Hermanos en Brasil: refugiados recebem emprego em Mato Grosso do Sul e formam colônia em Rochedo
Cidade recebeu 48 venezuelanos para trabalhar em um frigorífico. Estado já recebeu mais de 4 mil refugiados desde o início da Operação Acolhida no país
Graziela Rezende –
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Na escada de acesso à sala de treinamento já era possível ouvir um burburinho de sotaque desconhecido. Vestidos de branco, 48 venezuelanos recebiam as últimas orientações, antes de almoçar e iniciar o trabalho em um frigorífico de Rochedo, a 84 quilômetros de Campo Grande. Isso tudo na penúltima semana de maio, quando eles foram trazidos pelo Exército, direto de um voo fretado e aqui se juntaram a milhares de refugiados, que já formam uma espécie de colônia, no interior do Estado.
Neste momento, com o coração dividido pelos entes que ainda estão na Venezuela e pela possibilidade de uma “nova vida”, muitos já estão pedindo adiantamento de salário, com a intenção de buscar quem por lá ficou e aqui fixar moradia, construir carreira e viver em paz até que obtenham condições de voltar à terra natal.
Segundo o Subcomitê Federal para Acolhimento e Interiorização de Imigrantes em Situação de Vulnerabilidade, Mato Grosso do Sul recebeu, de abril de 2018 a abril de 2022, 4.561 venezuelanos. Ao todo, no país, são 74.375 pessoas neste mesmo período, assistidas pelo Governo Federal durante a Operação Acolhida.
No caso do frigorífico, que possui cerca de 900 funcionários e está em projeto de expansão, com previsão de chegar a 1,2 mil contratados, 10% do quadro é de refugiados e migrantes, entre venezuelanos, haitianos e cubanos. No entanto, de acordo com o gerente administrativo e de recursos humanos, Rafael Matsuzaki da Silva, tudo começou por acaso e não havia um projeto para a chegada deste público.
“Nós tínhamos contratado um rapaz que veio da Venezuela. Ele é engenheiro, possui bastante experiência em eletricidade e estava morando em Mozarlândia, em Goiás. Um excelente funcionário, por sinal. O contato com ele foi há 3 anos e, diante da falta de mão de obra, nós começamos a abordar esse pessoal na rua e oferecer o nosso cartão, falar das nossas vagas de emprego”, relembrou Rafael.
Gerente diz que contratação de estrangeiros começou por acaso em frigorífico
Com o trajeto diário para o frigorífico, de Campo Grande a Rochedo, o gerente diz que sempre via estrangeiros, como haitianos, cubanos e venezuelanos, entregando panfletos, pedindo dinheiro e vendendo objetos nos semáforos, quando pensou em um projeto pelo qual traria essas pessoas de ônibus para o frigorífico e faria a locação de um hotel até que eles se estabelecessem na cidade.
A experiência, no entanto, não deu muito certo porque alguns preferiram não mudar de cidade, porém, alguns foram contratados e atuam, desde 2018, na empresa. “Foi até que eu conheci o projeto Acolhida e comecei a manter contato com o pessoal do Exército, em Boa Vista, Roraima. É lá a base deste projeto. E eu pedi a eles que selecionassem algumas pessoas, para uma seletiva agora em 2022. E foi tudo tão rápido que, em dois dias, eles já tinham retornado a ligação com 80 pessoas para selecionarmos 50”, comentou Matsuzaki.
Dessa forma, a seletiva que estava em andamento no frigorífico precisou ser interrompida para a entrevista, de forma online, com os venezuelanos. “Nós não tivemos custo algum com a vinda deles. A empresa tinha feito orçamento, de locação de ônibus, mas, nada foi necessário e eles vieram em um voo particular. E uma coincidência enorme é que eu estava de férias, voltando do México, quando os encontrei na área de desembarque”, disse.
Dos 50, dois tiveram problemas com documentação e não puderam vir, totalizando 48 funcionários que se juntam a cerca de 50 estrangeiros já contratados, em anos anteriores, pelo frigorífico. “Já teve gente promovida aqui e casos muito interessantes, como de uma estrangeira que contratou professor particular de português para crescer na empresa. O mais interessante é que ela é quem está no setor de qualidade, fazendo agora a integração com estes venezuelanos”, explicou.
