Única com o nome do Estado, Rua Mato Grosso do Sul preserva a memória e simplicidade dos moradores

Em meio às inúmeras ruas de Campo Grande, a ausência de uma avenida que referencie o nome do Estado é sentida pelos moradores

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Rua Mato Grosso do Sul
Rua Mato Grosso do Sul (Henrique Arakaki, Midiamax)

Em meio às inúmeras ruas de Campo Grande, há uma que se destaca não apenas pela sua singularidade, mas também pelo seu nome que evoca a essência de um lugar: “Rua Mato Grosso do Sul”. O que a torna especial? O simples fato de ser a única rua em toda a cidade a ostentar o nome do Estado ao qual pertence.

Ao contrário das tradicionais vias urbanas da cidade, a Rua Mato Grosso do Sul, localizada no bairro Jardim Itamaracá, desafia a modernidade. Isso não se deve apenas ao fato de que, em 30 anos, ela permanece sem asfalto, mas, sim, às histórias dos moradores – que em meio a pedras, poeira e até a fios caídos que a revestem – retratam um passado que se mistura com o presente.

Dois nomes que dividem o mesmo CEP

A pequena rua de 150 metros também esconde seus mistérios, com dois nomes que dividem o mesmo CEP e motivo de confusão aos moradores.

Para alguns, é a Rua Mato Grosso do Sul, no Jardim Itamaracá, nome que carrega a história e a identidade do Estado.

Para outros, o local é conhecido como Rua Urucum, no bairro Rita Vieira, nome que faz referência ao pigmento vermelho extraído do fruto de mesmo nome e muito utilizado pela população indígena.

Em meio a essa dualidade, correspondências são extraviadas, visitantes se perdem em tentativas de encontrar o caminho certo e novos moradores se confundem na hora de dizer o próprio endereço.

José Nunes
José Nunes está há 30 anos em Campo Grande (Henrique Arakaki, Midiamax)

‘Quando cheguei aqui era tudo mato’

Primeiro morador da rua, José Nunes, 71, é uma das poucas pessoas que, não ironicamente, pode dizer a clássica frase ‘quando cheguei aqui era tudo mato’. Em 1990, ele se mudou do Paraná para Mato Grosso do Sul. Junto da esposa e dos três filhos, ele precisou largar tudo que tinha e recomeçar. Na época, o pequeno barraco de apenas dois cômodos acomodava, com dificuldade, toda a família.

“No início passei muita dificuldade aqui, a vida era muito sofrida e nessa região não tinha nada. Para pegar ônibus tinha que andar mais de 1 hora em baixo do sol até o bairro Coopharadio, fazia esse caminho com três filhos pequenos, um em cada braço”, recorda.

José Nunes
José Nunes (Henrique Arakaki, Midiamax)

Fome, desassistência por parte do governo, perda do filho… Foram inúmeras as dificuldades passadas até que José conquistasse seu lugar e se sentisse pertencente a um Estado que o recebeu de forma hostil e ao qual chegou por falta de opção e sem pretensão de ficar.

“Não escolhi vir para cá, vim porque tinha uma dívida lá no Paraná e não tinha como pagar. Quando cheguei em Campo Grande não gostei da cidade, mas era o que tinha. Então, fiquei por aqui mesmo”, disse.

A má impressão de José tem lá seu fundamento: logo que chegou a Campo Grande, foi até o centro em busca de emprego. No caminho, encontrou uma placa: ‘precisa-se de empregada’. Ao entrar no local para pedir mais informações, acabou mordido por um cachorro. Apesar da dor, saiu dali com um emprego para sua esposa.

José relembra que nos anos 90 havia um lixão próximo a sua casa, o que tornava a região ainda mais inóspita e impossibilitava o pouco do lazer que ele tentava proporcionar para a família.

“Era impossível ficar aqui por conta do mau cheiro e das moscas. Tinha vezes que conseguia fazer um churrasquinho, mas logo enchia de moscas e não dava nem para ficar fora de casa”, diz o morador.

Aliança que se foi restaurou fé no próximo

Com lágrimas nos olhos, ele relembra um dos momentos mais difíceis de sua trajetória, quando precisou vender as alianças de casamento para comprar leite para os filhos.

“Já precisei pegar comida do lixo para não morrer de fome, mas sempre dei o melhor que pude aos meus filhos. Um dos dias mais tristes foi quando vendi minha aliança de casamento”.

No mesmo dia, José teve um grata surpresa que o fez mudar sua percepção inicial sobre o Estado.

“Tinha acabado de vender a aliança e fui pegar ônibus na Afonso Pena, lá fiquei conversando com um homem e após contar minha história ele ofereceu dinheiro para eu comprar o leite. De início neguei, mas ele insistiu. E com o dinheiro comprei mais duas latas de leite para o meu filho. Nesse dia, vi que ainda existe gente boa no mundo”.

Há quatro anos José decidiu abrir um pequeno mercado em frente de casa. No entanto, em uma rua isolada e sem asfalto, negócios não ‘decolam’ e ele precisou fechar o comércio.

“Tentei por quatro anos, mas não tinha movimento. Se tivesse asfalto seria diferente. Há anos ouvimos promessas e nada do asfalto chegar”, lamenta o morador.

Paixão por MS ultrapassou fronteiras

À medida que se caminha pela Rua Mato Grosso do Sul, é possível imaginar inúmeras histórias, como o pé de manga na esquina, que proporciona um local perfeito para o principal passatempo de qualquer sul-mato-grossense: tomar tereré embaixo da sombra.

