Em meio à pandemia, indígenas de MS caminham até 2km em busca de água contaminada
Essencial para o ser humano e considerada uma grande aliada nos procedimentos de prevenção ao coronavírus, água vira artigo de luxo nas reservas indígenas de Mato Grosso do Sul. Nas aldeias de Dourados, com quase 18 mil habitantes, a visita indesejada da doença, que atingiu 36 pessoas, provoca pânico e expõem antigas carências das comunidades […]
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Essencial para o ser humano e considerada uma grande aliada nos procedimentos de prevenção ao coronavírus, água vira artigo de luxo nas reservas indígenas de Mato Grosso do Sul. Nas aldeias de Dourados, com quase 18 mil habitantes, a visita indesejada da doença, que atingiu 36 pessoas, provoca pânico e expõem antigas carências das comunidades indígenas . A falta de saneamento é uma delas e já virou problema crônico.
Na aldeia Panambizinho, por falta de empenho das autoridades políticas, máquina escavadeira e alguns metros de canos, mulheres e crianças chegam a caminhar quase dois quilômetros em busca da água do córrego Yju Mirim (pequena água amarela). Quem não tem carroça e nem carriola, é obrigado a carregar os galões nas costas.
“Eu e minha família estamos bebendo água contaminada há tanto tempo, que até já perdi as contas. Esse é um problema se arrasta há décadas, sem que ninguém tome nenhuma providência”, conta o professor Marildo da Silva Pedro, sem esconder o medo de ser atingido pelo vírus ou até mesmo contrair outras doenças não menos maléficas.
Marildo não está sozinho nessa árdua tarefa de se manter vivo. Ele mora na Panambizinho com a família e engrossa a fila de alguns dos 400 moradores da aldeia que dividem angústias e misérias. “Essa água que a gente bebe aqui em casa vem do mesmo córrego que a minha mulher usa para lavar as nossas roupas”, revela constrangido.
Segundo o professor, que acompanha de perto o sofrimento dos moradores, a realidade dos indígenas em pleno século 21, na maior cidade do interior do Estado, “é muito dura e cheia de sofrimentos, mas que precisa ser mudada”. Nas aldeias, a maioria das famílias não dispõe de banheiros e moradias adequadas.
Tradições
Apesar dos próprios dramas ele não consegue olhar só pra o próprio umbigo. “Não penso só em mim ou na minha família. O que dói mais é saber que a realidade das aldeias de Dourados e região é semelhante a de milhares de irmãos sofrendo em outros lugares desse nosso País”, conta o indígena.
Graduado em Ciência da Natureza pela UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados) e com mestrado em Entomologia, Marildo se diz preocupado, uma vez que o coronavírus entrou na reserva Indígena de Dourados. Ele não poupa críticas à Funai (Fundação Nacional do Índio), que no seu entendimento tem sido totalmente omissa em relação à pandemia nas aldeias e a outros problemas.
“A chegada do coronavírus representa um grande impacto para saúde Indígena nas aldeias e aumenta ainda mais os problemas que já temos que enfrentar”, conta Marildo, que sempre que pode recorre às tradições de seus ancestrais para se prevenir contra a doença, já que, segundo ele, até agora a aldeia em que reside não recebeu máscaras e álcool gel da Funai, nem da Sesai (Secretária de Saúde Indígena).
O professor reconhece a importância das plantas medicinais, citando o cedro e breu, que ajudam na prevenção de doenças. Além disso o indígena enaltece o poder das rezas deixadas pelos antepassados, mas não esconde a tristeza ao relatar que esses recursos estão caindo no esquecimento “por causa do crescimento das igrejas evangélicas”.
Confinamento
Confinados e também com problemas no abastecimento de água e com limitações de atendimento dos profissionais que atuam nas aldeias, por falta de equipamento de proteção individual, outros moradores das aldeias Jaguapiru, Bororó e retomadas também se juntam ao professor Marildo.
“Faz dias que a Funai não manda ninguém aqui para ver como é que o nosso povo está. Temos fé nas nossas crenças, que ajuda a gente a se proteger. Mas tem hora que não temos água nem para beber, quanto mais para fazer as nossas higienes”, reclama uma indígena moradora da aldeia Jaguapiru.
