Uso de cartilhas. O método é uma das alternativas encontradas por educadores para tentar diminuir os impactos das ‘fake news’  na maior Reserva Indígena Federal de Mato Grosso do Sul, localizada em . Por conta delas,  41,7% dos moradores da aldeias e retomadas  deixaram de tomar a vacina.

Levantamentos do Dsei (Distrito Sanitário Especial Indígena de Mato Grosso do Sul) revelam que até agora somente 5.630 indígenas foram imunizados, com a primeira dose, o que corresponde a 58,3%. Em relação à segunda dose, a situação não é diferente, com índices ainda mais baixos (7,8%), totalizando apenas 740 pessoas.

No início da , as cartilhas também foram usadas para orientar os moradores das aldeias a se conscientizarem da importância nos cuidados com a higiene. Entretanto, faltaram argumentos para contrapor as carências básicas, como falta de água potável para matar a sede e também para higienizar as mãos.

Passado mais de um ano da pandemia e dos primeiros casos de , nas aldeias quase nada mudou. As dificuldades continuam batendo às portas das casas, que na maioria delas ainda abrigam até 9 pessoas em um único cômodo.

Na maior reserva indígena de MS, negacionistas afirmam que vacina é 'marca do demônio'
“Não acredite em mentiras. Não seja besta”, diz a ilustração em guarani.(Foto: Reprodução)

Se por um lado faltam moradias, por outro sobram templos e grupos de fanáticos negacionistas.  Levantamento feitos por estudiosos no assunto, revelam que somente nas aldeias de Dourados existem mais de 80 igrejas das mais diversas denominações.

O que chama a atenção e ao mesmo tempo causa espanto é que de onde deveria brilhar a luz, o que predomina é a escuridão. Além das trevas da ignorância, das promessas que evaporam nas urnas, da fome que não acaba nas cestas pingadas e da água encanada que que só existe em mapas de engenharia guardados nas gavetas, alguns “crentes” propagam estórias inacreditáveis e abaladoras.

‘Marca da Besta’, do ‘Anticristo’

Entre os ‘fakes’ que correm nas aldeias de Dourados, como se fossem rastilhos de pólvoras, um já é bastante conhecido na comunidade. Diz a lenda, que quem tomar a vacina vai virar jacaré. “Essa é uma estória que vem sendo contada há algum tempo e que por mais que pareça uma brincadeira de criança, acabou assustando muitos adultos”, diz uma professora da Aldeia Jaguapiru.

Para não ser hostilizada, a educadora ouvida pelo Midiamax, que prefere ter a identidade preservada diz ainda que se a estória do jacaré, apesar de absurda já assusta, o terror espalhado por determinados grupos, formados na maioria por fanáticos que ainda acreditam que a doença não é real, causa pânico ainda maior.

“Muita gente aqui nas aldeias ficou apavorada depois de ouvir que a vacina é a representação do demônio. Esse tipo de mentira acaba influenciando negativamente e para alguns, diante da pressão, acaba virando verdade”, diz a professora.

Em conversa com outros moradores da Aldeia Bororó, que também faz parte da Reserva Federal de Dourados, a reportagem do Midiamax constatou que a fonte dos boatos não está vinculada somente aos grupos evangélicos. “Faço parte de uma denominação evangélica onde o nosso pastor já está imunizado”, diz outra educadora, ressaltando que todos fiéis foram orientados a tomar a vacina.

Na avaliação do pesquisador da UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados), Neimar Machado de Sousa, a baixa adesão dos indígenas à vacinação está relacionada à vários fatores. Segundo ele, o governo não estava suficientemente preparado para uma vacinação em massa em tão pouco tempo.

Além disso, de acordo com o professor, no contexto da falta de campanhas mais objetivas e esclarecedoras, muitos boatos se espalharam nas aldeias e foram absorvidos por um grande número de pessoas. Estas notícias falsas sobre a vacina propagaram-se bastante entre os evangélicos, bastante numerosos nas aldeias, uma delas de que a vacina seria a ‘Marca da Besta’, do ‘Anticristo’.

Cabeças envenenadas

Se a vacina é o remédio que pode combater a doença, a cartilha é a esperança para restaurar a confiança na ciência, que além de rejeitada por fanáticos negacionistas, é disseminada como um mal que assombra culturas ancestrais.

“Estamos fase de finalização desse material e acreditamos que em breve ele estará nas mãos dos moradores da reserva. Essa cartilha demandou, além de pesquisas exaustivas, esforço e amor ao próximo”, relata o professor da UFG.

Além dele, que assina o projeto gráfico e também faz parte da organização e edição, a publicação envolveu Leninha Hilton (texto, ilustração, revisão e organização e edição), e Zenilton Fernandes (texto, organização e edição), Nilva da Silva (revisão), Christiane Aedo (revisão), Teodora de Souza (organização e edição) e Veronice Lovato Rossato (organização e edição).

Na maior reserva indígena de MS, negacionistas afirmam que vacina é 'marca do demônio'
Ilustração traduzida para a língua portuguesa.(Foto: Reproduçao)

Nas páginas da cartilha escrita em guarani e com versão em língua portuguesa, os educadores procuram decifrar os enigmas que ainda confundem o imaginário de muitos moradores das aldeias. Por meio de ilustrações e palavras alusivas à realidade indígena, surgem conselhos que, além de iluminar consciências, podem salvar vidas.

Na maior reserva indígena de MS, negacionistas afirmam que vacina é 'marca do demônio'
Getulio Juca, rezador da Aldeia Jaguapiru, que já tomou as duas doses da vacina contra o coronavírus. (Foto: Marcos Morandi)

Para o rezador da aldeia Jaguapiru e guardião da Gwyra Nhe’engatu Amba, “Lugar onde o pássaro da Boa Palavra tem Assento”, Getúlio Juca, os boatos estão não contramão da espiritualidade indígena. No final do ano ele comandou um ritual religioso com a intenção de afastar a pandemia da reserva indígena.

“Essas notícias falsas brotam de cabeças envenenadas pelo mal e acabam encontrando morada nos corações de muitas pessoas. Temos é que combater esse tipo de coisa que não acrescenta nada para a nossa cultura. Nosso Deus é bom e se preocupa com todos”, conta o rezador. Ele e a esposa, Dona Alda, que também é rezadora, já tomaram as duas doses da vacina.