MS já teve cacique mulher, mas evitar violência de gênero entre indígenas ainda é desafio

Desafio está em fazer com que políticas públicas alcancem fronteiras geográficas e culturais. MS terá a primeira Casa da Mulher Indígena, em Dourados

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Reprodução, Agência Brasil

Celebrado nesta terça-feira (5), o Dia Internacional da Mulher Indígena conta com marcos notáveis, desde lideranças femininas que marcaram história, a dispositivos que visam evitar e conscientizar sobre a violência de gênero nesta população, estimada em 70 mil, mais da metade dos 116,3 mil analisados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) no último Censo.

Contudo, há enormes lacunas que contrastam com as conquistas e que evidenciam a existência de desertos de políticas públicas ou a baixa eficiência das mesmas. Em busca da garantia desses dispositivos, mulheres indígenas de todo o país realizam, a partir de segunda-feira (11), a III Marcha das Mulheres Indígenas, em Brasília, com organização da Anmiga (Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade).

Líder indígena Enir Bezerra da Silva
Líder indígena Enir Bezerra da Silva

Enir Bezerra da Silva, a Enir Terena, é um dos nomes que se destacam nesta data. Falecida em 21 de junho de 2016, em Campo Grande, aos 61 anos, ela foi responsável pela articulação que resultou na fundação da aldeia urbana Marçal de Souza, sendo também reconhecida como a primeira cacique mulher de Mato Grosso do Sul.

Nascida em 8 e março de 1955, na Aldeia Limão Verde, no município de Aquidauana, a cacique seguiu na liderança da Marçal de Souza, comunidade que fundou, até seu falecimento. Em seu legado, além da aldeia urbana icônica de Campo Grande, estão mais de duas décadas de luta. Teve reconhecimento na 17ª edição da Feira Cultural Indígena, como tema do evento. Também foi responsável pela articulação do Memorial Indígena que está na aldeia urbana. Enir também foi homenageada com um selo comemorativo lançado pelos Correios em ocasião do Dia dos Povos Indígenas.

Estatísticas que assustam

Contudo, a notabilidade da liderança de Enir Terena ainda contrasta com as estatísticas nefastas – nas comunidades indígenas em MS, os dados de violência de gênero assustam. Somente em 2019, quando houve registro de 30 feminicídios, mulheres indígenas responderam por quase 17% do total, com 6 indígenas mortas em contexto familiar, segundo a Sejusp (Secretaria Estadual de Justiça e Segurança Pública). Nacionalmente, entre 2007 e 2017, o país registrou cerca de 8 mil notificações de violência contra mulheres indígenas, de acordo com o Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação), do Ministério da Saúde.

Um dos casos recentes ocorridos em Mato Grosso do Sul foi de Zenilda Freitas, 41 anos, da Aldeia Limão Verde, em Amambai, a 332 quilômetros de Campo Grande. Ela foi assassinada pelo marido após uma discussão, em 23 de julho deste ano, incrementando a estatística de 19 vítimas de feminicídio apenas neste ano, conforme a Sejusp.

Assim, a violência de gênero é uma das fronteiras enfrentadas por essa população – o que ocorre, principalmente, por certa dificuldade de acesso aos canais de denúncia, que requerem políticas públicas fortalecidas.

A aplicação da Lei pelas mulheres indígenas torna-se particularmente mais desafiadora tanto pela dificuldade de acesso a algumas terras indígenas como pela falta de conhecimento. Elementos culturais também contribuem para perpetuação, mas é certo que, mesmo havendo tradições e leis internas, elas não são suficientes para proteger essas mulheres da vulnerabilidade.

Kuñangue Aty Guasu, considerada a maior assembleia das Mulheres Guarani e Kaiowá de MS, publicou na última segunda-feira (4) caso de indígena Kaiowá e Guarani que corre risco de vida devido à violência de gênero. Segundo a publicação do coletivo, a vítima tem cicatrizes da violência por todo o corpo e correria riscos, juntamente com as crianças.

“Os processos judiciais estão sendo encaminhados começando por hoje, mas as consequências da violência psicológica chega ser irreparável na vida dela”, detalha o post.

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Uma publicação compartilhada por kuñangue Aty Guasu (@kunangueatyguasu)

Mutirão para comunidades indígenas

Nesse contexto, ações desenvolvidas pela Polícia Militar com o apoio da Prefeitura de Dourados, através da Guarda Municipal, Programa Viva Mulher e a Coordenadoria Municipal de Políticas Públicas para Mulheres, buscam reforçar segurança nas aldeias, com foco em atendimentos a mulher indígena.

O Governo de MS também detalha o Promuse (Programa Mulher Segura), desenvolvido pela Polícia Militar e com participação da Polícia Civil. Dentre o programa, está a investigação e fiscalização de denúncias e mandados judiciais contra autores de violência doméstica. Apenas no primeiro dia de operação, em agosto deste ano, 35 alvos já foram identificados e localizados.

Além disso, haverá o trabalho de prevenção e conscientização, com a realização de palestras e orientações para a população indígena. “O Promuse Indígena vem nesse sentido, para que as vítimas de violência doméstica nesta localidade tenham mais segurança e sejam atendidas pelo nosso programa”, afirma a chefe de equipe do 3º BPM, Denise Rosa.

Representatividade

A psicóloga Bárbara Marques, que coordena o Centro de Atendimento à Mulher Vítima de Violência – Viva Mulher, e a primeira indígena a ocupar o posto, ressalta a necessidade de um atendimento diferenciado para a mulher indígena em caso de violência.

“As mulheres indígenas precisam de um olhar diferenciado, por conta da questão da língua, da cultura e das especificidades delas. Então com esse projeto vamos aumentar a prevenção à violência contra elas, que já sofrem tanto, além de possibilitar a implantação de outros projetos que venham beneficiar a população indígena, em especial as mulheres”, explica.

Lei Maria da Penha para todas

Entre as políticas públicas a serem desenvolvidas, está parceria entre o Governo de MS e o TJMS (Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul), que quer dar prioridade às mulheres indígenas que vivem nesses desertos de políticas.

Ganha destaque a promessa de tradução da lei Maria da Penha para as principais línguas indígenas, além de convênio para cadastro e encaminhamento ao mercado de trabalho mulheres em situação de violência e vulnerabilidade social.

casa da mulher indígena
Casa da Mulher Indígena foi oficializada neste sábado (6). (Reprodução)

Em agosto, o Governo Federal oficializou a implementação da primeira Casa da Mulher Indígena Brasil, em Dourados, durante o Primeiro Seminário Regional Diálogos para Prevenção de Violência contra as Mulheres Indígenas Kaiowá Guarani e Terena. Será a segunda Casa da Mulher Brasileira de MS, focada na população de mulheres indígenas.

A oficialização ocorreu poucas semanas após a apresentação de um relatório detalhado sobre as demandas das mulheres indígenas, feita pela deputada Gleice Jane (PT), em Brasília. O dossiê destaca a necessidade de um espaço específico e especializado para atender às questões relacionadas à violência e aos desafios enfrentados por esse grupo.

A proposta é que a Casa da Mulher Indígena seja um centro especializado, sob um olhar atento às escutas das violências enfrentadas por essas mulheres, garantindo atendimento sensível e acolhedor, respeitando suas culturas e necessidades.

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