Segundo a mesma moradora, os indígenas que vivem nas aldeias sabem que precisam tomar cuidados para evitar contaminações, no entanto, a realidade chega a ser cruel. “Tem dia que a gente precisa escolher entre tomar banho e cozinhar. Assim fica muito difícil seguir as orientações que a gente ouve nas notícias”, conta a indígena.
Segundo a enfermeira Indianara Ramires Machado, que mora na Aldeia Jaguapiru “a demanda de atendimento nas aldeias é muito grande e requer uma logística que seja mais eficaz”, uma vez que envolve uma população que pode chegar a quase 20 mil indígenas só em Dourados”, considerando as aldeias e também as retomadas nas proximidades da reserva.
“Em tempos normais nós já temos essa dificuldade e escassez de políticas públicas que realmente contemple a comunidade na segurança, no saneamento, na educação e na saúde. Diante de uma pandemia isso só gera mais preocupação ainda para nós moradores aqui da comunidade porque sabemos que em algumas casas a água não chega e quando chega é uma vez por semana ou em alguns períodos do dia”, explica Indianara.
Segundo ela , é muito difícil estar vivendo uma pandemia diante de uma situação em que a orientação básica é a lavagem de mãos. “Como é que as pessoas vão seguir esses procedimentos se elas nem têm água em casa. Mas de qualquer forma estamos repassando essas recomendações em nossas comunidades, apesar de algumas pessoas não terem condições financeiras para ter acesso a álcool gel e outros gêneros de higiene”, relata a enfermeira.
Omissão
O coro de reclamações em relação à omissão da Funai também é entoado pelas lideranças das aldeias. Na Bororó, considerada o epicentro da pandemia na Reserva Indígena, o cacique Gaudêncio Benitez também lança ‘flechas’ em relação ao órgão. “Olha seu moço pra dizer bem a verdade a última vez que vi alguém da Funai por aqui, ninguém nem sonhava com pandemia. Acho até que foi no ano passado”, afirma Gaudêncio.
Segundo ele, prevenção e isolamento nas comunidades indígenas não é uma coisa muito fácil nem de falar, quanto mais de praticar, já que a realidade nas aldeias é bem diferente, diante de um amontoado de pessoas sob o mesmo teto. “Nossas tekonas (casas) são pequenas e abrigam crianças, idosos, mulheres e homens, muitas vezes em um cômodo só. São famílias numerosas compostas por até 18 pessoas”, relata o cacique.
Na avaliação do pesquisador da UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados), Neimar Machado de Sousa, que também acompanha a situação indígena em Mato Grosso do Sul e principalmente em Dourados, a confirmação de casos de coronavírus na Reserva revela “a necessidade de redobrado cuidado com os fatores de risco nas comunidade indígena: insegurança alimentar, aglomeração imposta pelas remoções e falta de territórios reconhecidos, abastecimento irregular de água, informações claras de acordo com a realidade local e investimento na saúde indígena”.
Além disso, segundo ele, “o confinamento forçado dos povos indígenas em reservas superpopulosas e casas (barracos) de poucos cômodos para famílias numerosas, como na Reserva de Dourados, é uma variável de risco da proliferação de doenças infecciosas, além de tornar impossível o distanciamento social e isolamento de doentes, além de impor a estes brasileiros a permanência forçada em áreas de abastecimento regular de água e sem saneamento”.
Mais do que revelar falta de higiene e dificuldades de enquadramento nas normas preventivas estabelecidas pela OMS (Organização Mundial de Saúde), os relatos nas aldeias também estampam a cara da fome. “Uma cesta básica salva as nossas vidas, mas muitas vezes é insuficiente para saciar a fome de todos”, conta o líder Bororó Gaudencio Benitez, que pede ajuda da população, que pode entrar em contato através do telefone (067) 9.9805.5757.
A reportagem do Jornal Midiamax entrou em contato com a representação da Funai em Dourados mas não recebeu nenhum retorno. Em Campo Grande ninguém também se manifestou sobre os questionamento a respeito do órgão.
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