por Campo Grande dobrou. Em 2008, eram 332.436 veículos. Um década e meia depois, em 2023, esse número saltou para 685.645, segundo o levantamento mais recente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

“Então o que a gente faz? A gente amplia a rua, amplia a rua, amplia a rua, mas essa conta não vai fechar nunca, não enquanto o número de automóveis continuar crescendo”, aponta a especialista, que também fez carreira como professora universitária.

Sendo uma cidade “espalhada” e que não investe adequadamente em transporte público, o resultado é desastroso: um tráfego cada vez mais ruim e, desse problema, vários outros se avolumam, como:

O fundador da Abraspe (Associação Brasileira de Pedestres), Eduardo Daros, propõe uma reflexão profunda sobre essa realidade: 

“Nós nascemos pedestres, essa é a nossa condição primária e nosso direito como cidadão. Alguns de nós, em alguns momentos, temos o privilégio de estarmos motoristas. As nossas cidades, quando o prioriza transporte individual, estão sendo construídas para o privilégio e não para o direito.” (Eduardo Daros)

Regina defende o pensamento de Daros justamente porque, para ela, a população deveria ter consciência de que, ao longo do tempo, as diversas gestões da Capital de MS focaram em um modelo que não prioriza o direito. 

ponte
Pedestres em Campo Grande (Nathalia Alcântara, Arquivo – Midiamax).

“Campo Grande é construída para o privilégio, mas as cidades precisam ser pensadas para as pessoas. E quando a gente fala em cidade para as pessoas, a gente está falando em qualidade ambiental, em cultura, equidade social, todos os outros direitos humanos”, observa a especialista.

Por isso, ela completa: “o adensamento populacional não é a nossa mazela. Nosso problema não é o crescimento da cidade. Nossa mazela é essa mobilidade.” 

Uma alternativa

É claro que um dos caminhos para a gestão desses desafios é a “boa e velha” promessa recorrente de campanha: investimento em transporte coletivo.

“Transporte coletivo de qualidade não é aquele que transporta muito bem a ‘classe baixa’. Transporte público de qualidade é aquele que, você que tem carro, deixa seu carro em casa e vai para o trabalho de ônibus. É aquele que transporta todo mundo, que é mais inteligente. Mas a gente não investe nisso”, define a urbanista.

“Mas a gente vai chegar lá. A gente vai aprender a lidar. Daqui um tempo, possivelmente, vamos fazer igual a São Paulo, ter que instituir rodízio de placas, controlar horários de tráfego, etc.”, constata.

As 7 regiões 

Outro caminho para contribuir com a fluidez do trânsito e o ordenamento da cidade já tentou ser colocado em prática. No papel, ele existe. Estamos falando do Plano Diretor de 1995, que organizou a cidade em 7 regiões urbanas.

Fonte: Sisgran – Campo Grande.

“Qual era a ideia naquele momento? Primeiro: que o cidadão se identificasse com seu lugar, ou seja, que a criação das regiões gerasse reconhecimento no cidadão acerca de sua pré-existência. É a pré-existência ambiental, é o território me dizendo quem sou. Eu me identificar com meu lugar”, explica a professora.

“A partir desse momento em que me identifico com meu lugar, vou fazer levantamentos e procurar as peculiaridades desse meu lugar, principalmente a partir de políticas públicas, e essas peculiaridades vão me dar as dicas das potencialidades desse lugar para que eu ocupe espaços”, amplia a urbanista.

Regina, que também já compôs a equipe do IHGMS (Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul), detalha que, com a criação das 7 regiões urbanas, o objetivo era “‘engordar a cidade’, e não espalhar mais. A ideia era ocupar a cidade, como cada região sendo um ‘pequeno Centro’, reconhecer que a cidade é policentrada e que, a partir disso, fossem criadas oportunidades de emprego e de renda nas diferentes regiões.”

Regina Maura Lopes Couto Cortez (Foto: Ana Laura Menegat, Midiamax).

Isso possibilitaria que as pessoas que moram em determinada região pudessem trabalhar ali mesmo, ir a pé ou de bicicleta para o trabalho, pudessem empreender no seu próprio bairro, fazendo desenvolver e aflorar as características econômicas e culturais de cada área da capital.

“Cada região dessa, no Plano Diretor, seria objeto de um plano local, de um plano que iria detectar essas potencialidades. Mas as regiões se perderam no tempo, são só para papel. O tempo foi passando e elas não cumpriram o seu propósito”, compartilha Regina.

