A Ana começou levando animais de rua para casa quando criança. E era sempre aquela briga que todos aqueles que amam animais desde a infância enfrentam: a voz da razão das mães que não permitem ficar com todos. Com o tempo, ela viu que realmente não daria conta uma grande quantidade sozinha. Mesmo assim não abandonou o sonho. Cresceu, formou-se em Medicina e foi durante período em que trabalhou na China que descobriu uma forma de estruturar um trabalho que pudesse ajudar os pets de forma mais efetiva. Hoje, atende 200 felinos com a ONG Amicats, em Campo Grande.
Assim como ela, muitas organizações têm se desenvolvido na cidade. Entretanto, o número de ‘protetores independentes’ ainda é enorme, com pessoas que mesmo sem a estrutura necessária se arriscam em resgates, tratamentos e tentativas de adoção que nem sempre são bem-sucedidas. São verdadeiros anjos que não medem esforços para salvar cães e gatos de rua, gastam valores exorbitantes em clínicas veterinárias e muitas vezes acabam tendo que levar uma grande quantidade de animais para suas próprias casas.
Um trabalho voluntário maravilhoso, porém altamente estressante, desgastante em todos os sentidos. Apesar da recompensa de ver um animal sobreviver após maus-tratos, o drama de passar um dia sem um grão de ração e dezenas de animais para alimentar; as ameaças quando levam casos de maus-tratos à Polícia; dentre outros problemas como órgãos que perseguem protetores ao invés de responsabilizarem maus proprietários permeiam essa realidade.
Apesar dos resgates serem realizados em todas as regiões da cidade, é nas periferias da Capital que eles tomam maiores proporções. Basta uma volta rápida pelos bairros mais afastados do Centro para ver a quantidade de animais soltos em condições inadequadas, muitos cobertos de sarnas e à mercê de doenças, atropelamentos e outras consequências do abandono. Nos grupos montados nas redes sociais, aqueles que cruzam com animal em situação precária enviam fotos e lá vão os protetores, até os confins dos bairros situados nas seis regiões urbanas de Campo Grande, distantes da região central, na tentativa de salvar as vidas sobre patas.

Várias dessas histórias de resgates – das lindas, comoventes, mas nem sempre com final feliz – foram relatadas ao Jornal Midiamax. Uma delas é a da Mileide, que profissionais queriam eutanasiar porque não davam expectativa de vida maior que um mês. Foi o amor, a insistência e o trabalho duro da família da estudante Ana Paula Melo, de 34 anos, que fizeram a cachorrinha hoje ser uma das mais alegres da casa. Após muitos tratamentos sem resultado, encontraram formas alternativas de manter a saúde dela estável enquanto luta contra a leishmaniose.
Entretanto, o modelo usado na história de Mileide é impossível de ser reproduzido em grande escala. A própria dona dela hoje reconhece as dificuldades para atender mais animais sem criar uma forma mais estruturada e sustentável. “Eu resgato, cuido, mas não ficam na minha casa. Têm protetores que resgatam e enchem casa de cachorro. Falta de saúde mental, saúde pra eles mesmos. Eu prefiro manter a minha limitação em relação ao número de animais porque tudo requer dinheiro”, afirma, sugerindo que falta união entre os protetores.
Contudo, as necessidades de quem atua nessa área vão muito além disso. Nesse contexto de dificuldades, o Midiamax selecionou algumas das histórias que contém ingredientes de sucesso para a causa animal. São exemplos de entidades e pessoas que têm trilhado o caminho da profissionalização e conseguido obter novos resultados. Veja algumas delas na reportagem abaixo.
Prestação de contas

Fundada em 2013 por Kelly Macedo, de 57 anos, junto com uma amiga, a ONG Cão Feliz é uma das poucas em Mato Grosso do Sul que conta com sede própria. “No início arrumamos um local, pagávamos aluguel e começamos com 13 animais de uma amiga protetora que faleceu e hoje dá nome à nossa associação. Em menos de seis meses estávamos com 50 animais”, relembra Kelly. No ano seguinte, as doações permitiram a compra de dois terrenos e nos dois anos seguintes foi construída a sede própria. Atualmente, 118 cães são atendidos no local – 90% deles com leishmaniose e vários com deficiência.
Diferente das outras entidades e protetores que têm dificuldades para conseguir ajuda, a ONG conta com apoiadores em todo o tempo, mesmo com valores menores em tempos de crise. Questionada sobre como consegue, Kelly explica que desde o início do trabalho adotou sistema rigoroso de prestação de contas. Além disso, a entidade sempre organiza eventos, bazares, rifas, almoços e bingos, oferecendo contrapartida a quem deseja ajudar a causa.

No espaço de 720 metros da ONG, os animais ficam soltos. Presos, somente os ‘encrenqueiros’ que são cerca de meia dúzia e não gostam de socializar. Para a fundadora da ONG, não tem como ajudar muitos animais sem se desenvolver. “Ou você dá aquele limite ou então você transforma num depósito de animais, que não é nosso objetivo. Jogando sem ter condições, sem dar vida digna. Cuidados, medicação, alimentação, carinho, atenção, enfim. As crianças daqui você chega e não vê uma triste, todo mundo feliz”, diz orgulhosa.