“Fugindo de um país em crise e de constante tensão”, lamentam venezuelanos
Com as mais diversas histórias de fuga, existem professores, engenheiros, enfermeiros e até chef de cozinha que se sujeitam a desempenhar as mais diversas funções, principalmente com a intenção de fugir de um país em crise e de constante tensão política. É o caso do Angel Isidro Gonzalez Alvarez, de 33 anos. Em 2019, ele veio de Puerto La Cruz e se estabeleceu em Rochedo, com a esposa e a filha, atualmente com 8 anos.
Após um tempo, foi até o seu país buscar parentes e hoje são 12 pessoas da mesma família vivendo em Mato Grosso do Sul, sete delas empregadas no frigorífico.
“Estamos vivendo uma situação tão difícil que tem gente lá que não consegue comer. A pessoa trabalha o mês inteiro e não consegue comprar nem arroz. É por isso que muitos se sujeitam a andar quilômetros para atravessar a fronteira e passar por todas essas adaptações, como eu passei. É tudo muito sofrido”, lamentou.
Atentos ao problema, o setor de recursos humanos do frigorífico inclusive já destinou recursos para adiantar salários a cada 6 meses. “Nos últimos três anos, tivemos inúmeras mudanças e eu sempre falo o quanto a diretoria da empresa atua de forma humana. Nós já tivemos gastos na ordem de R$ 70 mil, para emprestar após pedidos dos funcionários, da vontade deles de buscar os familiares”, contou o gerente.
Outra questão é que muitos venezuelanos aproveitam, ao máximo, os benefícios da empresa para fazer economia.
“Eles têm café, almoço e se alimentam muito bem. Nós temos relato de que alguns até não jantam para guardar dinheiro. É por isso que foi construída a creche e, no caso das mulheres gestantes, a nutricionista adicionou um lanche reforçado, com iogurte e granola, além de frutas, por exemplo”, relatou Rafael.
Frigorífico agora tem ‘Venezuela Day’ e faz contratos em 4 idiomas diferentes
Diante de tantas mudanças, o frigorífico também passou a redigir contratos em português, inglês, espanhol e francês. No caso da alimentação, os venezuelanos ainda possuem um dia de comida típica, para que se sintam acolhidos, de acordo com a empresa.
“Nós sempre deixamos claro que todos aqui são tratados iguais e não podemos fazer nada a mais e nem nada a menos para eles. O tratamento é igual a todos os funcionários, sejam brasileiros ou estrangeiros. Também tivemos mudanças quando houve a contratação de homossexuais e travestis, por exemplo. Nós colocamos na ficha de contratação como a pessoa quer ser chamada, para não haver nenhum tipo de constrangimento. São questões sociais que foram aparecendo”, comentou o gerente.
No Dia da Venezuela, comemorado no dia 7 de julho e no decorrer do mês, na empresa, os venezuelanos recebem uma comida típica e, aos poucos, vão se sentindo mais acolhidos. Na última edição do evento, houve decoração no frigorífico e o chef Angel fez o prato Pabellon Criollo, que faz parte da história do país e representa as três grandes culturas venezuelanas.
“Fomos habilitados para a exportação, em setembro de 2019 e por isso houve aumento da mão de obra e todos estes projetos acontecendo. Um dos contratos é com a China, cuja retomada após pandemia, aconteceu antes e por isso tivemos essa expansão. O frigorífico possui 4 unidades, 2 em Mato Grosso do Sul, e tem mais de 3,5 mil funcionários”, disse.
Delegado fez palestra sobre sobre as leis brasileiras e golpes pela internet
O delegado Roberto Duarte Faria, titular da unidade policial de Rochedo, também esteve com os venezuelanos, no dia 30 de maio deste ano. Ele foi até o frigorífico e fez uma palestra aos venezuelanos, recém-chegados na cidade.
“Nós demos boas-vindas e também repassamos as informações sobre as leis brasileiras e os golpes pela internet, que aqui ocorrem com frequência. O intuito também é alertá-los sobre as leis penais”, argumentou o delegado.
População local se divide sobre venezuelanos e até fala em ‘colapso’
O Jornal Midiamax percorreu alguns locais da cidade e conversou com moradores. Sem querer se identificar, alguns falam que, infelizmente, possuem preconceito pelo fato dos venezuelanos estarem “tirando vagas” de pessoas da cidade. Outros, no entanto, ressaltam que a cidade pode causar um “colapso” a qualquer momento e é até por isso que os venezuelanos estão alugando casas grandes e formando uma colônia, ainda de acordo com a população local.
O auxiliar de produção, George Luiz Pacheco, de 33 anos, é um dos mais novos funcionários estrangeiros. “Está uma etapa muito ruim lá. Não tem medicamento. O salário não dá para o mês inteiro. A pessoa recebe, em média, R$ 70 por semana lá. Água não tem o mês todo, fica uns 10 dias sem, então, tivemos que arriscar e vir para cá. No meu caso, o que quero agora é aprender a falar português”, comentou.
O gerente industrial do frigorífico, José Luís Silveira Lima, de 56 anos, que fica no “chão de fábrica”, fala que espera somente profissionalismo destas pessoas e defende a acolhida, qualificando os brasileiros como um povo solidário.
Casal agradece ao povo brasileiro, mas sonha em retornar à terra natal
Maria Álvares Gonzalez e Carlos Freitas, ambos de 61 anos, estão em Rochedo há alguns meses. Eles são pais do cozinheiro Angel e vieram no momento em que ele retornou à Venezuela para buscá-los, além do irmão, nora e uma sobrinha.
“Sou muito grata aos brasileiros e ao frigorífico que emprega mais da metade da minha família. Só que não falo nada do idioma. E sempre fui pastora, missionária, então quero voltar para continuar com este trabalho lá. Mas aqui é um lugar maravilhoso. Adoro picolé de morango”, brincou.
Operação Acolhida iniciou em 2018 diante do aumento do fluxo de migrantes e refugiados no país
O aumento do fluxo migratório de entrada de migrantes e refugiados em Roraima, decorrente da crise humanitária na Venezuela, fez com que o governo brasileiro iniciasse a Operação Acolhida, no ano de 2018. A gestão é feita pelo CFAE (Comitê Federal de Assistência Emergencial), instituído em junho do mesmo ano.
Com intenção de preservar a dignidade das pessoas venezuelanas e facilitar o processo de integração local, o Exército é responsável pela Coordenação Operacional da Acolhida e pelo Comando da Força-Tarefa Logística e Humanitária.
Como estratégia brasileira, ocorre a interiorização destas pessoas, coordenada por uma força-tarefa logística e humanitária do CCI (Centro de Coordenação para a Interiorização). São equipes multidisciplinares, formadas por militares e civis, que planejam e facilitam o deslocamento dos venezuelanos que escolheram se inserir nos diversos estados.
Dessa forma, eles recebem oportunidades de emprego, reunificação familiar, onde é promovido o reencontro entre os beneficiários e seus familiares, reunião social, que consiste em unir os beneficiários a indivíduos que possuem laços de amizade/afetividade ou familiares cujo vínculo não se possa comprovar; e institucional, que é o deslocamento de beneficiários dos abrigos emergenciais para as casas de acolhimento geridas pelo poder público, agências ou sociedade civil.
Ao chegar às cidades, são recebidos por equipes responsáveis pela pós-interiorização. Ao todo, participam da Operação Acolhida integrantes das Forças Armadas (Marinha do Brasil, Exército e Força Aérea), além de organizações governamentais e não governamentais, agências da ONU (Organização das Nações Unidas), bem como entidades religiosas, filantrópicas, empresas apoiadoras e sociedade civil.
Até o momento, a Operação Acolhida já regularizou mais de 280 mil migrantes e refugiados venezuelanos.
Destes, cerca de 70 mil foram interiorizados para mais de 800 municípios. O trabalho inclusive já foi reconhecido pela ONU como pioneiro e efetivo na prestação de assistência e integração das pessoas venezuelanas, além de garantir e preservar a dignidade dos refugiados.
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