“Quando você nomeia essas regiões com o nome de cada bacia existente é porque você está querendo dizer alguma coisa. A ideia que estava lá era que houvesse planos específicos para essas regiões, para ‘engordar a cidade’, preencher espaços e criar oportunidades”, reforça.

Estratégia urbana evitaria grandes deslocamentos, centralização e geraria até renda

Esse desenvolvimento local, por consequência, poderia diminuir desigualdades sociais entre as diferentes regiões da cidade, e evitaria a centralização de serviços, oportunidades e até mesmo renda em algumas regiões, em detrimento de outras. 

Seriam menos pessoas atravessando a cidade para trabalhar e mais pessoas trabalhando perto de casa, já que a cidade seria realmente policentrada, ou seja, teria vários centros urbanos ou comerciais em vez de um único centro dominante.

“É nesse contexto que poderia ser que surgisse uma especificidade urbana que atraísse pessoas para uma ou outra região, e aí talvez, por causa disso, fosse necessário expandir o perímetro urbano do município”, completa.

Sendo uma cidade policentrada, Campo Grande também seria ainda mais verde

A capital é uma das mais arborizadas do país e, em 2022, somava quase 230 mil árvores, o que equivalia a uma árvore para cada quatro habitantes, segundo a Semadur (Secretaria Municipal do Meio Ambiente e Gestão Urbana).

Considerada referência nacional em arborização urbana, eleita por cinco vezes uma Tree City of the World (Cidade Árvore do Mundo), o município também é uma potência aquífera. Contudo, será que toda essa riqueza é realmente percebida – e mais – usufruída pela população? 

Campo Grande tem mais de 13 rios e córregos que nascem na área urbana. “E aí, a água faz parte da nossa realidade?”, questiona. Nóstemos esse tanto de água e ela não faz parte da nossa paisagem. É uma riqueza paisagística, uma riqueza ambiental, e o que fazemos com ela?”, classifica a urbanista.

Em azul, rios e córregos que cortam a área urbana da cidade. Fonte: Sisgran – Campo Grande.

Nesse contexto, ela lembra que diversas nascentes já desapareceram da cidade e que vários córregos estão assoreados, como o Jornal Midiamax já mostrou inúmeras vezes.

É o caso da nascente do córrego Joaquim Português, que faz parte do Parque Estadual do Prosa e que ajuda a formar o córrego de mesmo nome. Importante curso d’água que passa por Campo Grande, passou por ação de desassoreamento em 2021.

Outro clássico é a situação do Rio Anhanduí. As erosões são problemas antigos e constantes, e que aumentam a cada temporada de chuva. Transitar pela Avenida Ernesto Geisel, por exemplo, tornou-se um desafio em meio a buracos e trechos do asfalto cedendo. 

“No final da década de 1990, o trecho a partir do Horto Florestal até o fim da Ernesto Geisel foi objeto de um concurso nacional de um parque linear. ‘Ah, mas já tentaram tanta coisa’ [para solucionar essa situação]’, dizem. Mas tentar não é político. Tem que procurar gente que sabe, tem que ter vontade”, defende Regina.

Entre a briga para aumentar a área de zona urbana da capital e ocupar os espaços da cidade, torna-se cada vez mais comum a construção de empreendimentos sobre áreas regadas por mananciais. 

As áreas vermelhas no mapa acima referem-se a nascentes localizadas em Campo Grande, ou seja, pontos de lençol freático aflorante. Nesses pontos, a arquiteta explica que, o ideal, é não ocupá-los. “Ou ocupe com parcimônia, com estratégia”, diz.

Em um dos pontos vermelhos é possível notar uma região de área de nascente onde está localizada a Lagoa Itatiaia, próximo ao bairro Tiradentes. Também há pontos onde foram construídos condomínios de luxo.

“Em alguns locais, esses pontos de nascente já nem existem mais, porque essas áreas foram ocupadas e aterradas, a água foi drenada e [o espaço] já não existe dessa forma”, explica Regina.

“Só que a água cobra a conta. Geralmente, esses lugares que foram drenados, são hoje os lugares onde ocorrem enchentes na cidade. A água tem memória”, define.  

Como funciona a ‘vida’ dessas águas

Nas bordas e beiras desses fundos de vales por onde correm cursos d’água, vários edifícios estão sendo construídos em Campo Grande. 

“Quando vai ser feito o subsolo desses prédios para estacionamento, se ele está nessa área de fundo de vale, de beira de córrego, e que tem lençol freático mais aflorante, na hora de fazer esse subsolo o construtor vai encontrar essa água”, esclarece a professora.

