‘Cura’ para superbactérias e luta contra o machismo: como é ser pesquisadora no MS

Da iniciação científica ao pós-doutorado, pesquisadoras do Mato Grosso do Sul falaram sobre os desafios de cada área, o que as motivou a escolher esse caminho e como vencer as barreiras sociais

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Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência, comemorado neste dia 11 de fevereiro. (Foto Nathalia Alcântara | Jornal Midiamax)

Do pioneirismo sobre os estudos de radioatividade feitos por Marie Curie, no século XIX, a criadora da vacina AstraZeneca em 2020, Sarah Gilbert. A história da ciência está repleta de mulheres que mudaram o curso da humanidade. Em Mato Grosso do Sul, esse movimento é evidenciado desde a pesquisa para vencer as superbactérias aos estudos com crianças vítimas da Covid-19, protagonizados por grandes mulheres em solo campo-grandense.

Para celebrar o Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência, comemorado neste 11 de fevereiro, o Jornal Midiamax foi ao campus da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) para conversar com essas pesquisadoras – da iniciação científica ao pós-doutorado – que falaram sobre os desafios impostos ao gênero, da profissão, das histórias de superação de quem vem da rede pública e como suas pesquisas podem traçar um novo horizonte para um Brasil melhor.

Para a doutoranda em Física Biomolecular, Thalita Lima, de 25 anos, a escolha pela vida de pesquisadora foi aberta no Instituto Federal de Campo Grande. “Eu entrei no Instituto Federal quando eu tinha 14 anos, e lá tinha iniciação científica júnior, na qual a gente desenvolvia projetos e apresentava em feiras. Eu cheguei a ganhar alguns prêmios por esses projetos e assim fui introduzida sobre esse mundo acadêmico, e esse mundo da ciência. E como é importante a ciência na solução de problemas”, disse ela.

Uma fórmula para vencer as superbactérias

Em sua pesquisa, ela está desenvolvendo uma forma de vencer as atuais superbactérias, já imunes a muitos antibióticos. “Eu trabalho com física aplicada porque eu gosto de desenvolver pesquisas que impliquem a vida das pessoas, que ajudem a solucionar problemas e que ajudem a gente a avançar.  O meu trabalho é com resistência bacteriana. Você pode pensar ‘nossa, bactéria não tem absolutamente nada a ver com física’, mas a gente pode usar a física para solucionar esse problema”, detalhou.

Cientista manipulando placa de cultura. (Foto Nathalia Alcântara | Jornal Midiamax)

“No caso, a gente desenvolveu nanopartículas, que são partículas muito pequenas, que no escuro elas não têm efeito nenhum. Mas, quando a gente irradia com luz, geram espécies reativas de oxigênio e calor, que são nocivas às bactérias. Então, assim, é uma forma que a gente tem de impactar o problema da resistência antimicrobiana. Eu falo que o laboratório é meu lugar feliz, é o lugar onde eu desenvolvo as coisas”, concluiu.

Origem humilde

Os desafios para concluir a graduação e chegar ao doutorado foram muitos, mas sempre vencidos com muito apoio e força de vontade. “Olha, os desafios foram inúmeros. A gente pode citar primeiro a questão financeira. Eu sou de uma família humilde e sempre estudei em escola pública, a minha mãe só tem o ensino fundamental. Meus avós são analfabetos e eu fui criada pela minha mãe e pelas minhas irmãs. Minha mãe teve que se desdobrar para sustentar três filhas e como não tem uma pessoa que tinha ensino superior e nem no ensino médio, eu falo que tem um salto, que no caso foram as primeiras pessoas a se formar. Minha irmã pelo ProUni e eu pela Universidade Federal”.

Doutoranda em Física Biomolecular, Thalita Lima de 25 anos. (Foto Nathalia Alcântara | Jornal Midiamax)

Além dos desafios no seio familiar, também foi necessário derrubar barreiras no mundo acadêmico. “Também tem a questão de [o curso de física] ser um ambiente maioritariamente constituído por homens. Chega um ponto do curso que infelizmente só tinha, por exemplo, uma mulher na sala. Você não tem uma representatividade significativa entre o corpo docente também. Você não consegue ver tantas mulheres formadas em física, brasileiras, latinas […] você tem que cavar para você achar”.

Ela explica que a família ajudou muito dando apoio nos momentos difíceis. “O que me ajudou foi o apoio da minha família, porque o que faltou do ponto de vista financeiro eu tive de apoio em vários momentos em que acontecia alguma situação em que eu ouvia certas coisas de alunos, professores ou pessoas externas sobre ser uma mulher assim”.

