Com falta de caderno e até de comida, estudar é um ato de resistência em aldeia de Japorã
Nesta segunda reportagem especial, o Jornal Midiamax mostra os desafios e as conquistas do sistema de educação em aldeias de Mato Grosso do Sul
Monique Faria –
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Para quem nasceu em uma aldeia indígena, estudar é um ato de resistência. As dificuldades, que vão desde a falta de um caderno ou mesmo de comida em casa, desafiam a longa jornada do ensino básico, mas também impulsionam a formação de verdadeiros agentes de transformação. É o aluno que dá lugar ao profissional pronto para auxiliar seu povo a evoluir. Nesta segunda reportagem especial, o Jornal Midiamax mostra os desafios e as conquistas do sistema de educação em aldeias de Mato Grosso do Sul.
Entre 2011 e 2021, o número de indígenas matriculados no ensino superior, no Brasil, saltou 374%, de acordo com um levantamento feito pelo instituto Semesp, entidade que representa as instituições de ensino superior no país. Em 2021, último ano da coleta dos dados, cerca de 8.700 estudantes indígenas concluíram a graduação. São muitos desses jovens que lutam para concluir seus estudos, e voltam após formados para atuar em suas aldeias e lutar pelos direitos de seu povo.
Um exemplo conhecido é o advogado indígena Luiz Eloy Terena, nascido na comunidade indígena Alpegue, em Aquidauana, que se formou em direito e, atualmente, é referência nacional da causa indigenista, atuando como coordenador da APIB (Departamento Jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil).
Em Caarapó, município distante 278 km de Campo Grande, Valdir Vilhalva é um dos agentes de transformação que, superadas as dificuldades, se tornou professor do ensino básico na Escola Municipal Ñandejara Polo. Hoje, ele atua para fazer a diferença na educação das novas gerações de crianças indígenas.
“Antigamente, na escola, você tinha que comprar caderno e o pai e a mãe às vezes não tinham condições de dar. Às vezes também não tinha comida em casa, e a gente tinha que ir na escola”, comenta Valdir, que a partir da quarta série do Ensino Fundamental precisou sair da aldeia para estudar em uma escola na cidade.
O professor lembra de andar cerca de cinco quilômetros para pegar o ônibus que o levaria até a escola. “Eu tinha que sair de casa 4h30 da manhã e andar 5 km para pegar o ônibus. Mesmo com chuva ou frio tinha que ir”, conta.
Na escola da cidade encontrou dificuldades culturais e que afetaram a comunicação, como consequência também enfrentou reprovações de ano que levaram a atrasos nas séries escolares. “O professor achava que eu não era alfabetizado, mas na verdade a comunicação que eu não entendia. Isso me levou a reprovar muito”, conta.
Com as reprovações, Valdir conseguiu concluir o Ensino Fundamental com 18 anos. Na época, o Ensino Médio já havia sido implantado na aldeia e ele cursou por lá, na modalidade EJA (Educação de Jovens e Adultos).
Educação evoluiu para atender o povo indígena
Atualmente, é possível concluir todo o ensino básico sem sair da aldeia e os alunos também contam com oito ônibus escolares que fazem o transporte das casas até a escola. Diante das dificuldades enfrentadas na infância, Valdir elenca as facilidades que os alunos têm hoje.
“Agora está mais fácil. Por isso que eu falo com meus alunos, vocês que não querem estudar é porque não querem, porque tudo está facilitado. Tem ônibus, tem aula de violão, tem informática, tem tudo. Cada ano fica melhor para os alunos”, comenta.
Atuando na escola Ñandejara Polo desde 2007, o professor ensina várias disciplinas a seus alunos, como geografia, ciências, história, e os saberes indígenas. Apenas a disciplina de Educação Física não fica a cargo de Valdir.
É nas aulas de saberes indígenas que as crianças trabalham a cultura, crenças e danças. “As crianças que estão nascendo agora não sabem que tipo de comida pode comer, o que não pode, e como é preparado o alimento tradicionalmente. A gente como professor tem que ensinar isso. Como a escola é diferenciada, tem interculturalidade”, explica.
A educação no município com maior população indígena de MS
Em Japorã, cidade onde concentra a maior população indígena do estado de Mato Grosso do Sul, duas escolas estaduais recebem as crianças da aldeia: a Escola Estadual de Japorã, no povoado de Jacareí, e a Escola Estadual Kuña Yruku Marina Lopes, na Aldeia Porto Lindo.
O prefeito de Japorã, Paulo Franjotti, explicou à reportagem que as escolas pequenas deram lugar às escolas principais da região, mais amplas, para diminuir as despesas e concentrar as verbas apenas nelas.
“Eu acabei com as escolas pequenas porque se eu acabar com as escolas pequenas eu diminuo despesas. Nessa escola estadual [Marina Lopes], eu fiz um convênio com o estado, que durante o dia funciona o ensino fundamental, primeiro ao nono ano, e de noite ensino médio”, afirma.
Além das escolas estaduais, a missão evangélica Caiuá mantém a Escola Municipal Dr. Nelson de Araújo, em Japorã. Cerca de 200 alunos estão matriculados na instituição. “São quatro salas de aula, a última sala de madeira será derrubada, de 40 anos de missão, que prefeito nenhum fazia de alvenaria”, conta o prefeito do município.
De acordo com o Cacique da Aldeia Porto Lindo, Roberto Carlos, cerca de 300 crianças da aldeia estudam no turno da manhã, e 300 no turno da tarde. No CEI (Centro de Educação Infantil) de Jacareí, 160 crianças ficam de 12h às 17h, e o transporte escolar as deixam em casa.
“No distrito de Jacareí, de 100% [dos alunos], quase 90% são todos indígenas e temos professores lá trabalhando com os indígenas. A gente leva o índio pra lá e traz o branco pra cá pra dar aula de português”, explica.
Para cursar o ensino superior, as opções mais próximas são a UFGD e a UEMS, polo de Japorã. “Estuda brancos e índios juntos e nunca houve problema. Todos os alunos que saíram da aldeia tiveram segurança, respeito e acolhimento dentro da comunidade, formaram e saíram felizes”, conta o Cacique.
Transporte escolar na Aldeia Porto Lindo
No ônibus escolar, a monitora, Shaiane Lopes, de 20 anos, conversa em português e Guarani com as crianças. Trabalhando como monitora há dois anos, Shaiane afirma que a maioria das crianças já entra no ônibus e dorme. “Eu estudei aqui, mas na minha época não tinha [o transporte]. É muito bom ver essa evolução, é uma nova fase”, comenta.
O motorista do ônibus, Milton Rodrigues Junior, de 31 anos, mora em Jacareí, e trabalha no transporte escolar desde 2022. Seu turno começa às 5h40 e vai até as 23h. Juninho, como é conhecido, diz que as crianças são muito carinhosas. Mesmo não aprendendo a língua, por ser difícil, ao seu ver, o motorista se diverte com as crianças. “A educação evoluiu bastante, com várias escolas dentro da aldeia. Em escolas fora da aldeia, o transporte que leva”, explica.
Série especial: Nesta semana o Jornal Midiamax publica uma série de reportagens sobre comunidades indígenas do sul do Estado. Entre os temas que serão explorados, estão as dificuldades que lideranças da região enfrentam, porém, muitos também estão tendo a oportunidade de se autossustentar, manter a cultura, a tradição e até se divertir em alguns momentos.
Confira as reportagens
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