O fornecimento de dados sigilosos de internautas para que autoridades policiais prossigam com investigações é alvo de ação judicial em Mato Grosso do Sul. A ação, movida pela APIMS (Associação de Provedores de Internet de Mato Grosso do Sul), pede que o fornecimento de dados – tais como registros de IP (Internet Protocol) – seja fornecido aos investigadores apenas com autorização judicial.

O processo corre na 2ª Vara de Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos de e foi ingressado na pela associação ainda em 2020 estando, até o momento, sem resolução. As empresas alegam insegurança jurídica e relatam até que sofreriam assédio por parte dos investigadores, a fim de fornecerem os dados com mais agilidade – antes da determinação judicial.

De acordo com a entidade, no entanto, a liberação dos dados sem determinação da Justiça desrespeitaria a Lei Federal 12.965/2014, popularmente conhecida como Marco Civil da Internet. No texto, a entidade ainda diz que se coloca em uma “encruzilhada legislativa”, já que a lei não prevê quais autoridades administrativas têm competência para fazer essas requisições. 

Além disso, a APIMS aponta que, muitas vezes, a polícia faz pedidos de informações apenas sobre o número de IP, sem saber qual pessoa estão procurando, já que diferentes usuários podem acessar o mesmo IP simultaneamente.

“Sendo que aquelas [empresas provedoras de internet] que se recusam a informar os ‘dados cadastrais', mesmo justificando os motivos para as Autoridades Policiais, por vezes se veem constrangidas e coagidas pelo temor de responderem procedimentos criminais”, expõe a APIMS.

Além de Mato Grosso do Sul, delegacias de outros Estados também têm feito requisições aos provedores de internet. A APIMS anexou ao processo ofícios de órgãos de MS, Ceará e São Paulo. 

Dados sigilosos e insegurança jurídica

Um dos documentos afirma que as informações devem ser prestadas “sob pena de incidência de crime de desobediência”. 

Assim, no processo a associação pede que as empresas possam se recusar a fornecer informações sobre “dados cadastrais de IP” quando não houver autorização judicial, especialmente, quando não houver a identificação da pessoa que será investigada. 

Na lista de pedidos também está uma multa de R$ 5 mil por cada requisição feita em desconformidade ao Marco Legal da Internet e dos termos apresentados.

Além disso, também pede que seja obrigatório que a Polícia Civil de Mato Grosso do Sul informe os dados da porta lógica/porta de origem da conexão investigada sempre que pretenderem a identificação de um usuário com base em determinado número de IP, a fim de que seja possível a correta individualização.

Embargos de declaração

A ação, que tem como agravado o Estado de Mato Grosso do Sul, contou com decisão interlocutória que negou o pedido de liminar ajuizado na peça inicial, no qual a associação pedia para se abster de conceder os dados cadastrais de IP sem ordem judicial até a resolução do mérito, sem que houvesse qualquer penalização ou instauração de inquérito para apuração do crime de desobediência.

O pedido, no entanto, foi negado, após o considerar risco de dano irreparável às investigações.

Assim, a autora entrou com embargos de declaração no 2º grau, onde o pedido de abstenção foi acatado pelo relator, desembargador Marcos José de Brito Rodrigues, que determinou a tutela de urgência recursal.

MP negou pedido

Manifestação do MPMS (Ministério Público Estadual), assinada pelo promotor Eduardo Franco Candia, posiciona-se pela “improcedência” do pedido da APIMS. Entre os argumentos está a demora que o acesso a informações fundamentais poderia impactar nas investigações.

“Necessário se faz apresentar, ainda, que a burocratização do acesso relativo à investigação leva a morosidade, aumentando ainda o tempo de espera por dados que se mostram diversas vezes serem essenciais na apuração de delitos”, afirmou.