Lego X boneca

Para Thalita, a luta contra o machismo estrutural deve ser fomentada em pequenas ações desde a infância. Para, assim, mudar a situação atual nos cursos de exatas. “Basicamente, eu não acredito que tenha mudado muita coisa, principalmente pelo fato de que nas minhas conversas com as pessoas que estão há mais tempo do que eu, a gente chega à conclusão que as mesmas coisas que às vezes uma passou a outra também passa”, disse ela.

E continuou. “Eu acredito que isso aconteça, primeiro por conta de que entra pouca mulher. Mas o fator mulher, eu acredito que seja por uma falta de motivação para as meninas se interessarem por ciências lá na infância, você dar uma boneca para menina e um Lego para o menino. Esse menino vai ter mais essa chance [de escolher a física] porque está ganhando Lego. Como ele tá ganhando coisas mais técnicas, coisas, ferramentas, brinquedos, ferramentas? Você acha que qual desses dois vai acabar indo para a carreira de ciências exatas? Provavelmente mais meninos”, disse ela.

Da escola pública para a iniciação científica

No 9º semestre de Engenharia Física e integrante da iniciação científica, Jhoenne Helena Vasconcelos, de 22 anos, está concluindo o curso, e também vivenciou essa realidade.

“Comecei a iniciação desde o primeiro semestre, quando entrei na faculdade eu queria buscar por coisas além do que era visto na sala de aula. Mas o curso tem vários desafios, o meio da física é muito voltado para o público masculino. Quando entrei, tive um choque pela [pequena] quantidade de meninas que tem na Física. A questão financeira também foi difícil, porque eu trabalho desde os 15 anos”, disse ela.

Jhoenne Helena Vasconcelos, 22 anos, cursa Engenharia Física. (Foto Nathalia Alcântara | Jornal Midiamax)

Lidando com a questão financeira batendo a porta, a saída foi buscar a conciliação entre o curso e trabalhos de freelancer em um restaurante. “Eu procurei uma bolsa e consegui conciliar trabalhar com freelancer em um restaurante, fazer pesquisa e estou conseguindo me mantar no curso até agora por conta disso, buscando superar os desafios. É um curso difícil, que exige muito da gente. Além das aulas, você tem que estudar muito”, disse ela.

E concluiu com um desejo. “Eu espero que as mulheres se interessem mais pelas exatas. Eu sou de escola pública, é chocante você entrar nas universidades públicas e ver a quantidade de alunos das escolas particulares, e a maioria homens”, disse ela.

‘Quebrando’ barreiras na Europa

Com um longo currículo acadêmico, Regiane Godoy de Lima, de 35 anos, atualmente é pós-doutoranda em ciência dos materiais e professora universitária, mas vivenciou os mesmos dilemas que as outras colegas.

“Eu sempre gostei de pensar e querer saber como eram feitas as coisas, mas em 2006 era bem diferente de como é hoje em dia. Não tinha essa parte tecnológica tão fácil e com tanto acesso. Quando entrei na faculdade de 30 alunos, 25 eram homens. Mas acho que melhorou um pouco, porque tem mais projetos de pesquisa voltado para mulheres. Mas algumas coisas continuam similares”, disse ela.

A sua carreira como pesquisadora a levou até Portugal. Onde o preconceito foi ainda maior. “Fiz um doutorado sanduíche em Portugal. Lá a mulher na ciência também sofria com esse preconceito. Além do [preconceito] com o Brasil. Falavam que a pesquisa no Brasil era inferior a deles. Dizendo que não acreditavam nos resultados do Brasil, porque não sabiam como funcionavam os nossos laboratórios. Mas esse laboratório que eu estou [na UFMS], é melhor do que o laboratório que eu trabalhei lá. Eu tentei sempre me impor. Sempre tentava ir conversando e mostrar meu ponto de vista, mas tinha que ser mais incisiva que os outros”, disse ela.

O que dizer à nova geração de pesquisadoras?

Por fim, ela acredita que o caminho para a mudança se dará através de incentivos e políticas públicas estatais. “Tem que ter mais incentivo, políticas públicas e mais projetos. Apresentar a pesquisa antes da graduação, ainda no ensino médio. Mostrar para as meninas que é possível, seja na área de exatas ou qualquer outra ciência. Mostrar que elas não precisam ficar só na maternidade ou profissão que são ditas femininas”.

Trecho do livro As Cientistas, 50 Mulheres que mudaram o mundo. (Foto Nathalia Alcântara | Jornal Midiamax)

“Esse livro eu comprei para passar para as minhas alunas. Ele mostra 50 mulheres que já fizeram ciência, um cronograma com [espaço para] mais alguém. A próxima grande cientista pode ser você! A grande cientista do futuro, independentemente de onde nasceu ou de gênero, e mulheres trans também”, disse ela.

As três pesquisadoras acima são integrantes do Grupo de Óptica e Fotônica da UFMS e fazem parte do Sisfóton (Sistema Nacional de Laboratórios de Fotônica).