Ela faz questão de mandar recado às pessoas que descartam animais quando estão velhos ou doentes. “Quando a gente fica doente tem que jogar fora, abandonar na rua? Não né! Os animais têm sentimentos, sentem dor, fome, frio, igual uma pessoa. Só não falam”, defende.
Leis mais duras e respaldo do poder público
Amante de animais, o protetor Alexandre Santos tem a clareza de que não é possível conter o crescimento de cães e gatos sem uma estrutura mais eficiente e sem responsabilizar de forma mais dura donos que cometem maus-tratos. Por isso, seu trabalho é bater de porta em porta em gabinetes e apresentar projetos de lei que vêm sendo bem-sucedidos em outros estados. Funcionário público dos Correios com expediente das 2h da madrugada às 10h30, ele destina o horário comercial à causa. Dentre as leis que está articulando com a classe política pela aprovação está a que aplica multas severas em caso de maus tratos e zoofilia, já em vigor em outros estados.

“A multa começa em R$ 800 e pode ir R$ 5 mil. E a pessoa fica um ano proibida de adotar e responde criminalmente. A partir do momento que doer no bolso, a pessoa vai pensar duas vezes antes de fazer maldade com o seu animal”, aposta.
Além do endurecimento da legislação, ele defende a criação de um canil municipal e que aqueles que perderem a guarda de um animal por maus-tratos paguem pelos custos de sua recuperação, pautas que já estão em discussão com vereadores.
Na Capital sul-mato-grossense, é visível a pressão gerada pelos grupos que defendem os direitos dos animais. A pauta também têm vindo à tona até como promessa de campanha eleitoral. Com o crescimento do diálogo com o poder público, têm crescido também os avanços. Dentre eles, a criação de uma subsecretaria de bem-estar animal para desenvolver políticas públicas direcionadas; os investimentos na castração pelo CCZ (Centro de Controle de Zoonoses) e nos próximos 30 dias deve entrar em funcionamento o primeiro Castramóvel, uma unidade móvel de castração de animais de pequeno porte.
As medidas são imprescindíveis para a causa, ao se considerar que a cada ninhada um cão pode gerar até 10 novos animais que, sem controle, irão sofrer nas ruas e gerar um excedente impossível de ser absorvido pelos protetores.
Recursos próprios
É com dinheiro de seu bolso que Alessandra Teruel de Souza, o marido e a filha fazem resgates. Para dar sequência no trabalho, a família mudou-se para uma chácara onde eles permanecem até serem doados. “Quando começamos, o foco mesmo eram animais magros, machucados e abandonados”, conta.
No caso de Alessandra, o trabalho é feito para garantir a saúde dos animais após saírem da situação de abandono. “É todo um tratamento, então se a gente não souber socorrer não adianta, se não morrer lá, morre aqui. Então, você tem que saber o que vai fazer”, afirma, ressaltando que a despesa com apenas uma bolsa de sangue comprada direto do fornecedor custa R$ 600.

O cuidado é grande porque Alessandra não abre mão de nenhum animal. Mesmo aqueles que possuem doenças como câncer e outras são submetidas ao tratamento necessário, independente do custo, para terem assegurado uma segunda chance de vida. “Os meus cachorros morrem aqui na minha casa”, diz, explicando que todas as tentativas de salvar os animais são feitas.
No ano passado, ela conseguiu donos para uma ninhada de 15 animais. E lembra que a necessidade de fazer contas e ter em mente os gastos é, principalmente, do protetor. Já para aqueles que pensam em adotar os animais, mesmo tendo que levar em considerações questões financeiras, precisam mais que isso se comprometer com as vidas deles.
“Não é poder aquisitivo que fala se vai amar ou não. Dessa ninhada doei todos, fiquei com uma só. Tudo pra gente que vai cuidar, amar, vacinar, dar ração, comida, sair pra brincar. Tem muita gente rica que deixa morrer de fome. Tem que ter amor, se tiver amor cuida”, afirma.
Luta contra o preconceito
Na Amicats, a Ana Cristina Camargo de Castro, de 36 anos, também mantém as despesas com recursos próprios junto com a diretoria da instituição. O trabalho é voltado para os felinos, porque a cidade dispõe de várias ONGs que atendem cães. “A cultura ainda é bem mais de cachorro do que de gato. As pessoas têm ideia de que gato não se apega ao dono, se apega ao local”, comenta.

Por isso, o trabalho busca preencher uma dentre tantas lacunas nesse meio. E é feito com controle rigoroso da saúde dos animais. “Eles são todos testados, vacinados, castrados, separados por divisões quando têm algum problema de saúde”, conta. Logo após serem resgatados, eles passam por avaliação clínica e depois precisam ficar em quarentena. Essa etapa, assim como o isolamento daqueles que dão cria, ainda é feito com apoio dos amigos em lares temporários.
“Tudo leva tempo e tem todo um custo envolvido”, explica Ana, que ao fundar a ONG em 2017 não imaginava que encontraria tantos empecilhos pela frente. “Mesmo não recebendo, sendo trabalho voluntário, você imagina que será mais fácil. Mas, na verdade, acaba não sendo. Tem n taxas, assim como outras empresas. Tem que ter contador, despesa de manutenção e pessoas para trabalhar, são custos que não retornam”, diz.
A Ana sabe que não há retorno financeiro nesse trabalho. Mas, sabe também do retorno de ver um animal à beira da morte se recuperar e estar pronto para dar amor a quem estiver ao seu redor. E quem precisa saber da importância do trabalho da Ana e de tantos outros, além do poder público, é a própria população. Porque esse retorno é social. Ele resulta em uma vida digna aos animais, em menor risco de proliferação de doenças pelas ruas, no esforço do poder público em oferecer mecanismos gratuitos para proprietários que não podem custear tratamento e, quem sabe em um futuro próximo, em leis mais justas para defender aqueles que não podem fazer isso sozinhos.