Rafael Nunes
Rafael tomando tereré (Henrique Arakaki, Midiamax)

Em uma rua que leva o nome do Estado, portanto, nada mais sul-mato-grossense que um filho de paraguaios tomando tereré em frente de casa. Rafael Nunes, 71, nasceu no Brasil, mas passou a infância no país vizinho. Logo que teve idade, cruzou a fronteira e decidiu se mudar para Corumbá, onde se apaixonou pelo Pantanal e morou por 35 anos.

“Para mim não tem lugar melhor que Mato Grosso do Sul, é o lugar que escolhi como lar. Só morei no Paraguai quando era criança, passei a vida inteira no Brasil, morei em Brasília, mas gosto mesmo é daqui”, ressalta.

Rafael e a esposa (Henrique Arakaki, Midiamax)

Na maior parte da vida, Rafael viveu em fazendas, onde trabalhava como caseiro. Ao se mudar para Campo Grande, o ritmo acelerado da cidade grande fez com que ele trocasse uma casa no asfalto pela rua de terra, onde, segundo ele, se sente mais próximo a suas raízes.

“Mudei de uma rua asfaltada por conta do barulho, estou acostumado com o sossego da fazenda, então foi muito difícil me adaptar e resolvi mudar para cá. Não ter asfalto nunca foi problema para mim, até me faz lembrar da fazenda”, conta.

Gentileza é quase sobrenome

Rafael se aposentou quando tinha 65 anos. Mas, segue trabalhando como carpinteiro, mesmo contrariando recomendações médicas. “Não consigo ficar parado”. Inclusive, para localizá-lo, basta perguntar a qualquer criança do bairro onde mora o senhor que arruma bicicleta sem cobrar nada. É assim que ele é conhecido.

Rafael Nunes
(Henrique Arakaki, Midiamax)

“Gosto de mexer com bicicleta, é como um passatempo, por isso arrumo de qualquer um que chega aqui sem cobrar nada”, explica.

No entanto, em meio aos tantos desfortúnios do mundo, há quem desconfie de tamanha generosidade. “Tem gente que acha estranho, fica com receio de deixar a criança vir aqui, mas faço isso porque gosto de crianças e já passei muita dificuldade, então ajudo os outros como posso”, afirma.

Rafael é exemplo vivo de como Mato Grosso do Sul rompeu as barreiras fronteiriças e recebeu de braços abertos quem aqui quis fazer morada. No desenrolar das histórias contadas pelos moradores, é possível notar que a Rua Mato Grosso do Sul transcende a sua simples condição de uma rua sem asfalto. Ali se preservam histórias e tradições de um tempo em que a simplicidade reinava e a vida seguia um ritmo mais lento.

Rua Mato Grosso do Sul
Rua Mato Grosso do Sul (Henrique Arakaki, Midiamax)

Avenida Mato Grosso esqueceu de se atualizar?

Avenida Mato Grosso, em Campo Grande (Henrique Arakaki, Jornal Midiamax)

Mesmo com todo o simbolismo da Rua Mato Grosso do Sul, uma ausência notável se faz presente entre os inúmeros nomes que ecoam nas placas da cidade: mesmo sendo a Capital, Campo Grande não possui nenhuma avenida que faça referência ao próprio Estado.

No entanto, no coração da cidade, uma das principais avenidas (ainda) leva o nome do estado vizinho, Mato Grosso. O logradouro surgiu antes da criação de MS e, por lógica, cumpria seu papel de nomear o Estado ao qual integrava. Mas, será que, passados 46 anos desde a divisão do Estado, a avenida famosa pelas frondosas árvores esqueceu de se atualizar?

Neste cenário, surge um questionamento: não seria hora de conceder à Capital uma avenida que carrega o nome de Mato Grosso do Sul?

Segundo o vereador Professor André Luís, até o momento não houve articulações na Câmara Municipal no sentido de mudar o nome da Avenida Mato Grosso, possibilidade que ele mesmo não considera viável.

“Eu, particularmente, sou contra a mudança de nome de logradouro, por entender que há um custo muito grande para o poder público e para a população. Por exemplo, ter que trocar placas de identificação, fazer novos materiais gráficos e ainda tem a questão de a população já estar acostumada àquele nome”, ressalta.

Para o vereador, o ideal seria que Campo Grande ganhasse uma nova avenida com o nome Mato Grosso do Sul.

“Acho importante a ideia de ter uma avenida com o nome do estado, mas isso deve acontecer em uma avenida nova, e não através da alteração do nome de uma já existente”, defende o parlamentar.

Em todo o Brasil, tirando a via campo-grandense, ao menos 15 vias foram batizadas com o nome do Estado. Desse total, cinco são Avenidas:

  • Avenida Mato Grosso do Sul – Chapadão do Sul – MS
  • Avenida Mato Grosso do Sul – São Gabriel do Oeste
  • Avenida Mato Grosso do Sul – Matão – SP
  • Avenida Mato Grosso do Sul – Goiânia- GO
  • Avenida Mato Grosso do Sul – Ourilândia do Norte – PA
  • Avenida Mato Grosso do Sul – Guanambi – BA
  • Rua Mato Grosso do Sul – Cariacica – ES
  • Rua Mato Grosso do Sul – Serra – ES
  • Rua Mato Grosso do Sul – Divinópolis – MG
  • Rua Mato Grosso do Sul – Ribeirão das Neves – MG
  • Rua Mato Grosso do Sul- Tucuruí – PA
  • Rua Mato Grosso do Sul – Belford Roxo – RJ
  • Rua Mato Grosso do Sul – Joinville – SC
  • Rua Mato Grosso do Sul – Rio Branco – AC
  • Rua Mato Grosso do Sul – Palmas – TO
Mato Grosso
Trecho da Av. Mato Grosso (Henrique Arakaki, Jornal Midiamax)

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