Decisão pode prejudicar investigações, diz Adepol

Uma segunda decisão interlocutória na ação, assinada pelo juiz David de Oliveira Gomes Filho, em abril do ano passado, acatou pedido da Adepol (Associação dos Delegados de Polícia de Mato Grosso do Sul) de ingressar no processo como “amicus curiae”, ou seja, como parte interessada no tema. 

Assim, a associação de delegados afirma em manifestação que o Marco Civil da Internet autoriza que autoridades administrativas tenham acesso a dados cadastrais “jamais ao conteúdo das comunicações ou qualquer outra informação sujeita à reserva de jurisdição, para a qual se exige autorização judicial”, alegam. 

Na manifestação, também é exposto que o Brasil ocupa o terceiro lugar no ranking mundial de registros de fraudes eletrônicas. Além disso, a Adepol considera que o não fornecimento das informações prejudica o ritmo das investigações, com prejuízos à coletividade.

Conforme explica o 2º vice-presidente da Adepol-MS, Tiago Macedo dos Santos, o delegado de polícia é uma autoridade que tem autorização legal para fazer esses pedidos de informações. 

Na visão do delegado, a sentença favorável à autora poderia prejudicar as investigações policiais porque ficaria a cargo de um juiz analisar cada requisição, o que geraria burocracia, sobrecarregaria o poder judiciário e atrasaria as investigações. 

Processos: Entrada do Fórum de Campo Grande
Adepol-MS afirma que pedidos à justiça sobrecarregariam poder judiciário.

“Muitas vezes quando a decisão judicial é proferida já não houve tempo hábil para fazer a resposta. Até porque esse dado cadastral que eles [provedores de internet] mantêm por lei tem um prazo para ser armazenado. Decorrido esse prazo eles não teriam mais obrigação de informar”, ele explica. 

O delegado Tiago Macedo dos Santos também afirma que nessa ação as empresas “querem se eximir” da responsabilidade de fornecer as informações, o que gera custos. 

“Esses pedidos resultam em um serviço adicional a esses provedores que precisam montar setores para atender os nossos pedidos e isso gera custo. Então, as empresas, em verdade, querem se ver livre desses ônus da atividade econômica, muito embora seja uma atividade lucrativa […] porque eles conectam pessoas através da internet e lucram com isso. Por outro lado, eles não querem ter o ônus de prestar essas informações”, expõe. 

Por fim, a autoridade policial também relata que na ação da APIMS são feitos pedidos de informações que as delegacias não têm acesso. Ele explica que o IP é como se fosse uma placa de carro para identificar um usuário.

O IP é distribuído para cada conexão para um grupo de internautas, de pessoas que acessam a internet por vários dispositivos. Para identificar essas pessoas, o IP é fragmentado, o que então indica uma “porta lógica”, como se fosse uma sub placa do carro.

“O não tem o dado de quem é usuário, quem tem esse dado, por exemplo, é o provedor que […] quer condicionar esses pedidos através da ordem judicial e também quer que nós indiquemos a porta lógica da conexão. Ora se nós tivéssemos esses dados a gente não requisitaria, não é verdade?”, questiona Tiago Macedo dos Santos.

O que diz a APIMS?

Já o advogado Osvaldo Gabriel Lopes, que representa a APIMS no processo contra o Estado de Mato Grosso do Sul, explica que a ação não tem o objetivo de dificultar as investigações da Polícia Civil, mas que seja cumprido o Marco Legal da Internet, especialmente, porque as empresas provedoras de internet são responsáveis pelos dados dos consumidores e podem sofrer penalidades e multas caso descumpram a legislação.

O advogado expõe que, desde 2020, a APIMS tem recebido questionamentos dos associados sobre a legalidade dos pedidos e que há até casos que autoridades no interior do Estado que, ao expedirem ofícios de requisição, imediatamente foram para a porta das empresas para pressionar os empresários a entregarem os dados solicitados, gerando constrangimento aos empresários, funcionários e até mesmo clientes nas lojas.

Confira abaixo a nota da associação na íntegra sobre o caso: