Além de saúde precária, corguinhenses ainda amargam obra inacabada de creche há mais de uma década
Obra foi inaugurada em 2016, mas nenhuma criança frequentou o local; prefeitura culpa gestão anterior e demora do MP
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Não bastasse a saúde precária, sem a presença da maioria das especialidades médicas no atendimento à população, os moradores de Corguinho, município localizado a 95 quilômetros de Campo Grande, também convivem com o descaso de ter uma creche, numa obra entregue praticamente pronta para receber as crianças, mas, que deteriora há mais de uma década com a desculpa de haver “uma série de burocracias”.
Segundo a atual gestão do município, o processo de licitação do Ceinf (Centro de Educação Infantil), localizado ao lado do Cras (Centro de Referência de Assistência Social) Cleuza Gonçalves de Melo, ocorreu no ano de 2010, com gastos na ordem de R$ 1.313.256,76. Seis anos depois, houve até a inauguração, algo que não passou de politicagem, já que nenhuma mãe matriculou nenhuma criança e as portas sequer foram abertas.
O pedreiro José Cardoso Delmondes, de 44 anos, trabalhou na obra da creche e presenciou todo este processo. “Eu trabalhei com gosto. Sonhava em ter os meus filhos lá e imaginei que, algum dia, todos eles iriam usufruir do local, principalmente, porque é perto da minha casa. Agora eles estão com 11, 14 e 15 anos e ninguém nunca usou desta creche”, afirmou ao Jornal Midiamax.
Atualmente desempregada, Josilene Batista de Oliveira, de 42 anos, diz que também sonhou com o momento de matricular os filhos no Ceinf.
“A geração deles passou. Tem mais de 10 anos que ficamos esperando e presenciando isso. Agora eu tenho um neto, de 3 anos, que poderia estar lá”, comentou.
No município, segundo a prefeitura, cerca de 100 pessoas trabalham em um frigorífico que fica entre Corguinho e Rochedo. Dessa forma, diariamente, um ônibus leva os funcionários para o local. A maioria deles trabalha durante todo o dia e recebe um salário mínimo, conforme disseram os moradores da região.
“A maioria das mulheres que trabalham lá ganha um salário e precisam pagar metade para os outros cuidarem dos filhos aqui. O mínimo cobrado é R$ 500. Falo porque conheço exatamente a realidade aqui. Tenho parentes trabalhando lá no frigorífico também. Como faz desse jeito? No frigorífico tem berçário e depois teria que ter a creche. Mas, o nosso dinheiro, o dinheiro público, tá lá jogado fora”, lamentou Oliveira.
Creche é alvo de vândalos
Sem um cadeado no local por muito tempo, vândalos invadiram a obra da creche e roubaram fiação, pias, danificaram a estrutura e muitos até dormiam e deixavam fezes espalhadas pelo local, conforme testemunhas. Após denúncias, o local teria sido fechado, mas, mesmo assim, com as janelas quebradas, a informação é que vândalos e usuários de drogas ainda frequentariam o local.
Questionada sobre o problema, a atual prefeita, Marcela Lopes (PSDB), disse que, quando tomou posse, verificou que a obra da creche estava “inacabada” e constatou que ainda precisaria de um investimento de R$ 413.077,95 para concluir a obra.
Ao consultar o FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação), a prefeita disse que foi informada que a “obra estava concluída e fora inaugurada em 2016 pelo antigo gestor”. No entanto, ainda conforme Marcela, a obra dada como concluída estava “sem a mínima condição de uso e segurança”.
Seguindo orientações, o executivo então disse que encaminhou documentos para o Ministério Público, pedindo autorização para realizar novos reparos e terminar a obra, já que estaria até sem rede elétrica, conforme consta na nota da prefeitura enviada ao Jornal Midiamax.
A prefeitura ainda diz que a obra é investigada pelo MPF (Ministério Público Federal) e que, em janeiro de 2019, foi emitida uma nota de esclarecimento para a população, nas redes sociais. Além disso, Marcela diz que encaminhou a documentação para a câmara de vereadores de Corguinho e, juntos, estariam atuando para a retomada da obra, porém, ela alega que ainda não recebeu respostas do Ministério Público.
Sem creche, sem especialistas
Na semana anterior, a reportagem do Jornal Midiamax esteve no município e ouviu o depoimento de diversos corguinhenses. Além de lamentarem o não funcionamento da creche há mais de uma década, a população também relatou o descaso com a saúde, já que eles precisam peregrinar em busca de médicos especialistas e dentistas, tanto na cidade vizinha de Rochedo como na capital sul-mato-grossense.
