Antes da invenção do papel, a memória e os costumes de um povo eram transmitidos entre gerações pelos seus anciões, que guardavam consigo a tradição de seus antepassados. Em Campo Grande, os moradores mais antigos da região do Jardim Aeroporto procuraram o Jornal Midiamax para eternizar sua história, contando detalhes das dificuldades e o processo de evolução que o bairro e o entorno viveram nas últimas décadas.

Vivendo no Jardim Aeroporto desde o dia 8 de dezembro de 1988, Sales Santos de Oliveira, de 54 anos, abriu um dos primeiros mercados do bairro e se tornou uma figura carimbada no comércio da região. “Abri o mercado em 1992, na rua Wanderlei Pavão. Aqui era só Deus na causa. A rua era uma buraqueira e ônibus quebrava toda hora”, disse ele.

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A ponte era de madeira e não existia asfalto. Quado chovia, os moradores atravessavam com água no pescoço (Foto: Marcos Ermínio / Jornal Midiamax)

Sales foi um dos cinco primeiros moradores a erguer uma casa na região, e passou por dificuldades inimagináveis na Campo Grande de hoje. “No cruzamento da rua Wanderlei Pavão com a avenida José Barbosa Rodrigues passa o córrego Imbirussu. A ponte era de madeira e quando chovia o rio transbordava. Para chegar no bairro, você atravessava com água no pescoço. Carro não passava”, detalhou ele.

Problema frequente nos dias atuais, o transporte coletivo era muito mais precário e uma dificuldade constante. No início, o ônibus passava somente duas vezes no dia, às 6h e 21h. Depois de alguns anos, a frequência foi ampliada, mas nada próximo do ideal. “Foi para quatro vezes ao dia: 5h, 12h, 18h e 22h, eu estudava na E.E. Arlindo de Andrade Gomes e se perdesse o ônibus, voltava a pé da avenida Júlio de Castilho”, relembra.

Na soma das dificuldades, o campo-grandense da época passava por duas grandes crises quando se tratava da falta de asfalto. “O principal problema era a poeira no período de seca e o barro durante as chuvas, cansei de ver carro atolado”, finalizou.

Sem asfalto, sem saúde e sem estrutura

A alguns quilômetros dali, a dona Inez Amancio Pinto, de 62 anos, ex-membro do conselho comunitário do bairro, apresentou os registros do passado. Explicando as mudanças que o bairro vizinho, o Sílvia Regina, passou. “Mudei pra cá em 1984 quando meu filho tinha 2 anos, a rua Paracatu era uma estrada boiadeira e cheia de buraco.  As casas eram todas de madeira, não tinha de alvenaria”, disse ela.

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Dona Inez mostrando como era a região (Foto: Marcos Ermínio / Jornal Midiamax)

Atualmente, as casas são todas de alvenaria e com asfalto passando na frente, um cenário bem diferente da Paracatu dos anos 80. Fato que o transporte coletivo para o bairro era um sonho impossível e a chuva um sinônimo de transtorno. “Nem ônibus passava aqui, pra ir no centro tínhamos que andar até a avenida Capibaribe”, explicou ela.

Com pouca infraestrutura, o bairro carecia de serviços essenciais simples como um posto de saúde, mercado e farmácia. “Aqui não tinha nada, eu ia caminhando até o antigo posto do Vila Almeida, hoje é um Caps (Centro de Atenção Psicossocial). Só tinha aquele posto na região e ele atendia o pessoal do Serradinho e Jardim Aeroporto. Não existia mercado grande aqui, só o do seu Zé que era um quebra galho. Pra fazer compra nós íamos na rede Soares, na avenida Afonso Pena”, detalhou.

Pode ser difícil de acreditar, mas onde hoje é um bairro populoso, quem dominava era a vegetação nativa, há apenas algumas décadas no passado. “Quando minha mãe mudou pra cá, em 1981, só existia uma casa no bairro. A Vila Palmira tinha poucas casas, era uma fazenda. O bairro Sayonara não existia, era tudo mato fechado”.

Segurando uma das fotografias de família, Inez reviveu a lembrança do lento progresso e evolução do bairro, com a chegada do asfalto. “Essas três crianças estão sentadas na travessa Canarinho, que hoje é a rua São José (Foto de Capa)” , finalizou.

‘Cria’ do bairro Silvia Regina

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A avenida João Júlio Dittmar era uma área de vegetação e próximo dela existia uma favela (Foto: Marcos Ermínio / Jornal Midiamax)

Onde hoje é uma via organizada e com casas de alvenaria, no passado já foi uma mata fechada e com várias moradias precárias no seu entorno. Criado no Silvia Regina, Flávio Batista, de 40 anos, viu a mudança acontecer na avenida João Júlio Dittmar e em toda região. “Não existia essa avenida, aqui era uma mata e um pouco antes era tudo favela, o bairro melhorou bastante”, detalhou.

O trajeto que hoje é feito em 5 minutos para chegar ao bairro Popular já foi muito maior, sem ligação direta, era necessário dar a volta pelo Jardim Aeroporto ou ir pelo acesso da avenida Duque de Caxias, que também não tinha ligação direta com o bairro Sílvia Regina, ambos os trajetos levavam mais de 40 minutos para serem percorridos.

Mesmo com a situação precária, os jovens da época se divertiam com o que tinham, sem ligar muito para doenças ou infecções. “Nós pescávamos e tomávamos banho no córrego. Era sujo, mas era menos que hoje”, relembrou.

‘Muita treta’

Com o passar dos anos, o Jardim Sayonara que ainda não existia quando dona Inez chegou ao bairro, já havia surgido na adolescência de Flávio, marcada pela criminalidade. “Aqui era ruim, mas o Sayonara era pior, lá era esgoto a céu aberto. Pra entrar no bairro você passava em uma ‘pinguelinha cabulosa’, e tinha que pagar pedágio para os maloqueiros, sem isso não entrava no Sayonara”, explicou.

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Para entrar no Sayonara era necessário passar por uma ‘pinguela’, hoje ponte de concreto, e pagar uma espécie de pedágio para os criminosos (Foto: Marcos Ermínio / Jornal Midiamax)

Era o período das brigas de ‘gangues’ entre os bairros rivais, que deixava rastro de sangue, violência e ameaças. “Nunca fui de confusão. Essa época tinha as rixas de gangue entre Sayonara, Popular, Silvia Regina”, explicou.

As brigas eram frequentes e, por vezes, os encontros acabavam em muito sangue e morte. “No segundo e último domingo do mês, o ônibus era de graça. Eles se encontravam no terminal e era um Deus nos acuda. Ou, então, ficavam esperando descer do ônibus quando tinha show na praça ou Fernando Corrêa, e no Shopping também”, detalhou.

Por fim, os anos se passaram e o processo de urbanização levou embora aquela fase conturbada da região oeste de Campo Grande. “Um monte de parceiro nosso morreu. O ‘Buru’ tomou um tiro na cabeça e paulada. O ‘Farol’ estava em um bar, que era o verdadeiro risca faca e hoje é uma igreja, uma moto passou e deu dez tiros de calibre 22, na época ele ficou aleijado, mas morreu esses dias. Hoje aqui é sossegado”, finalizou.