“Não estou dizendo que isso não possa ser feito. Pode, sim. Mas esse empreendimento vai precisar ficar jogando essa água fora, que é uma água limpa. Essa água vai ser lançada com maior velocidade no corpo d’água e, aí, quando chover, não vai ter vazão. A terra não vai dar conta de absorver a vazão, e o córrego vai transbordar”, explica.

Devido a tudo isso, e a outros fatores, também, é que Campo Grande tem convivido com enchentes e alagamentos. Portanto, a população precisa ter consciência dessa realidade e dinâmica para tomar decisões de forma consciente.

“Se fosse pra pedir algum presente de aniversário nesses 125 anos para os nossos gestores, seria: cuidem de nossas águas, pois sabemos do que elas são capazes quando se revoltam”.

“Então, o que eu acho? Acho que nós temos que pensar em novos paradigmas, que temos que considerar outra forma de pensar na sociedade e na ocupação da cidade. Se conhecermos e entendermos o mapa da cidade, a gente consegue perceber facilmente as potencialidades”, propõe a especialista.

“Eu acho que as utopias são faróis. Eu não acho que utopias são quimeras jamais alcançadas. Acredito que elas são faróis para definir metas”.

Potencial desperdiçado

Entre as potencialidades que poderiam ser metas estão justamente as águas que cortam nosso território. Campo Grande poderia ter um imenso e robusto sistema de parques e áreas verdes aproveitando as bacias do municípios e as nascentes de nossos córregos.

Em azul, rios e córregos que cortam a cidade. Em verde mais forte, localização dos parques da cidade. Fonte: Sisgran – Campo Grande.

Apesar de toda a arborização da capital e abundância de rios e córregos que passam pela cidade, não existem muitos parques e espaços públicos de área verde no município.

Proporcionalmente, são 56.131 moradores para cada parque e praça pública da cidade. Para essa conta, foram considerados os seguintes espaços: 

Além de parecer não haver tantas áreas verdes, as que existem estão, em sua maioria, degradadas. Não é de hoje que o Jornal Midiamax mostra a realidade de abandono de parques da cidade. Tem espaços que até ‘espantam’ por criadouros de dengue e muita sujeira, e são cenário de abandono.

Parque Itanhangá (Reprodução).

“Campo Grande tem um imenso potencial para parques lineares e áreas que aproveitam esse potencial aquífero e verde. Requalifiquem essas áreas, olhem para os espaços que vocês têm, mantenham os espaços públicos”, destaca a urbanista, direcionando sua fala aos gestores e investidores da cidade.

“Esses espaços são para que as pessoas se encontrem. Valorizem os encontros. Olhem para a cidade como quem quer saber, como quem quer conhecer”, completa.

O que é ser capital, na prática?

Para ela, é por meio da consciência dessas realidades de Campo Grande – gestores e população – que poderão construir uma cidade mais equilibrada, com desenvolvimento urbano mais sustentável. 

“A gente precisa se comportar como capital de um estado”, diz a urbanista. 

Geralmente você espera que a capital seja a produtora de know-how (expertise, conhecimento) e exportadora disso para o interior. Eu acho que a gente está ‘perdendo’ muita coisa para Dourados, Corumbá, Bonito… Sendo que também temos coisas interessantes e importantes aqui também”, defende. 

Comércio do Centro (Foto: Alicce Rodrigues, Jornal Midiamax).

“O Rio de Janeiro é bonito por natureza e se desenvolveu como potencial turístico naturalmente por esse motivo. Já São Paulo, não. São Paulo se construiu turística. Passou a investir em entretenimento, restaurantes, museus, cultura, e se tornou capital gastronômica. São Paulo foi se fazendo turística”, exemplifica.

“E nós? O que nós podemos exportar em Campo Grande? Qual é o caminho para isso? Para isso, é preciso criar políticas de desenvolvimento sustentável do ponto de vista econômico. O que a gente produz aqui que podemos entregar e atrair?”, questiona a professora.

“É nesse contexto que a gente fala de economia criativa e como podemos valorizar a cultura local para que ela nos dê material para virar um produto turístico. Precisamos entender nosso espaço, conhecer nossa cultura e valorizá-la, inclusive para exportá-la”, aponta.

“Viver na cidade, planejar a cidade, é administrar interesses diversos. Eu tenho que ter uma coordenação para que nós possamos ceder mutuamente pelo interesse coletivo”, finaliza.

#CG125 – Campo Grande faz aniversário!

Jornal Midiamax iniciou a partir de 19 de agosto a publicação de uma série de reportagens com perspectivas sobre a Capital sul-mato-grossense, que completa, no dia 26 de agosto de 2024, 125 anos de sua fundação.

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