Ao relatar a rotina de saúde pública precária, a maioria dos entrevistados ressaltou as viagens para conseguirem atendimento com pediatra, ginecologista, fonoaudiólogo, psicólogos e até fisioterapeuta, já que os que possuem na cidade não estariam dando conta da demanda.
A dona de casa Jaqueline Mendes dos Santos, de 33 anos, vivencia este drama há mais de uma década. Mãe de três, José e Luis, de 11 e 14 anos respectivamente, além da Geovana, de 15 anos, ela conta que sempre viajou para Campo Grande ou então foi até Rochedo buscar atendimento para os filhos. Há 9 meses, no entanto, um triste diagnóstico da filha agravou a situação: encefalite autoimune.
Em maio de 2021, a família levou a adolescente para o posto de saúde 24 horas de Corguinho. Lá, a menina recebeu uma medicação e teria ido dopada para Campo Grande. “Ela tem plano de saúde da Cassems, por conta da minha mãe, e nós fomos direto para o hospital. A Geovana ficou 73 dias no hospital e nós até alugamos uma casa para ficar com ela lá. Estamos inclusive devendo ainda esse valor”, lamentou a mãe.
Ao retornar para Corguinho, a família recebeu uma extensa documentação, a qual precisaria encaminhar a menina para atendimento semanal com fonoaudióloga, terapeuta ocupacional e psicóloga e, caso isso não ocorresse, ela corre o risco de perder a fala. Desde então, a família vai até outra cidade para buscar atendimento e a população contribui com rifas e até leilão virtual.
Aqui vale a ‘lei do faroeste’, diz aposentado
Revoltado após buscar atendimento com fisioterapeutas na UBS [Unidade Básica de Saúde] de Corguinho, por diversas vezes, o pintor aposentado Daniel Batista de Oliveira, de 55 anos, disse que na cidade “o que vale é a lei do faroeste”, onde “quem pode mais chora menos”. Diagnosticado com paraplegia, ele precisou recentemente dizer que “estava se arrastando no chão em casa para conseguir uma cadeira de rodas do município”.
“Eu tenho o documento que fala que eu necessito de uma cadeira de rodas adequada, cadeira de banho e fisioterapia. A cadeira eu consegui depois de implorar. A de banho nunca consegui e as sessões de fisioterapia pior ainda. Tem duas piscinas em um ginásio aqui que falam que é pra isso, só que fica tudo fechado. Nada funciona, nunca tem vaga, nunca tem recurso”, lamentou.
Pai e avô, Daniel também lamenta a falta de especialistas e até de remédios. “Meu neto nunca consultou com um pediatra aqui. Isso nunca teve. Só quando passa mal é que vai para a emergência e pronto. É um descaso sim com a população. Faz um ano e quatro meses que tomo remédio para pressão também e minha esposa teve que comprar nessa quarta-feira (9), porque falaram que não tinha mais no posto”, comentou.
A merendeira aposentada e assistente social, Edith Canhete, de 71 anos, diz que a nora atua como enfermeira no município e argumenta que realmente faltam especialistas.
“O atendimento é bom, é bem feito, só que é o básico. Faltam especialistas e o atendimento de fisioterapeutas, por exemplo, é bem limitado. Atende uma parte da população e deixa outra sem atendimento. Não cobre a demanda”, ponderou.
Sem aparelho de raio-x, dona de casa não conseguiu extrair dente
A dona de casa Rayani de Araújo, de 20 anos, é mãe de duas crianças e diz que consulta em Campo Grande, quando necessário. Na última quinta-feira (10) o Midiamax a encontrou no momento em que retornava de um posto de saúde, sem conseguir o atendimento necessário.
“Eu estava com muita dor de dente e a dentista disse que era necessário fazer a extração, só que ela não poderia fazer porque precisava ver no aparelho de raio-x. Eu vou ter que ir até Rochedo porque aqui não tem este aparelho. Fizeram uma obturação e me deram o remédio. Só isso”, falou.
Prefeitura negou falta de atendimento
Sobre este problema, a prefeitura negou falta de atendimento à população e ressaltou que os recursos de Corguinho são distribuídos não só para o município, mas, também para os 4 assentamentos e 4 distritos ao redor, sendo que a “arrecadação é menor do que as despesas”.
No caso da contratação de profissionais, ela relatou que existe toda uma burocracia e que muitos médicos, mesmo tendo a oferta de receber valor maior pelo plantão, preferem atender na capital por conta do deslocamento até a cidade. No mesmo dia da publicação da reportagem, no entanto, a prefeitura usou as redes sociais para confirmar a contratação de uma pediatra na cidade.
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