(Foto: Nathalia Alcântara | Jornal Midiamax)

Olhar de bióloga

Também pesquisadora, mas em um campo de estudo diferente. A doutoranda em bioquímica e biologia molecular Isabela Pavão Vargas, 26 anos, apresentou a perspectiva de uma bióloga no mundo da pesquisa científica. 

“Eu sempre gostei de ciência e sempre foi a minha paixão. Desde criança eu sabia que eu queria ser cientista, só não sabia como. Quando entrei para a biologia, ela me deu um leque de coisas que eu poderia seguir, e quando estive dentro de um laboratório eu sabia que era isso que eu queria pra mim”, disse ela.

Sobre os sonhos para a pesquisa científica no Brasil, ela descreveu. “A ciência no Brasil não é tão valorizada do jeito que ela deve ser. Desde a parte estrutural dos laboratórios, faltam equipamentos e tem a escassez de reagentes. É uma dificuldade grande com a falta de incentivo dos órgãos de fomento”, afirma.

Doutoranda em bioquímica e biologia molecular Isabela Pavão Vargas, 26 anos (Foto Nathalia Alcântara | Jornal Midiamax)

De mulher para mulher, ela deixou um recado inspirador. “Desde que eu entrei pro laboratório, eu tenho visto mais mulheres engajadas em continuar. Normalmente elas faziam mestrado e desistiam do doutorado porque é muito longo. Então, continuar na carreira científica é o que tem mudado. As mulheres querem se especializar mais e mais, seu mestrado, doutorado, seu pós-doc e assim por diante. Estão chegando mais longe na parte dos estudos, sendo reconhecidos, sendo mais chamada para palestrar. Pra estar nessas áreas onde elas não eram tão requisitadas”, disse ela.

Sequela da Covid-19 em crianças

No âmbito da Fisioterapia, a mestranda em ciências do movimento, Amanda de Oliveira Arguelho, de 24 anos, também apresentou os motivos que a levaram a pesquisa e o seus desafios diários.

“Desde pequena, eu fui muito apaixonada pelo moimento humano, e no vestibular eu me interessei pela fisioterapia. Eu sempre pensei que seguiria na parte clínica, mas durante a graduação a gente foi muito incentivada a se especializar, a não ser apenas uma profissional que faz o básico”, disse ela.

Entre as adversidades da vida de pesquisadora, a questão financeira foi novamente citada. Mas sem chances de impedir um sonho.

Mestranda em ciências do movimento, Amanda de Oliveira Arguelho, de 24 anos (Foto Nathalia Alcântara | Jornal Midiamax)

“Um dos grandes desafios da pesquisa é a questão financeira, até porque se você optar por ser bolsista você não pode trabalhar. É dedicação exclusiva. Você não pode ter um vínculo empregatício, mas ao mesmo tempo a gente entende que é um processo. É uma fase, a gente se dedica naqueles 2 anos do mestrado ou 4 do doutorado para conseguir devolver para a população”, explica.

Assim como as outras profissionais, ela sonha com o reconhecimento da pesquisa brasileira e deixa uma mensagem para as futuras pesquisadoras.

“Nosso maior objetivo é que seja reconhecido mundialmente, olhar para o Brasil e ver que é um país que faz pesquisa de boa qualidade e forma profissionais de excelência. Eu diria que a gente [as mulheres] precisa ter muito foco e lutar pelo que a gente quer, por mais que não seja fácil. Tanto pela questão financeira, quanto pela luta diária de conseguir uma amostra boa e artigos bons, no final vale a pena. Existem possibilidades: bolsas de estudo, a gente sempre consegue dar um jeito, o que não pode é desistir”, disse ela.

Uma mulher para se inspirar

Sarah Gilbert foi uma das responsáveis pela criação da vacina AstraZeneca, e uma inspiração para mulheres como a Amanda. “Ela é uma grande inspiração. A gente tem que se fortalecer com o exemplo dela e ver que a gente é capaz sim. A mulher pode atuar na área que quiser e quando quiser porque a gente tem força pra isso”.

Amanda relatou que uma das maiores dificuldades é a participação da população. “Minha pesquisa trabalha com os efeitos da Covid-19 em crianças de 0 a 7 anos. Eu avalio o comportamento motor dos bebês que foram infectados diretamente ou indiretamente pelo Covid-19. É importante fazer essa avaliação nesses bebês pra ver qual o grau de interferência da Covid-19 e o quanto afetou na vida dessa criança e na qualidade de vida dela. É importante que os pais participem dessa pesquisa e se conscientizam sobre o seu significado para o futuro. Sem a população a gente não consegue”, ressaltou.

Para participar da pesquisa de Amanda de Oliveira Arguelho, você pode entrar em contato pelo telefone: 67 99271-7454.

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